Ano Um / Número 2
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Tábua de Matérias
§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Ao lavar os dentes, por Ruy Belo
§ 4. Recensão
§ 5. Playmate absoluta do momento II – Lou Andreas-Salomé
§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 7. Conto - Lewis Carroll ou a Alice de Delleuze.
§ 8. De Catástrofe em Catástrofe, (2) entrevista exclusiva a Thomas Bernhard, sem kind permission da Quimera.
§ 9. De Saída: Número 3 em preparação...
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§ 1. Sumaríssimo
Neste segundo número d’ O Saca-Mulas Oriental continuamos principalmente a oferecer a nós próprios motivos de divertimento e aos leitores, que os há, o isco para alguma cumplicidade criminosa que aguardamos sem grande expectativa. Não pretendemos pôr ninguém a parir, nem ratos, nem montanhas, mas isso já os mais avisados entenderam a partir do número 1 e das suas condições prévias (sim, era isso que significava o Voraussetzungen).
Seguimos tranquilamente pelas propostas de Dito e Feito, de P.D. e dá-nos muito gozo reler aqui um dos melhores poemas de Ruy Belo. Aquilo a que resolvemos chamar recensão (apesar de muitas vezes se tratar antes de pluralidade) traz-nos Wittgenstein e algumas palavras sobre os Cadernos de 1914-16.
A nossa incontornável Playmate do momento, Lou Andreas-Salomé, secção que também continua a alegrar-nos as vistas. Regressamos em seguida à saga de outras pássaras que continuarão, até quando?, inexplicáveis. Na secção Conto, optámos excepcionalmente por apresentar uma visão deleuzeana da eterna Alice de Carroll de alguns de nós, antes de chegarmos à segunda de três partes da entrevista a Thomas Bernhard, De Catástrofe em Catástrofe, que sem o mínimo escrúpulo traduzimos da Quimera e, por fim, à Saída onde levantaremos gradualmente o véu do que será o Número 3.
Se de entre as aproximadamente 130 "visitas" (1ª semana) ao Saca, tivermos roubado um leitor, já valeu toda a pena!
&, como se não bastasse, conseguimos obter um Coice! Fantástico!
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§ 2. Dito e Feito, por P.D.
«La seule chose qui nous console de nos misères est le divertissement, et cependant c’est la plus grande de nos misères»
Pascal, Pensées, 217
Porquê?
Por que fazemos tantas perguntas a que não sabemos responder?
Por uma razão fundamental e mais três acessórias: em primeiro lugar porque somos miseravelmente ignorantes acerca do que é essencial na vida; em seguida, porque esta ignorância gera a curiosidade, o falatório e o divertimento.
A passagem do «quê» para o «porquê», a procura de um sentido que dê ou não regra a um modo de vida constitui o ponto de viragem de uma inconsciente curiosidade pelas coisas para uma negra desilusão consciente da marcante ausência de resposta. Esta é a nossa miséria.
A curiosidade é um resquício animal e, embora nem sempre se morra como o gato, vive-se sempre na ignorância felina que produz o medo, a constante sensação do perigo de viver num mundo estranho e adverso. Resquício animal que se transmuta em humano, quando já não se pergunta «o quê», mas o «porquê». Neste caso, paradoxalmente, a curiosidade mata, pois gera o desapontamento provocado pela derradeira resposta sem réplica da morte. A sua casa é a ciência!
O falatório decorre de um grande mal-entendido, em que falsas soluções e respostas incipientes ditam discursos, entidades, regras, modos de vida e mentiras descaradas. Aqui mora a religião.
O divertimento é um hábito de vida que consiste em brincar com perguntas e jogar com respostas. A principal finalidade do divertimento é esquecer o desconsolo da nossa miséria e o carácter lúdico da sua própria actividade, que, com o tempo, acaba por assumir características de autenticidade, como métodos, modelos e princípios apodícticos. Este é o jardim da filosofia.
O problema não é a ausência de respostas; é o excesso de perguntas. Mas será que, assim, teremos de acabar com as perguntas?
