Ano Um / Número 4
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Tábua de Matérias
§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. My Funny Valentine, por Rodgers/Hart
§ 4. Recensão:
um, Semear Na Neve, Mª Filomena Molder
dois, O Livro Por Vir, Maurice Blanchot
§ 5. Playmate absoluta do momento IV – Nico
§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 7. Myslowitz-Braunschweig-Marselha (História de um fumador de haxixe), (II) Walter Benjamin
§ 8. Tenho Um Sonho, por Michel Houellebecq
§ 9. De Saída: Número 5 em preparação...
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§ 1. Sumaríssimo
Como já é habitual iniciamos este Número 4 do nosso Saca com a prestação filosófico-divagadora de Dito e Feito, por P.D., inversamente proporcional em tamanho à qualidade com que nos tem habituado, para de seguida meditarmos nas palavras e no som de My Funny Valentine, de preferência pela voz da nossa playmate nº 4, mas numa versão Nina Simone também serve.
Uma pausa merecida para os editores deste blogzine que em tempos de Rock e divertimento teimam em enterrar-se cada vez mais em trabalho, sempre divertimento e poeira dos dias. Chegámos às trezentas e muitas visitas, vale a pena.
Seguimos com a rubrica recensão, cujo nome deve denotar mais uma pluralidade e, sobretudo, quase sempre apenas um ou dois livros lidos que entendemos publicitar e destacar. Às vezes só uma citação mais extensa. Dois grandes livros, com toda a certeza.
A escolha da playmate recaiu esta semana na nossa evocação de Nico, a beleza invulgar da vocalista dos Velvet Underground – acreditem que ainda há em 2004 quem não sabe quem sejam e eu conheço.
Seguimos com uma surpresa, ou talvez não, na insondável saga d’ A Explicação das Pássaras...
E terminamos com algumas declarações do controverso Houellebecq, conhecido sobretudo por Plataforma, mas para muitos ainda apenas e só mais um ilustre desconhecido.
Até à próxima!
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§ 2. Dito e Feito, por P.D.
Felicidade
«Toda a felicidade é negativa, sem nada de positivo; nenhuma satisfação, nenhum contentamento, por consequência, pode durar: no fundo, são apenas a cessação de uma dor, ou de uma privação, e, para substituir estas últimas, o que vier será infalivelmente ou uma dor nova, ou então qualquer languidez, uma espera sem objecto, o aborrecimento.»
A. Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, II, § 58
A felicidade é uma apófase porque diz o que não é.
Ditoso quem desiste, quem nunca começou, quem não persegue a esfinge (mas ela lá está, impassível, e não desaparece só por lhe chamarmos fantasma) do júbilo repetido. Triste o feliz: agora sim, ainda não, nunca sempre. Muito menos no fim.
Ignora a inexorável dor futura, o próximo desejo e a privação seguinte?
Esqueceu o contentamento já sem graça, a paixão saciada e o pesar da espera?
Tédio feliz
Antes saber que não há uma vida feliz, lembrar a incerteza do futuro, viver o cansaço do dia, repousar em si.
Maldita a constância, a impossível repetição desejada do mesmo, a insatisfação aborrecida. (Procurar coisas. Mas o que se encontra é a procura das coisas!)
Bem-aventurada a mudança, o nascer e morrer das coisas pela vida fora até acabar, o bem e o mal que nunca duram, o pouco e o muito que se (não) tem, a possibilidade infinita do mundo.
Triste? Ri sempre o insensato. Contente? Chora incessante o cobarde.
Saber isto: somos incapazes de não desejar a verdade e a felicidade, e somos incapazes de qualquer certeza ou felicidade. E deixar cair a pedra.
«Pouca coisa nos consola, porque pouca coisa nos aflige»
Pascal, Pensées, 175
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§ 3.My Funny Valentine, por Rodgers/Hart
O Amor inocente
My funny valentine
My funny valentine
Sweet comic valentine
You make me smile with my heart
Your looks are laughable
Unphotographable
Yet you’re my favourite work of art
Is your figure less than greek
Is your mouth a little weak
When you open it to speak
Are you smart?
But don’t change a hair for me
Not if you care for me
Stay little valentine stay
Each day is valentine’s day
Is your figure less than greek
Is your mouth a little weak
When you open it to speak
Are you smart?
