quinta-feira, junho 17, 2004

Ano Um / Número 6

--------- «(.)(.)» ---------

Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Die gestundete Zeit, por Ingeborg Bachmann
§ 4. Playmate absoluta do momento VI – María Zambrano
§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 6. Ensaio, por Monsieur de Montaigne
§ 7. Entrevista a Maria Filomena Molder, a propósito de "A Imperfeição da Filosofia" (Ed. Relógio D'Água, Novembro, 2003), por Helena Vasconcelos, naturalmente sem kind permission do Público de Sábado, 17 de Janeiro de 2004...
§ 8. De Saída: Número 7 (como sempre às Quintas!)...

--------- «(.)(.)» ---------

§ 1. Sumaríssimo

A começar, já agora, como deixar de saudar esta não-quadrada meia-dúzia de números (são 6) editados, e as mais de 550 visitantes, seguramente de mais-que-duvidosa ocupação (alguém acabará mais tarde ou mais cedo por nos ler e comentar???, desabafámos no número anterior, na última Quinta, sem este sufocante ar de apesar de tudo, triunfo extra-futebolístico contra matrioskas de trazer pelas ruas da amargura e questionável proveniência). Adiante.

Well, a verdade é que logo a abrir recaímos no bloomiano intersubjectivismo solipsista de Dito e Feito, por P.D., seguindo de imediato – adivinhe-se porquê? - para um poema que resolvemos verter por que Sim, só para ver o que dava, Die gestundete Zeit, (santinho!) sem ser pelas penas do nosso não menos ilustre Barrento.

A vítima da escolha da playmate absoluta do momento recaiu por unanimidade desta vez sobre María Zambrano, não dispensa as apresentações, que, todavia, não apresentaremos, para passarmos depois à sempre inesperada continuação da saga neo-cubista de A Explicação das Pássaras, por A.H.

Coube a M. de Montaigne o breve ensaio e finalizamos (Goooolo... de Portugal!) com a proposta de leitura de uma entrevista a que mui originalmente demos o repomposo título de: Entrevista a Maria Filomena Molder, a propósito de "A Imperfeição da Filosofia" (Ed. Relógio D'Água, Novembro, 2003), por Helena Vasconcelos, naturalmente sem kind permission do Público de Sábado, 17 de Janeiro de 2004...

E é tudo, folks!
Ficassem, neste caso, Vossas nentidades muito bem e até à próxima Quinta!

--------- «(.)(.)» ---------

§ 2. Dito e Feito, por P.D.

O dia seguinte

«O senhor Leopold Bloom comia com deleite os órgãos internos de mamíferos e de aves. Gostava da grossa sopa de miúdos, moelas apaladadas com noz, coração assado recheado, iscas fritas panadas, ovas de bacalhau fritas. Mais do que tudo, gostava de rins de carneiro grelhados que davam ao paladar um belo sabor de urina levemente perfumada...»

James Joyce, Ulisses


Dublin

Assim principia o dia de Bloom, em 16 de Junho de 1904.
O que fica após este dia? O mesmo do início: miudezas da vida e despojos do passado consumidos num longo monólogo de poucas regras, numa corrente ininterrupta da consciência concluída em seios que só querem dizer sim.
Devora-se as entranhas do dia, apalada-se a morte e vomitamo-nos, alternadamente, até ao resto da vida.
No fim, espera aquela que tece, desfaz e tece novamente os fios das horas. Reconhecer-me-ás nos andrajos? Cão, não me morderás?
Tiro-vos os fígados a todos e, mais tarde, também vós sereis comidos. Um dia... como os outros.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 3. Die gestundete Zeit, por Ingeborg Bachmann

Die gestundete Zeit

Es kommen härtere Tage.
Die auf Widerruf gestundete Zeit
wird sichtbar am Horizont.
Bald musst du den Schuh schnüren
und die Hunde zurückjagen in die Marschhöfe.
Denn die Eingeweide der Fische
sind kalt geworden im Wind.
Ärmlich brennt das Licht der Lupinen.
Dein Blick spurt im Nebel:
die auf Widerruf gestundete Zeit
wird sichtbar am Horizont.

Drüben versinkt dir die Geliebte im Sand,
er steigt um ihr wehendes Haar,
er fällt ih rins Wort,
er befiehlt ihr zu schweigen,
er findet sie sterblich
und willig dem Abschied
nach jeder Umarmung.