Não! Trata-se é de não esperar qualquer resposta!
P.D.
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§ 3. Ao lavar os dentes, por Ruy Belo
Ruy Belo
Ao lavar os dentes
Ao meio da tarde não sei porquê quando mais cadeiras se arrastam nos ladrilhos
e há mais pessoas no pequeno café isolado na vizinhança do mar
e eu a bem dizer já não sei que fazer das minhas duas mãos
e dou graças a deus por serem não mais que duas porque senão
é que não saberia mesmo o que fazer das mãos que tivesse
mais ou menos a meio da tarde quando a dois passos já há um centro de sombra e
há a minha pena de que haja vento e haja muitos dias à sombra
talvez por me faltar já a segurança do sol pouco antes imóvel
pairando no alto sobre a cal calma das casas sobre as folhas mais largas dos plátanos
reuno os papéis dispersos na mesa pago os cafés diversos que fui tomando
e dirijo-me com um profundo encolher de ombros apressadamente para casa
A penumbra interior da casa o facto de a essa hora não haver ninguém em casa
a convicção de que o sol já deve ter dado a volta a uma sombra redonda
rodeará a mesa junto à janela onde costumo escrever
a incidência muito particular da luz a meio da tarde eis aí outros
tantos factores susceptíveis de explicar pelo menos em parte
ou pelo menos na medida em que uma coisa se pode explicar
que eu caminhe para casa e pense que me devo sentir então bem em casa
Gosto de entrar e de mal entrar logo começar a lavar os dentes
e de os lavar como se ao lavá-los eu lavasse mais do que os dentes
ou fizesse outra coisa que não lavá-los pensando talvez numa coisa
qualquer que não existirá não só para além do espelho que tenho na frente
como nem sequer na vida que outrora também tinha quase toda na frente
e agora se perde quase toda nas minhas costas como coisa que nunca vi
ou não é visível no espelho ou pelo menos não vejo no espelho
porque a verdade é que nem mesmo vejo o espelho e só daria bem pelo espelho
no momento em que o tirassem e fosse tarde demais para eu dar bem por ele
As coisas em que penso não existirão muitas vezes talvez a não ser
no meu pensamento ou então o meu pensamento modifica-as dá-lhes possivelmente
uma forma diferente da que têm ou terão na realidade como por exemplo
aquela mulher que há tanto tempo amei que nem mesmo sei bem se a amei
e que a noite passada enquanto eu dormia e vivia essa vida intermédia dos sonhos
emergiu de repente sem mais nem menos como uma mulher irresistível para mim
para mais manietado pelo sono da superfície aquática do sonho
e sobressaiu entre as demais coisas porventura mais ou menos sonhadas
e deixou uma esteira indelével e nítida na minha memória como um
apelo cavo e prolongado mesmo depois de eu ter acordado esteira só dispersa a meia manhã
quando já outras pessoas e outros apelos quase por completo ocupavam
o território movimentado e confuso como uma feira da minha vida
da única vida que vivo e não é mais que estas coisas que faço
ao longo do dia nos campos no café ou principalmente aqui em casa
onde agora lavo os dentes como se nunca antes tivesse lavado os dentes
Lavo os dentes e descubro imensas coisas enquanto os lavo e decerto
lavaria muitas mais vezes os dentes ao dia se antecipadamente soubesse que descobriria
tantas coisas como agora descubro e não são os dentes nem as gengivas
nem qualquer destas coisas das quais aliás falo só por falar
através de palavras que deito para trás das costas como a vida que vivi
e se perderão para mim exactamente como essa vida palavras que nem mesmo conseguirei
ver no espelho onde aliás nada vejo a não ser as gengivas e os dentes
e a boca aberta de um homem que lava contente os dentes
ou pelo menos os lava como uma forma de estar à tarde sozinho em casa
e se sente bem sozinho e gosta moderadamente de estar em casa
pelo menos porque assim não está no café onde a essa hora
há mais pessoas e há o ruído de muitas cadeiras e onde se então estivesse