But don’t you change one hair for me
Not if you care for me
Stay little valentine stay
Each day is valentine’s day
Rodgers/Hart
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§ 4. Recensão
um
Semear Na Neve
«[…]
“Há, no fundo, duas maneiras de filosofia e duas espécies de anotar os pensamentos: uma, é a de semeá-los na neve – ou melhor, se assim o quiserem, na argila das páginas, Saturno é o leitor para contemplar o seu crescimento, até mesmo para colher a sua flor, o sentido, ou o seu fruto, o verbo. A outra é dignamente enterrá-los e levantar como sepultura a imagem, a metáfora, mármore frio e infecundo, por cima do seu túmulo.”
...
É inútil semear na neve, mas não é propriamente a inutilidade que ressalta, antes a natureza absurda do gesto. Só semeia na neve aquele que crê ter perdido a terra fértil de onde alguma coisa pode nascer, aquele que não a avista, ou não pode, não é capaz, não está naturalmente em estado de a encontrar, aquele que, desesperado, tenta reproduzir um gesto em vão. Na argila das páginas, no barro moldável, ele também infecundo, sopra o espírito humano, mas, ao contrário do sopro divino, ele não tem poder sobre o barro, não o consegue transformar em vida. 0 espírito daquele que sopra, daquele que escreve na argila, ficara nela gravado, mas a argila há-de permanecer o que é, terra infecunda, tão moldável quanto próxima do caos.»
(M. Filomena Molder, excerto de «A tinta e o mata-borrão: a teologia no pensamento de Walter Benjamin», in Semear na Neve, 1999, Relógio de Água)
Muito anterior ao recente A Imperfeição da Filosofia, Filomena Molder publicou em 1999 este magnífico conjunto de pequenos ensaios (que inclusivamente foi premiado pela APE) dos quais se destaca o citado em excerto e «Aura e vestígio», embora nenhum dos restantes textos lhes seja inferior tanto em beleza quanto em profundidade. A professora no seu melhor, sob as arcadas de Walter Benjamin.
P.D.
dois
Lévinas e Blanchot (numa rara aparição pública)
O Livro Por Vir, de Maurice Blanchot, em Portugal editado pela Relógio d’Àgua nos idos de Novembro de 1984, com uma boa tradução de Maria Regina Louro, é um livro a que recorro à procura de visão, de espaço criativo dentro de algo mais que a “simples” crítica literária. Blanchot, cujo centro de pesquisas é a literatura, influenciador de Derrida e Deleuze, para início de conversa e de figuras tão importantes do pensamento do século que nos precedeu como Emmanuel Lévinas (numa das raras fotos com Blanchot), fala-nos neste seu Le Livre à Venir, de figuras maiores deste seu vício: Proust, Artaud, Musil, Broch e Henry James, para só nomearmos alguns. Interessa-lhe, através dos autores e dos livros, sobretudo o movimento que os cria e que, uma vez encontrado, poderia talvez dispensar para sempre os homens de escrever.
E de ler!
A.H.
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§ 5. Playmate absoluta do momento IV – Nico
Nico
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§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.
4. Quatro.
O vinho, os sorrisos trocados, deviam ter enrolado ao todo pelo menos dois ou três charutos de maria. Depois, lembra-se, de vagamente terem ido parar a Wittgenstein, como sempre, mais obsessão sua do que dele, diga-se. O velho mestre, como gostava de lhe chamar afectuosamente, preferia os seus franceses, os seus Montaigne e Pascal. Gostos, leituras que só melhoram com a idade, que passam pelo crivo de outra vida, ao longo de muito tempo dela. Para ela o Tratado, como se lhe referia quase sempre, era a sua última esperança, o silêncio em que alguns viram mística, mas que lhe era uma mera questão de sobrevivência. Em todo o caso, devia ter sido mais ou menos disso que falaram antes dela adormecer embalada em palavras. Acerca do que não podemos falar...