Sieh dich nicht um.
Schnür deinen Schuh.
Jag die Hunde zurück.
Wirf die Fische ins Meer.
Lösch die Lupinen!

Es kommen härtere Tage.



Ingeborg Bachmann

O Tempo Aprazado

Chegam dias fatídicos.
Até o tempo que resta
despontar no horizonte.
Em breve terás de calçar os sapatos
e guardar os cães.
Pois as tripas do peixe
apodrecem ao ar.
Morta é a vida das tremoceiras.
O teu olhar atravessa o nevoeiro:
até ver o tempo aprazado
despontar no horizonte.

Aí se enterra a amante,
com areia pelos cabelos
a tapar-lhe a boca,
à ordem do silêncio,
a vê-la morrer,
docilmente.
a cada abraço de despedida.

Não olhes em teu redor.
Calça os sapatos.
Vai guardar os cães.
Atira o peixe ao mar.
Esquece as tremoceiras.

Chegam dias fatídicos.

(versão de P.D. with a small help from A.H.)

--------- «(.)(.)» ---------

§ 4. Playmate absoluta do momento VI – María Zambrano


María Zambrano

--------- «(.)(.)» ---------

§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.

6. beber só. Seis. A carta.

Beber para viver a beber a vida. O vício alimenta-se a si mesmo, nem que seja rastejando por uma cerveja fresca, à custa de tudo e de todos, sobretudo de nós mesmos. Nenhum viciado ouve calmamente estas palavras, mesmo que ditas por uma viciada como eu, ou sobretudo por serem escritas por uma falta de pessoa como eu, uma pessoa. Assim, como no poema das máscaras, do rapaz de Sils-Maria... Como ela amava todos os seus vícios, até mesmo, ainda que cada vez mais ocasionalmente, o sexo apenas e tão só pelo prazer, pela dissoluta luxúria e nada mais, o no hard feeling’s da manhã seguinte. Beber e seguir viagem, enquanto houver dinheiro e mesmo quando não. Cravar? Tudo menos ter de deixar de lembrar de uma forma cada vez mais sistemática a necessidade de esquecer, de viver cada minuto sem ser para esquecer, como se houvesse divertimento mais nobre. Um beijo? Uma merda.
Penso nisso depois, um dia destes. Como sempre.
Começou a ler. Uma espécie de prelúdio incompreensível.

28.03.99 ? (que significado teria tido na altura a indecisão relativamente à data?)

Os Pobres

Introdução

O que é um pobre?
Porque é impossível gostar dos pobres?
Der Weltverbesserer
Lénine e a confusão.

A graça das coisas… Lembrou-se.
Há dias, conversando com outro amigo, não interessa qual nem quando, abordámos sem preparação, como, aliás, é nosso hábito, o tema filosófico da pobreza. Estávamos bem bebidos e já havíamos conversado um pouco antes de iniciar o repasto, durante o inevitável gin com tónica e gelo.
Divagava ele sem rede há uns bons mais de dez minutos acerca da literatura, quando decidiste elogiá-lo, ainda de volta de um resto de gin. Disseste-lhe que daria um excelente crítico literário, disso não tinhas a menor dúvida, embora a sua maior formação fosse a da vida e dos seus modos de acabar com várias gerações seguidas de pessoas “geniais”. A segunda parte daquilo que acabo de afirmar nem sequer disse, para não me sentir na obrigação insuspeitada de ter de dar o exemplo, de provar da mesma água. Também não quis aprofundar o assunto em demasia. Queria, ao que suponho, limitar-me a recolher algumas ideias fundamentais para, wie gesagt wird, dar um novo rumo à minha vida. Talvez, no fundo, fosse isso que todos procurávamos ao perder tempo a conversar com um amigo. Mas gostava de ouvi-lo, naquele momento em que aparentemente só ligava ao copo de gin muito pouco refrescante que aquecia as mãos e o que fazer delas. Até porque ninguém diz simplesmente: Se não estivesses aqui, não saberia o que fazer da minha vida e isso por vezes é a única dignidade que nos resta… Ninguém fala assim com ninguém e muito menos o farias enquanto te debruças no cansaço a desaparecer diante do pó de há coisa de alguns minutos, diante de um copo de gin onde fixar os dedos e os olhos mesmo sem ser à procura de consolo, de dissolução. Portanto, também não disseste isso. Afastaste os olhos e ouviste a resposta. Saber pôr o outro a falar sempre te pareceu mais importante do que repetir pela vigésima vez episódios passados da própria vida.