o mais certo seria sentir o desejo de se levantar e ir para casa
talvez porque já não sabe o que há-de fazer das mãos
ou porque o sol deu a volta à casa e deixou na sombra e no silêncio da tarde
a mesa redonda junto à janela onde costuma escrever
como se porventura escrever fosse mais alguma coisa do que escrever
ou porque pode lavar os dentes com a convicção estritamente suficiente
para lavar os dentes num gesto curto do braço curvo
em casa à tarde sozinho com uma tarde não sabe bem porquê
um pouco mais lá fora nos campos que ali dentro de casa
com a maior parte da vida já para trás das costas
com um certo número de palavras como a vida deitadas para trás das costas
e deitar palavras para trás das costas fosse alguma coisa como semear
meter em andamento através do campo lavrado a mão na serapilheira
dependurada no ombro esquerdo tirar ritmadamente um punhado de semente
e espalhar a semente ao vento nos sulcos antes abertos pela charrua
como se deitar palavras para trás das costas que é afinal o gesto de quem escreve
fosse pelo menos lavar os dentes. Não queiram saber quem sou
ou se porventura alguém por curiosidade ou forma de passar o tempo
quiser alguma vez saber quem sou que veja como lavo os dentes
e que estou tanto nessa lavagem dos dentes como toda a pessoa que lava os dentes
sozinha em casa a uma certa hora da tarde na casa em sombra
Ruy Belo
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§ 4. Recensão
um
Obra há muito aguardada, saiu finalmente, pelas mãos das Edições 70, a tradução portuguesa dos Tagebücher-1914-1916, ou Notebooks, de Wittgenstein, com o título Cadernos 1914-1916.
A importância desta obra reside fundamentalmente no seu carácter quase proto-Tractatus, na qual já se encontram escritas muitas das proposições (sobre lógica, ética e religião) que depois seriam organizadas no Tratado Lógico-Filosófico. Algumas destas proposições dos Cadernos remetem para as correspondentes no Tractatus, o que proporciona uma interessante leitura cruzada entre as duas obras, como no exemplo da entrada de 23.5.15 («Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo», p. 74), que remete para a proposição 5.6 do Tractatus.
Além disso, a obra é enriquecida, tal como na edição da Basil Blackwell, por três apêndices: Notas sobre Lógica-1913; Notas ditadas a G.E. Moore na Noruega-1914; Excertos de Cartas de Wittgenstein a Russell - 1912-20.
Critica-se, contudo, ao contrário da edição inglesa citada, o facto de o editor português não ter optado pela inclusão da versão alemã, dada a importância do vocabulário de Wittgenstein e o interesse em compará-lo com o texto do Tractatus que, infelizmente, também não temos em versão bilingue.
Ludwig Wittgenstein, Cadernos 1914-1916, Edições 70, Lisboa, 2004.
PD
dois
Um Olhar Para Trás, Lou Andreas-Salomé, Relógio d'Àgua, 1987(?)
"A vida humana - ou, melhor, a vida em geral - é poesia. Sem nos darmos conta vivêmo-la dia a dia, pedaço a pedaço. Mas, na sua inviolável totalidade, é ela que nos vive, que nos inventa. Longe, muito longe da velha divisa: 'fazer da vida uma obra de arte' - somos nós a nossa obra de arte."
Trata-se de uma auto-biografia em que Lou Andreas-Salomé, a mesma solitária inevitável que afirma que "na infidelidade estamos sós", nos deixa algumas palavras sobre a sua vida e, por isso mesmo, também das vidas de Nietzsche, Rilke e Freud, só para nomearmos alguns dos nomes a quem esteve ligada com maior ou menor profundidade, por paixão, amizade, colaboração intelectual...
É este o tom maior do livro em que depressa percebemos mais do que uma lúcida descrição da sua existência - situada sempre para além do bem e do mal, como já deixámos antever -, e encontramos uma Lou Salomé em busca de um sentido para a sua existência e reflecte sobre uma vida que foi profundamente religiosa no sentido etimológico do termo.
Leiam.