Já no sofá, mais tarde, acabada de aprontar, resolveu pegar numa folha de papel em branco e começou a beber e a escrever, sobre um livro grande ou uma revista de capa suficientemente dura, lembrou-se da sugestão de um outro amigo de que desaparecesse por combustão espontânea, assim, sem mais, à vista dos assistentes. Quando se quer muito uma coisa. Não resulta. Mais gelo, era preciso mais gelo. Talvez a atravessar absorta uma rua e a pensar obcecada pela ideia da morte e de que ninguém a ama neste mundo injusto. Essa é que era a verdade. As palavras amontoavam-se, minúsculas, certeiras no alvo. Auto-comiseradas. Ele prometera-lhe para mais tarde umas páginas de umas coisas sem sentido, tentativas de salvação, que tenho andado a escrever, dissera ainda, quando não me apetece escrever absolutamente nada. Pensar que o Nada, em alemão, tem um conteúdo, em vez de ser um vazio liso, como pretende Heidegger. Nem sequer mesmo outro adeus como este, sempre imprevisível o reencontro. Gostar de vê-la entregar-se nos braços de Morfeu, lentamente, seduzida pelos seus beijos de vinho tinto e palavras. Depois sair. Sabíamos de ti por reencontros inesperados em Roma, il Giorgione... Longe da bafienta Áustria e dos seus maus humores. Era isto ser austríaco. Na altura refugiava-me em Mallorca... Apreciava com mágoa e prazer a sonoridade do espanhol que já não me era completamente estranho, tão diferentemente musical, ou musicalmente diferente da nossa aridez, mais um lugar comum, mas que fazia as vezes de norte quando, como sempre, ainda a palavra não explicou...
Uma grande bebedeira, um verdadeiro cocktail suicida, escreveram os jornais em sinal de luto, levou-a nos braços do fogo com que inadvertidamente um cigarro e uma última grappa romana de mau agouro ateou lençóis, colchão e tapeçaria! Tudo encharcado de água pelos bombeiros. Que lindas pernas, menina!...
A.H.
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§ 7. Myslowitz-Braunschweig-Marselha (História de um fumador de haxixe), (II) por Walter Benjamin
(...)
Enquanto descia a escada, fui recordando a última vez que fumara haxixe – há já alguns meses – e como me tinha sido impossível saciar a fome terrível que mais tarde me atacara no quarto. Para o que desse e viesse, decidi comprar uma barra de chocolate. Avistei ao longe uma montra cheia de caixas de bombons, de papel de estanho a brilhar e de belas pilhas de bolos. Entrei na loja e fiquei admirado. Não se via ninguém. Mas mais espantado fiquei ao ver a estranha cadeira de enorme espaldar perante a qual tive, bem ou mal, de admitir que os marselheses tomavam chocolate do alto de cadeiras de trono que faziam lembrar as cadeiras articuladas para cirurgia. Só então veio a correr do outro lado da rua o dono do estabelecimento, de bata branca e eu só tive tempo para me subtrair, com sonoras gargalhadas, à sua oferta de me fazer a barba ou de me cortar o cabelo. Reconheci pela primeira vez que o haxixe já há muito começara a fazer o seu trabalho, facto do qual, se não me bastasse ter transformado pulverizadores em caixas de bombons, estojos de níquel em barras de chocolate, perucas em bolos, as minhas próprias gargalhadas me teriam alertado, pois é sabido que é com gargalhadas, ou então com um riso mais silencioso e interior, que o fumo começa por actuar. E então reconheci-o também na interminável suavidade do vento que do outro lado da rua agitava as franjas nas marquises.
Logo a seguir, veio a premente necessidade de aproveitar o espaço e o tempo que sente o fumador de haxixe. Como é sabido, é absolutamente imperiosa: para quem fumou haxixe, Versalhes não é lá muito grande e a eternidade dura-lhe pouco. E à profundidade destas dimensões que a vida interior, a durée absoluta e o espaço incomensurável adquirem, não tarda a seguir-me um sorriso prazenteiro, antecipando uma disposição maravilhosa que a imensa incerteza de tudo quanto existe torna ainda mais beatífica.