Não te apetecia pensar nisso. Qual poderia ser o gozo de explanar o que se sabe de antemão? Ouvir-nos dizer aquilo que consideramos uma verdade?

O sol não é o melhor conselheiro. É preciso descansar.
Mas antes, alguns afazeres domésticos...

O que é um pobre?, que raio de pergunta.

A seguir, do outro lado?, vinha finalmente a carta, dos tempos do primeiro portátil que teve e que só utilizava para matar o tempo, os vários tempos de solitaire.

“António,” começava assim,
“também eu preciso de palavras. E não são apenas as que vêm de fora, mas as que vêm, ou, pelo menos, costumavam vir de dentro. Isto não é fácil! Cada vez ponho mais em causa o acto de escrever, escrevendo. E isto faz tanto sentido quanto a ressurreição de Cristo. Julgo que pessoas como nós estão condenadas a serem mais pó do que os outros. Quero dizer: o pó prolonga-se por mais tempo. Porque, hoje, não tenho dúvidas de que somos da mesma estúpida raça que tem de e vai escrever para que os outros façam teses, ganhem o seu dinheiro, façam as suas vidas que rejeitámos (porque nem sequer fomos perguntados acerca da possibilidade de ter outra), ou digam que não faziam outra coisa senão estar connosco, quando a maioria das vezes (se estávamos com eles) não passava de não podermos estar connosco e não haver mais ninguém. Sim, estou convicto de que, com esta tua nova vida, vais começar (se é que já não o tinhas feito) a escrever. Quando digo escrever, digo fazer com as palavras a mesma merda que fazemos com os dias. Conheço os sinais! E é fodido, não é nada, pelo menos para nós. Estou em Istambul e apetece-me tanto viver como se estivesse em Lisboa, Viena ou Paio Pires. Não obstante, comporto-me como se viver fosse a minha vida. De fora, dizem: tens uma vida do caralho. Aquilo que não sabem, e que não podem saber, é que, seja do caralho ou da cona, interessa-me tanto quanto encontrar um restaurante sem bebidas (das que sabes). E há frases que escreves, em português, que são melhores do que os livros que esses gajos vão escrevendo nessa terra que não tem ponta por onde se pegue. Para mim são um estímulo! Para quê? Para morrer depressa e melhor! Que é o que julgo (pelo menos tenho essa pretensão) ser o efeito das minhas palavras em ti. A língua portuguesa interessa-me tanto quanto um dia de perfeito tédio. Mas se tivesse outra não sei se seria diferente, e nunca irei saber. António, um gajo lê na língua que pode ler, e, quanto a escrever, escreve na que lhe resta. O resto é adolescência mal resolvida, romantismo e falta de sobriedade. Com trinta e cinco anos (quase) já não há puta de paciência para essa merda. Quanto muito dizemos: por vezes, o tempo que gastamos, que somos, até não se desperdiça de volta das palavras. Agora imagina que seríamos professores numa qualquer Universidade desse país (ou noutro) e tínhamos de fazer crer que ler e escrever e pensar até podia ser uma coisa boa, ou pelo menos pensar que seria boa para nós, que nos daria algum poder. É nestes momentos que me sinto próximo de Deus, António. Quando sinto que não tenho ilusões e que isso, obviamente, não pode vir de mim. Como pode vir de mim qualquer coisa que não é humana? Sei que Deus para ti é apenas uma cerveja a menos que bebes, mas como pode um gajo não acreditar em Deus num mundo, cada vez mais, de homens, de escória? A existência de Deus revela-se na directa proporção do desejo de poder dos homens, não o contrário. Quanto menos se vê, mais há. Deus não é religião. Religião é apenas o poder dos homens. Deus é, pelo menos é o que me parece, o buraco que temos, que sentimos e que não conseguimos curar. E, quando estou a falar de buraco, não estou a falar do cu, estou a falar daquilo que nos põe a falar, a beber, a foder e, até, a dizer amor. Dizias que precisavas de palavras. António, precisamos mais do que isso, precisamos de nos reconciliar com Deus, com o buraco que nos habita, que somos. Feliz o homem que carrega culpas e desgraçado dele. E quando digo culpa digo consciência. E se digo consciência digo estar no buraco. E, olha, já não digo mais! Agora, se quiseres, diz tu. Um grande e forte abraço, daquela que, como tu, ainda se sabe perder e pedir palavras, apenas para nada, porque sim, Paula."