A.H.
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§ 5. Playmate absoluta do momento II
Lou Andreas-Salomé
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§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.
(...)
A morte morre de todos (dos dois) lados. O rosto que mal vira do energúmeno que lhe elogiara as pernas, uma aranha minúscula nas calças de ganga mortas de usadas e uma simples sacudidela a não resultar pela terceira vez, aqueles dentes escurecidos que não vira de tabaco e Gösser muito provavelmente e, sobretudo, da schnaps matinal. Que merda a morte. O pensamento fixado na morte, na permissão de tudo. Ainda não seria hoje, sentia-o. O pânico, apesar dos dois xanax com whisky e água-lisa de há pouco ao chegar a casa, teimava em não se lhe descolar da pele branca, gelada. Depois de uma breve ou longa troca de olhares com o telefone, resolveu ligar a B., talvez tivesse regressado de Roma. Nos inúmeros momentos como aquele, os silêncios partilhados de ambos, sobretudo ao telefone, eram a única coisa que a acalmava. Isso e depois o dividir de algumas garrafas do vinho tinto que ele nunca se esquecia de trazer de Lisboa.
Este vinho e o Pessoa do desassossego, costumava repetir a meio da segunda garrafa, são o meu Portugal. Por essas alturas perdia-se quase sempre em pausados monólogos sobre o Portinho e Sintra que lhe faltavam sempre e contava de novo como contraíra a saudade ao desembarcar pela primeira vez em Santa Apolónia vindo de Madrid, ao percorrer a pé o caminho de ir beber uma ginginha ao Rossio, por onde agora passava sempre antes de desfazer o magro saco de viagem. Ah, e depois, a ascensão até à Graça!, dizia nesses momentos, onde mesmo o pior dos homens maus pode escrever em paz até aos primeiros raios da aurora. Ele regressara.
QUEBRAR EM CASO DE EMERGÊNCIA, leu já no eléctrico onde normalmente passava tantas horas absorta em volta do Ring e que agora a conduzia à baixa para se encontrar com ele no Bräunerhof àquela hora invulgar. Ali estava ele, contra o que era seu hábito, àquela hora, a ler os jornais do costume com o mesmo ar severo e alheado de sempre. Esperava-a e a miséria do mundo causava-lhe apenas indiferença perante a espera da amiga. Como estaria ela desta vez? Sorriu ao vê-la chegar.
(...)
A.H.
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§ 7. Conto – Lewis Carroll ou a Alice de Delleuze
LEWIS CARROLL
Em Lewis Carroll tudo começa com um combate horrível. É o combate das profundezas: há coisas que explodem ou que nos fazem explodir, caixas que são demasiado pequenas para o seu conteúdo, alimentos que são tóxicos ou venenosos, passagens estreitas que se alargam, monstros que nos tragam. Um pequeno irmão serve-se do seu pequeno irmão como isco. Os corpos misturam-se, tudo se mistura numa espécie de canibalismo que reúne o alimento e o excremento. Até as palavras se comem. É o domínio da acção e da paixão dos corpos: coisas e palavras dispersam-se em todos os sentidos, ou, pelo contrário, unem-se em blocos indecomponíveis. Tudo é horrível em profundeza, tudo é sem sentido. Alice no País das Maravilhas deveria antes chamar-se As Aventuras Subterrâneas de Alice.
Alice
Mas por que razão Carroll não conserva este título? É que Alice conquista progressivamente as superfícies. Ela sobe ou volta subir à superfície. Ela cria superfícies. Os movimentos de afundamento ou de enterramento dão lugar a ligeiros movimentos laterais de deslize; os animais das profundezas tornam-se figuras de cartas sem espessura. Tanto mais que Do outro lado do Espelho envolve a superfície de um vidro, institui a superfície de um jogo de xadrez. Puros acontecimentos escapam-se dos estados de coisas. Já não nos afundamos em profundidade, mas é à força de deslizar que passamos para o outro lado, fazendo como o canhoto e invertendo o lado direito. A bolsa de Fortunatus descrita por Carroll é o anel de Moebius no qual um mesmo lado direito percorre os dois lados. As matemáticas são boas porque instauram superfícies e pacificam um mundo cujas misturas em profundidade seriam terríveis: Carroll matemático, ou então Carroll fotógrafo. Mas o mundo das profundezas retumba ainda sob a superfície e ameaça estalá-la: mesmo expostos, manifestos, os monstros assediam-nos.