Sentia, pois, tal ligeireza e certeza no andar que o empedrado irregular da grande praça que atravessava me parecia o pavimento de uma estrada pela qual eu, vigoroso caminheiro, passeava à noite. No fim desta praça, porém, erguia-se um feio edifício de arcadas simétricas com um relógio luminoso na fachada: os correios. Feio, digo eu agora; nessa altura, não pensava assim. E isto não apenas porque quando se fuma haxixe nada parece feio, mas sobretudo porque tive a sensação de que aquele escuro posto de correios, à espera, à minha espera, com todos os seus receptáculos e cacifos prontos para receberem e transmitirem a inequívoca ordem, poderia fazer de mim um homem rico. Não conseguia tirar dele os olhos, sentia que teria sido fatal passar demasiado perto do prédio e não reparar na sua fachada e, sobretudo, no disco luminoso do relógio.
Cannabis
Mesmo ali à direita, dispunham-se no escuro as mesas e cadeiras de um bar, pequeno, mas com ar verdadeiramente suspeito. Embora ficasse bastante afastado dos quarteirões marginais, não se viam lá burgueses; quando muito, e para além do proletariado portuário, um par de outros taberneiros das redondezas. Ali tomei assento. Era o último naquela direcção, ainda podia ir lá sem perigo e, graças ao fumo, para lá me dirigi com a mesma segurança com que uma pessoa morta de cansaço consegue encher até cima, sem derramar uma gota, um copo de água, coisa que para uma outra com os sentidos alerta é bem difícil. Mal comecei a sentir-me tranquilo, veio o haxixe fazer das suas, com uma energia primitiva como nunca tinha sentido. Entre outras coisas, transformou-me em fisionomista. Eu, que tenho dificuldades em reconhecer amigos de toda a vida, em reter na memória umas feições, obstinei-me em fixar os rostos que me rodeavam por duas razões: não queria atrair sobre mim os seus olhares nem suportava a sua brutalidade. Passei a compreender porque é que para um pintor – não ocorreu o mesmo a Leonardo e a tantos outros? – a fealdade que resulta das rugas, dos olhares, dos rostos, pode parecer o verdadeiro reservoir da beleza, uma arca do tesouro, uma montanha mágica aberta que deixa brilhar todo o ouro do que é belo no mundo. Recordo em particular o rosto extremamente animal de um homem comum, no qual julguei vislumbrar num repente as “rugas do conformismo”. Os rostos dos homens eram os que mais me fascinavam. Fui completamente apanhado pelo jogo de descobrir em cada rosto que assomava de novo o de alguém conhecido que umas vezes sabia quem era, outras me escapava. A alucinação foi-se, como as dos sonhos, sem retraimento ou embaraço, antes alegre e amistosa como uma criatura que tivesse cumprido a sua obrigação. O meu vizinho, de aparência pequeno-burguesa, mudava constantemente o aspecto, a expressão, o conjunto do seu rosto. O seu corte de cabelo, as armações escuras dos óculos, conferiam-lhe um ar ora severo, ora amistoso. Dizia para mim próprio que era impossível ele mudar com tal rapidez, mas não adiantava nada. Tinha já muitas vidas dentro de si, pois saltou de repente para estudante de uma pequena cidade do leste. Tinha um quarto bonito e bem decorado. Perguntei-me: onde terá este jovem adquirido tanta cultura? Que fará o seu pai? Loja de atoalhados ou armazém de cereais? De repente, fiquei a saber: - Isto é Myslowitz! Levantei os olhos. E lá estava, do outro lado da praça, não, mais longe, no extremo da cidade, o liceu de Myslowitz, e nos ponteiros do relógio – com que então tinham parado, não andavam – pouco passava das onze. A aula devia já ter começado. Mergulhei completamente nesta imagem, sem qualquer razão para tal. As pessoas que ainda há momentos – ou terá sido há duas horas? – me fascinavam, tinham desaparecido. “De século para século, tudo fica mais estranho”, foi o que me passou pela cabeça.
Acerca de Haxixe
Hesitei bastante antes de provar o cassis. Tinha pedido meia garrafa e o cassis é uma bebida seca. No copo nadava um cubo de gelo. Não sei quanto tempo fiquei a seguir-lhe os desenhos; sei que quando voltei a olhar para a praça verifiquei que lhe tinha dado para se pôr a mudar, ela e tudo quanto tinha dentro, como se quisesse desenhar uma figura que, quando vista demoradamente, nada tinha a ver com ela mas antes com o que faziam os grandes retratistas do século XVII que, conforme o carácter do modelo, o situavam diante de uma colunata ou de uma janela e assim destacavam a janela.