Era assim que gostava de assinar algumas das poucas putices mais importantes que escrevia. Há quanto não o fazia já? Há quanto tempo perdera a estranheza de escrever à máquina?...

Sent: Wednesday, April 19, 2000 11:39 PM

E depois uns olhos muito cansados. Mais ainda. Como esquecer a importância que foi a epifânia da primeira leitura d’ A Carta de Lord Chandos… A correspondência a querer ser e ser mais do que uma muleta estilistico-qualquer-coisa. Hoje já não estava em condições de mais do que acabar por ir jantar tardiamente com algum amigo que já não visse há muito tempo, o que não era difícil. Mais difícil seria encontrar algum disponível para lhe fazer companhia durante pouco mais do que algumas horas, o tempo de uma refeição decente. Não aguentava o contacto com os outros por muito tempo, excepção feita a B., sem acabar por se irritar ou começar simplesmente a sentir o incómodo da obrigação de dizer coisas interessantes.
E agora… uma e quarenta e cinco da madrugada, acabou por ficar em casa e só se despir já tarde dentro do dia seguinte.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 6. Ensaio, por M. De Montaigne


Michel de Montaigne

I, 51 - Da vaidade das palavras

(a) Um retórico do passado dizia que o seu ofício era fazer com que as coisas pequenas parecessem grandes e como tais fossem julgadas. (b) Dir-se-ia um sapateiro que, para calçar pés pequenos, sabe fazer sapatos grandes. (a) Em Esparta ter-lhe-iam dado a experimentar o azorrague por professar uma arte trapaceira e mentirosa. (b) E creio que Arquidamo, que foi seu rei, não terá ouvido sem espanto a resposta de Tucídides, ao qual perguntara quem era mais forte na luta, se Péricles, se ele: «Isso será difícil de verificar, pois quando o deito por terra, ele convence os espectadores que não caiu, e ganha.» (a) Os que, com cosméticos, caracterizam e pintam as mulheres fazem menos mal, pois é coisa de pouca perda não as ver ao natural, ao passo que estoutros fazem tenção de enganar, não já os olhos, mas o nosso juízo, e de abastardar e corromper a essência das coisas. Os Estados que longamente se mantiveram em boa ordem e bem governados, como o cretense e o lacedemónio, não tinham em grande conta os oradores.
(c) Aríston definiu sabiamente a retórica como a ciência de persuadir o povo; Sócrates e Platão, coma a arte de enganar e lisonjear; e aqueles que isto negam na sua definição genérica, confirmam-no por toda a parte nos seus preceitos. Os Maometanos proíbem-na de ser ensinada às crianças por causa da sua inutilidade. E os Atenienses, ao tomarem consciência de que a sua prática, a qual gozava de todo o crédito na sua cidade, era perniciosa, ordenaram que a sua parte principal, que consiste em mover as paixões, dela fosse retirada juntamente com os exórdios e as perorações.
(b) É um instrumento inventado para manipular e agitar turbas e multidões desordenadas, e que, à maneira da medicina, só se emprega nos Estados doentes. Naqueles onde o vulgo, onde os ignorantes, onde todos, tudo puderam, como os de Atenas, Rodes e Roma, e onde as coisas estavam em perpétua tempestade, abundavam os oradores. E, na verdade, nesses Estados viam-se poucas personagens atingir grande reputação sem o socorro da eloquência: Pompeu, César, Crasso, Luculo, Lentulo, Metelo apoiaram-se sobretudo nela para se alçarem à grandeza de autoridade aonde por fim chegaram, mais dela se valendo que das armas (c), e contrariando o que se pensava em melhores tempos. De feito, Lúcio Volúmnio, ao falar em publico a favor da eleição ao consulado de Quinto Fábio e Públio Décio, dizia: «São pessoas nascidas para a guerra, grandes na acção, rudes nas pugnas verbais: espíritos verdadeiramente consulares. Os subtis, os eloquentes e os eruditos são bons para ficarem na cidade como pretores a ministrar a justiça.»
(a) A eloquência floresceu mais em Roma quando os negócios públicos se achavam no seu pior estado e a tormenta das guerras civis os agitava, tal como um campo desocupado e incultivado produz as ervas daninhas mais viçosas. Assim, parece que os governos dependentes de um monarca têm dela menos necessidade que os outros, pois a estupidez e a ductilidade que se encontram na plebe e que a tornam sujeita a ser manipulada e meneada pelas orelhas ao doce som dessa harmonia, sem que chegue a sopesar e a conhecer a verdade das coisas pela força da razão, essa ductilidade, digo, não é tão fácil de se achar num só individuo, sendo este mais facilmente salvaguardado dos efeitos de tal veneno por uma boa educação e por bons conselhos. Não se viu sair da Macedónia nem da Pérsia nenhum orador de renome.
(b) Disse eu isto por causa de um italiano com quem acabo de conversar, o qual serviu como mordomo o cardeal Caraffa até à morte deste. Pu-lo a falar das suas incumbências. Fez-me ele um discurso sobre a ciência das goelas corno se estivesse a perorar acerca de uma importante questão de teologia. Enumerou-me as diferentes espécies de apetite, o que se tem em jejum e os que se têm após o segundo e o terceiro pratos; os meios quer de simplesmente os satisfazer, quer de os estimular e aguçar; a política dos molhos, primeiro tratada na generalidade, depois na particularidade; discriminando as qualidades dos seus ingredientes e os seus efeitos; e as diferenças das saladas consoante a época, as que devem ser aquecidas e as que devem ser servidas frias, e a maneira de as decorar e embelezar para as tornar mais agradáveis à vista. Após o que, ele encetou o assunto da ordem dos serviços, abundando em belas e importantes considerações.