O terceiro grande romance de Carroll, Sílvia e Bruno, realiza ainda um progresso. Dir-se-ia que a antiga profundidade se nivelou a si mesma, tornou-se uma superfície ao lado da outra superfície. Duas superfícies coexistem então, onde se escrevem duas historias contíguas, uma maior e a outra menor; uma em maior, a outra em menor. Não uma historia dentro da outra, mas uma ao lado da outra. Sílvia e Bruno é, sem dúvida, o primeiro livro que narra duas histórias simultaneamente, não uma no interior da outra, mas duas histórias contíguas, com passagens constantes de uma para outra, através de um fragmento de frase comum às duas, ou então através de estrofes de uma canção admirável que distribuem os acontecimentos próprios a cada história na medida em que são determinados por elas: a canção do jardineiro louco. Carroll pergunta: é a canção que determina os acontecimentos, ou os acontecimentos que determinam a canção? Com Sílvia e Bruno, Carroll fez um livro-rolo, à maneira dos quadros-rolos japoneses. (No quadro-rolo, Eisenstein via o verdadeiro precursor da montagem cinematográfica, e descrevia-o assim: «A tira do rolo enrola-se formando um rectângulo! Já não é o suporte que se enrola sobre si mesmo; aquilo que está representado é que se enrola na sua superfície.») As duas histórias simultâneas de Sílvia e Bruno formam o último termo da trilogia de Carroll, obra-prima igual às outras.
Alice
Não é que a superfície tenha menos sem-sentido que a profundeza. Mas não é o mesmo sem-sentido. O sem-sentido da superfície é como a «Radiância» de acontecimentos puros, entidades que não cessam de entrar e sair. Os acontecimentos puros e sem mistura brilham acima dos corpos misturados, acima das suas acções e das suas paixões desordenadas. Como um vapor da terra, libertam para a superfície um incorpóreo, um puro «exprimido» das profundezas: não a espada, mas o brilho da espada, o brilho sem espada como o sorriso sem gato. Pertence a Carroll o facto de nada ter feito passar pelo sentido, mas ter jogado tudo no sem-sentido, visto que a diversidade de sem-sentidos basta para dar conta de todo o universo, tanto dos seus terrores como das suas glórias: a profundeza, a superfície, o volume ou superfície enrolada.
in Gilles Deleuze, Crítica e Clínica, cap. III, tradução de P.D.
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§ 8. De Catástrofe em Catástrofe, (2) entrevista exclusiva a Thomas Bernhard, sem kind permission da Quimera.
De catástrofe em catástrofe (2)
- Um dos seus temas principais é a música. O que significa ela para si?
- Estudei música quando era jovem. Perseguiu-me desde a infância. Apesar de sempre ter gostado de música, ela foi para mim como uma caça e uma perseguição. Só estudava para poder estar com gente da minha idade. Provavelmente esta necessidade era consequência da minha relação com aquela pessoa muito mais velha que eu. Toquei, cantei, fiz teatro com os meus colegas do Mozarteum. Depois a música tornou-se impossível por motivos puramente físicos. Só se pode fazer música quando se está permanentemente com mais gente. Como era precisamente isto o que não queria, o problema resolveu-se por si só.
- Os seus ataques, principalmente contra o Estado e contra a Igreja, são habitualmente muito fortes. Em Extinção (Auslöschung) descreve o catolicismo como sendo «aquilo que destrói a alma da criança, o que a assusta, aquilo que nega o seu carácter». Para si, o seu país, a Áustria transformou-se n’ «um negócio sem escrúpulos onde só se negoceia com tudo e onde todos roubam todos por tudo». Escreve a partir de uma posição de ódio universal?