De repente despertei, excitado, do mais profundo alheamento. Fez-se luz dentro de mim e só via uma coisa: o telegrama. Tinha de ser imediatamente expedido. Para me manter desperto, pedi um café simples. Começou a parecer-me uma eternidade, o tempo que o criado levava a trazer o café. Peguei ansiosamente na chávena, cujo aroma me subia pelo nariz; de repente, parei a minha mão – para minha surpresa, ou por causa da minha surpresa, quem saberia? – a escassos centímetros dos lábios. Mal o embriagador aroma do café me chegou ao nariz, logo adivinhei a pressa instintiva do meu braço e lembrei-me de que esta bebida constitui para todo o fumador de haxixe o cúmulo do prazer, pois não há nada como ela para intensificar o efeito da droga. Por isso quis deter-me e detive-me. A chávena não chegava aos lábios. Mas também não regressou ao pires. Ficou suspensa no ar, segura pelo meu braço que começava a insensibilizar-se e a sustinha, rígido e morto, como se de um emblema, de uma pedra sagrada ou de uma relíquia se tratasse. Os meus olhos pousaram-se nas pregas das minhas calças de praia e viram nelas as rugas de um albornoz; olhando para a minha mão, vi-a morena, etíope, e enquanto mantinha os lábios fortemente apertados a recusar a bebida e a palavra, um sorriso ia subindo até eles, um sorriso altivo, africano, sardanapálico, o sorriso de um homem capaz de penetrar o concerto do mundo e o destino, para quem as coisas e os nomes não encerram qualquer segredo. Dei comigo ali sentado, moreno [braun] e taciturno [schweigend]: Braunschweiger. Acabava de conhecer o sésamo deste nome que devia ter em si as maiores riquezas. Com um sorriso de compaixão, pensei pela primeira vez nos habitantes de Braunschweig, a viver tristemente na sua cidadezinha do interior, totalmente ignorantes das forças mágicas contidas no seu nome. Neste ponto, abateram-se sobre mim, como um coro festivo, as badaladas da meia-noite de todas as torres de igreja de Marselha.
Ficou mais escuro quando fecharam o bar. Vagueei sem rumo pelos paredões, lendo um após o outro os nomes dos barcos ali amarrados. Invadiu-me então uma inexplicável alegria e sorri à lista dos nomes de mulheres de França que ia vendo: Margueritte, Louise, Renée, Yvonne, Lucille. Revelavam-me o amor com que eram pronunciados os nomes destes barcos, maravilhoso, belo, comovente. Junto ao último havia um banco de pedra. – Banco – disse para mim próprio, achando mal que o nome me aparecesse a dourado com fundo negro. Foi a última ideia que me cruzou a cabeça com nitidez naquela noite. As seguintes foram-me sugeridas pelos títulos dos jornais, quando o sol forte me despertou num banco junto ao mar:
“Sensacional alta na Royal Dutch!”
- Nunca me tinha sentido – continuou o narrador – tão leve, lúcido e alegre depois de ter fumado.
Walter Benjamin (1892 – 1940)
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§ 8. Tenho Um Sonho, por Michel Houellebecq
Tenho um sonho
por Michel Houellebecq
Sejamos claros: a vida, tal como se apresenta, não é má. Realizámos alguns dos nossos sonhos. Podemos voar, podemos respirar debaixo de água, inventámos electrodomésticos e o computador. O problema começa com o corpo humano. O cérebro, por exemplo, é um órgão de grande riqueza e as pessoas morrem sem ter explorado todas as suas capacidades. Não porque a cabeça seja muito grande, mas porque a vida é demasiado curta. Envelhecemos rapidamente e desaparecemos. Porquê? Não sabemos, e mesmo que soubéssemos continuaríamos insatisfeitos. É muito simples: os seres humanos querem viver e, no entanto, têm de morrer. A partir daí, o primeiro desejo é ser imortal. É claro que ninguém sabe com o que se parece a vida eterna, mas podemos imaginá-lo.