(b) nec minimo sane discrimine refert
Quo gestu lepores, et quo gallina secetur.

[«e não é seguramente de somenos importância o saber como se trincha uma lebre e uma galinha» - Juvenal, V, 123-124]

(a) E tudo isto recheado de ricas e magníficas palavras, incluindo aquelas mesmas que se empregam para discorrer sobre o governo de um império.
Este homem trouxe-me à lembrança os seguintes versos:

Hoc salsum est, hoc adustum est, hoc lautum est parum,
Illud recte; iterum sic memento; sedulo
Moneo quae possum pro mea sapientia.
Postremo, tanquam in speculum, in patinas, Demea,
Inspicere jubeo, et moneo quid facto usus sit.

[«"Isto está salgado! Isto, queimado! Isto, pouco saboroso! Aquilo está como deve ser! Lembra-te de fazeres o mesmo da próxima vez". Aconselho-os cuidadosamente, na medida do meu parco saber. Por fim, ó Demea, ordeno-lhes que tenham os tachos luzidios como espelhos, e aviso-os de tudo o mais que deve ser feito.» - Terêncio, Adelphi, III, iii, 71-75]

A verdade é que os próprios Gregos grandemente louvaram a ordem e a disposição que Paulo Emílio observou no festim que lhes ofereceu ao voltar da Macedónia. Mas não falo aqui das acções, falo, isso sim, das palavras.
Não sei se com os outros acontece o mesmo que comigo, mas quando eu ouço os nossos arquitectos incharem-se com palavrões como pilastras, arquitraves, cornijas, ordem coríntia, ordem dórica, e outros que tais da sua gíria, não posso impedir que logo me venha à mente a imagem do palácio de Apolidon, ao passo que na realidade venho a descobrir que estão a designar as míseras partes da porta da minha cozinha.
(b) Quando ouvis dizer metonímia, metáfora, alegoria e outros similares termos gramaticais, não vos parece que se esteja a falar de alguma forma de linguagem rara e peregrina? São designações que se aplicam ao palavrório da vossa criada!
(a) É um logro parecido com este o de nomear os nossos cargos públicos com os grandíloquos títulos dados aos dos Romanos, ainda que não tenham nenhuma semelhança com eles quanto à função e, ainda menos, quanto à autoridade e ao poder. É-o também estoutro logro (que, em minha opinião, virá um dia a servir de testemunho da singular inépcia do nosso século) de indignamente atribuir a quem bem nos apetece os gloriosos sobrenomes com que a Antiguidade honrou, ao longo de muitos séculos, uma ou duas personagens. Obteve Platão, por consenso universal, o cognome de divino, que ninguém lhe ousou invejar, mas os italianos, que se gabam, e com razão, de comummente terem o espírito mais vivo e o discernimento mais são que os outros povos coevos, acabam de outorgar ao Aretino, no qual, salvo uma maneira de falar empolada e fervilhante de ditos agudos e, enfim, a sua eloquência, qualquer que ela seja, não vislumbro nada que paire acima do comum dos autores do seu tempo: era o que faltava que o aproximassem dessa «divindade» dos antigos! E o sobrenome de grande, nós o aplicamos a príncipes que nada possuem acima da grandeza popular.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 7. Entrevista a Maria Filomena Molder, a propósito de "A Imperfeição da Filosofia" (Ed. Relógio D'Água, Novembro, 2003), por Helena Vasconcelos, naturalmente sem kind permission do Público de Sábado, 17 de Janeiro de 2004...