- Eu amo a Áustria. Isto não se pode negar. Mas a estrutura do Estado e da Igreja é tão horrível que só se pode odiá-la.
Sou da opinião que todos os países e todas as religiões que se conhecem de perto são igualmente horríveis. Com o tempo descobrimos que a estrutura é em todo o lado a mesma, tanto nas ditaduras como nas democracias; no fundo, são igualmente horríveis para o indivíduo. Pelo menos vistas de perto. Mas mais vale não me deixar levar e não proclamar este tipo de coisas, para que não me lancem os cães.
- Para si, não é importante o reconhecimento, como escritor e como ser humano, na sua própria pátria?
- O homem, desde o princípio, está sedento de amor pela natureza. Sedento do carinho, do dom que o mundo tem para oferecer. Quando nos privam disto, por muito que repitamos mil vezes que somos um ser frio, que nada vê nem nada ouve, atinge-nos com toda a dureza. Mas isto é assim, é inevitável. Quando se lançam vozes no bosque, o eco devolve-as. Quando se conhece o bosque, também se conhece o eco. No fundo, também se está enamorado pelo ódio e pelo desdém.
- Talvez seja por isso que de entrada, nos seus livros, começa por fazer tábua-rasa? Dá a impressão de um ajuste de contas algo brutal com determinadas pessoas. Recebe as consequentes reacções?
- Sim. Às vezes torna-se quase insuportável. Ontem, quando estava na cidade, uma mulher lançou-se literalmente para cima de mim. Pôs-se a gritar: «Se continuar por este caminho rebentará!» Estamos indefesos perante este tipo de coisas. Ou, por exemplo, estamos tranquilamente sentados num banco de jardim e recebemos de repente uma palmada nas costas. Ainda não tivemos tempo de reagir e mal conseguimos ouvir como alguém grita: «Muito bem, continue por este caminho.» Nós próprios provocamos estes incidentes. O que acontece é que não contávamos com isso. Mal posso continuar a viver em Ohlsdorf, o meu lugar de residência. Os atropelos por todo o lado tornam-se-me insuportáveis. Além disso, os louvores são tão sinistros, falsos, hipócritas e egoístas quanto os insultos. Acontece, que as pessoas, se não abro logo a porta, irritam-se e partem-me os vidros. Primeiro chamam, depois provocam, depois gritam, e acabam por me partir as janelas. Depois ouve-se o rugido de um motor que se afasta. Por que fui suficientemente estúpido, há vinte e dois anos, em dar a minha direcção, agora já não posso continuar a viver em Ohlsdorf. As pessoas sobem ao muro que rodeia a minha casa. Quando de manhã desço até ao portão, já há pessoas encarrapitadas. Dizem que querem falar comigo. Ou, aos fins-de-semana, as pessoas vão ver o escritor, como antes iam ao jardim para ver os macacos. Isto é mais divertido. Aproximam-se de Ohlsdorf e assediam a minha casa. Eu observo-os escondido por detrás das cortinas como um preso ou um louco. Insuportável. Há doze anos que não dou mais conferências. Já não me sinto capaz de me sentar e pôr-me a ler as minhas coisas. Também não suporto as pessoas que aplaudem. O aplauso é a recompensa do actor. Vive disso. Eu, por mim, prefiro os pagamentos da minha editora. Mas as marchas, os desfiles e as pessoas que aplaudem nos teatros ou nos concertos são-me insuportáveis. As calamidades são sempre provocadas pela massa afervorada que aplaude. Todos os horrores provêm dos aplausos.
Thomas Bernhard no Braeunerhof
- Disse, em Extinção, que deveríamos deixar-nos erigir em velho bobo aos quarenta. Porquê?
- Este método é o único que permite suportar tudo. Perguntou-me pela imagem que tenho de mim. Só posso dizer o seguinte: a do bobo. Aí funciona. A imagem do bobo, do velho bobo. Um bobo jovem não tem interesse, nem sequer é reconhecido como bobo.