No meu sonho de vida eterna, não se passa grande coisa. Talvez por viver numa caverna. Sim, gosto das cavernas, são escuras e frescas e sinto-me seguro lá dentro. Muitas vezes me pergunto se houve verdadeiro progresso desde a vida nas cavernas. Quando estou lá sentado, ouvindo calmamente o barulho do mar, rodeado de criaturas amistosas, penso no que gostaria de suprimir deste mundo: as pulgas, as aves de rapina, o dinheiro e o trabalho. Provavelmente também os filmes pornográficos e a crença em Deus. De quando em quando, decido deixar de fumar. Em vez dos cigarros, prefiro tomar comprimidos que produzem um efeito estimulante análogo no meu cérebro. Além disso, tenho uma grande variedade de drogas sintéticas à minha disposição, e cada uma dessas drogas desenvolve a minha sensibilidade. Sou então capaz de ouvir ultra-sons, de ver os raios ultra-violeta – e outras coisas que tenho dificuldade em compreender.
Agora estou um pouco diferente, não só mais jovem, mas o meu corpo está transformado, tenho quatro pernas, é giro, conservo-me muito melhor de pé, solidamente ligado à terra. Mesmo quando bebo de mais, não tenho medo de cair. Contrariamente ao homem primitivo, ao canguru e ao pinguim, nada me espanta facilmente. E há mais: já não preciso de roupas. As roupas não são práticas, quaisquer que sejam as suas formas, dificultam a respiração da pele. Nu, sinto-me mais livre. O mais importante é que não sou nem macho nem fêmea – um hermafrodita. Antes, não sendo homossexual, só podia imaginar a sensação da penetração. Agora, tenho alguma ideia disso, é uma experiência fundamental que esperava realizar desde há muito. Já nada tenho a esperar. Alguns leitores perguntar-se-ão se a vida, na mais bela das cavernas com as criaturas mais adoráveis, não acabaria por ser aborrecida após milhares de anos (ou até centenas de milhares de anos, no meu caso). Não, penso que não, pelo menos para mim. Não acho aborrecido repetir indefinidamente aquilo que gosto de fazer, e até iria mais longe : a verdadeira felicidade é a repetição, no perpétuo recomeço da mesma coisa, como na dança e na música, por exemplo no Autobahn dos Kraftwerk. O mesmo se passa com o sexo: quando termina, queremos recomeçar. A felicidade é uma habituação, uma habituação que pode ser concentrada em coisas químicas ou em seres humanos; quando tenho os meus comprimidos ou os meus amigos, já não preciso de mais nada. O tédio é a alternativa à felicidade, ao quotidiano, aos novos produtos, às notícias – mesmo apresentadas de forma atractiva. Encontrei a felicidade na minha caverna, já nada tenho a esperar, tomo banho quando quero. Lá fora está calor e muita luz, penso um pouco na Alemanha, onde pessoas viveram juntas em pequenos espaços e fico contente por no paraíso não haver sobrepopulação. As pessoas são livres de escolher os seus túmulos, revolvem-se tanto quanto querem.
Abro os olhos e verifico que o meu sonho é muito superficial. Acendo outro cigarro, mordo o filtro; na verdade, não há harmonia com o universo. Nos momentos de felicidade, por exemplo ao contemplar uma bela paisagem, sei instantaneamente que não faço parte dela, o mundo aparece-me como algo estranho, não conheço qualquer lugar onde me possa sentir em casa. Nem sequer Deus pode resolver este problema, aliás, não acredito em Deus, ele não é necessário, nem aqui nem no paraíso. Acredito no amor, é a única coisa válida que temos, melhor do que um programa de fitness, melhor do que o desporto. Talvez um dia se realize o meu sonho de eternidade: serei então uma criatura com pernas, asas ou tentáculos, talvez noutro lado. Contrariamente à maioria das pessoas, não temo a morte; ao envelhecer, redescubro a minha juventude, há muito esquecida, e, por vezes, quando as coisas correm mal, refugio-me confortavelmente no meu trabalho. Os meus livros já me garantem uma forma de imortalidade.
Tradução portuguesa por Pedro Elói Duarte da tradução francesa por Michel Meyer da tradução inglesa por Roel de Bie de uma entrevista de Michel Houellebecq com o jornalista alemão Wolfgang Farkas, publicada em 2 Novembro de 2000 no Die Zeit e que faz parte de uma série intitulada "Ich habe einen Traum" (Tenho um sonho).
Michel Houellebecq
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§ 9. De Saída: Número 5 em preparação...
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