- Foi para si a escrita, sobretudo nos seus primeiros livros como A Respiração ou O Frio, também um meio de superar a sua doença?
- O meu avô era escritor. Até depois da sua morte não me atrevi a pôr-me a escrever. Quando tinha dezoito anos, descobriu-se na aldeia onde tinha nascido o meu avô uma placa em sua memória. Depois da cerimónia foram todos para o albergue de minha tia. Eu também estava lá, e a minha tia, dirigindo-se a uns jornalistas que cobriam o acontecimento, disse: «ali está o neto, que nunca será nada, apesar de no melhor dos casos também saber escrever». Então um disse: «Mande-mo na segunda-feira». Assim recebi a tarefa de escrever sobre um campo de refugiados. No dia seguinte a minha reportagem já figurava no diário. Não tornei a sentir-me tão entusiasmado na minha vida. É uma sensação maravilhosa: escrever algo que se imprime durante a noite, mesmo que seja mutilado e recortado. Mas enfim, aí estava. De Thomas Bernhard. Tinha suado sangue para escrevê-lo! Durante dois anos escrevi a crónica judicial, que me regressou à memória quando me pus a escrever prosa. Um tesouro inestimável. Creio que daí surgem as minhas raízes.
- Que sente agora, quando críticos como Reich-Ranicki ou Benjamín Henrichs escrevem sobre si com admiração? Também se sente entusiasmado?
- Não voltei a entusiasmar-me com as críticas. Ao principio, sim, porque acreditava nelas; mas quando se passa trinta anos a observar esta disparidade de apreciações, estas devoluções de favores com interesses, acabamos por descobrir esses mecanismos. Mandam os criados e dizem-lhes: «Agora quero que me faças uma crítica negativa». É assim que funciona.
- Não o incomodam as críticas ferozes?
- Sim, hoje em dia ainda continuo a cair em todos os enganos. Os jornais sempre me fascinaram, desde a minha juventude até hoje. Mal posso suportar um dia sem jornais. Ao fim de algum tempo acabamos por conhecer as pessoas nas redacções. No melhor dos casos nunca os vi na vida, mas sei quais são os segredos de um teatro, os bastidores de uma redacção, conheço os editores, os leitores, os negócios. O espírito perde-se sempre pelo caminho, o sabor também se fica pelo caminho, e a poesia. Por cima passam os exércitos de redactores e críticos. Passam por cima dos cadáveres de todos os que fazem algo criativo. Voltamos a deparar com algo fascinante: fere-me, mas já não me incomoda no meu trabalho.
- Numa conferência afirmou: «Nada temos que dizer, excepto que somos miseráveis». Escreve para fazer constar as suas derrotas?
- Não. Tudo o que faço, faço-o só para mim. Toda gente faz tudo só para si, tanto o funâmbulo, como o padeiro, ou o revisor de comboio, ou o acrobata aéreo. Com a ressalva de que nas acrobacias aéreas, durante o espectáculo, o público olha para o céu, e, enquanto o aeroplano está a voar as pessoas já esperam que se estatele. Com os escritores acontece a mesma coisa, com uma diferença importante: enquanto o aviador só se estatela uma vez, em cujo caso costuma matar-se ou ficar muito mal tratado, o escritor também costuma sair morto ou mal tratado, mas ressuscita sempre. Sempre e torna a dar o espectáculo. E quando mais velho se faz, mais alto volta, até que um dia o perdem de vista. Então as pessoas perguntam: Que estranho! Como é que não voltou a estatelar-se?
Eu tenho gozo em escrever, o que não é nada novo. Escrever é o único laço que ainda me ata. Claro que a corda está algo desfiada. Mas enfim, é assim. Ninguém é eterno. Mas enquanto a minha vida durar, viverei a escrever. A escrita é a minha existência. Há meses, ou anos, em que não consigo escrever. É horrível. Mas em algum momento sempre volta, e então algo se forja. Este ritmo é aterrorizador e extraordinário ao mesmo tempo: é algo que os outros provavelmente não conhecem.
(...)
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