Um brilho sem vacilações

[Maria Filomena Molder iniciou a sua fulgurante trajectória como docente do Departamento de Filosofia da Universidade Nova em 1980, onde lhe foi atribuída a cadeira de Filosofia Medieval. Dessa experiência ficou-lhe o interesse por Santo Agostinho, Santo Anselmo e outros doutores da Igreja com quem mantém vivo contacto, apesar de os seus interesses terem continuado a expandir-se, principalmente em campos tão férteis como a Estética e a Filosofia da Linguagem. Desta autora, é possível encontrar na mesma editora a obra "Semear na Neve".]

Mil FOLHAS - Como se tem desencadeado o seu percurso de professora de Filosofia Medieval até esta "abertura" para a Estética e para a Filosofia da Linguagem?

Maria Filomena Molder - Na verdade, não estava preparada para ensinar filosofia medieval, no sentido de já ter levado a cabo uma longa e exaustiva investigação. Mas foi a cadeira que me foi distribuída quando, em 1980, entrei para o Departamento de Filosofia da Universidade Nova, precisamente no seu segundo ano de existência, e me dediquei inteiramente ao seu estudo durante os dois breves anos em que a leccionei. No entanto, desde os meus tempos da Faculdade de Letras que alguns dos autores medievais e dos seus problemas me tinham afectado profundamente (e evoco aqui o Padre de Cerqueira, meu professor de Medieval). Exemplifico: Santo Agostinho e o mistério do tempo e da memória, o modo original de conceber a linguagem, o modo de citar (que tomei como regra íntima) - quanto mais próximo de nós está um texto, menos a citação aparece como uma citação, ficando, por assim dizer, incorporada nas nossas palavras; Santo Anselmo e a sua delirante prova ontológica, que tantas voltas nos dá à cabeça, uma autêntica mina para exploração das relações entre o possível, o real e o pensável; o problema dos universais (a Arca de Noé é uma das suas apresentações mais antigas), que vem ter connosco sempre que tentamos distinguir um gato de um cão ou de saber qual é a diferença entre a arte e uma obra de arte. Além destes, tive a oportunidade de voltar a estudar durante esses dois anos um autor, que é como o último dos Gregos, Plotino, aquele que já não se vê propriamente como filósofo, e se atribuiu apenas o papel de intérprete, e que para as coisas da Estética (que é uma palavra tão recente!) se revelou um autêntico manancial, sobretudo para a compreensão da relação entre forma e informe e para a visão do universo como o acto de um dançarino.

P.- Acha que a sua base "medievalista" a preparou para o desenvolver do seu pensamento ou precisou de fazer um "corte", voltando às raízes clássicas da nossa cultura?

R.- Releio sempre Plotino, que não é um pensador medieval, mas foi tão lido directa ou indirectamente pelos medievais, e regresso muitas vezes aos abismos agostinianos: ao imenso palácio da memória, ao labirinto do tempo (não só o famoso "se não mo perguntam sei o que é, se mo perguntam não sei o que é", mas também o surpreendente, o admirável, resultado - é que ele acaba mesmo por nos esclarecer em que consiste o tempo: uma distensão da alma). E, recentemente, por obrigações de distribuição de serviço, voltei à filosofia medieval, mas agora, e mantendo-se a minha impreparação nos termos referidos, decidi-me a ler com os estudantes "A Divina Comédia", na qual encontrei tudo o que esperava encontrar, mais tudo o resto: o "absoluto que pertence à terra", que sendo um leit-motiv de Broch, não se podia aplicar melhor a Dante - ele chamava-lhe liberdade; as relações entre poesia e filosofia, entre sonho, visão e poesia; a visão infernal do tempo; uma das compreensões mais temíveis do suicídio; o carácter desmedido, insolente, da poesia; uma metafísica da luz... Na verdade, encontra-se tudo n' "A Divina Comédia"! Levou-me a reler, por exemplo, o tratado sobre os anjos de São Tomás de Aquino. Acrescente-se que o melhor guia para "A Divina Comédia", poema que não poderia ser mais medieval e continua a resistir a qualquer esforço de classificação, é o poeta russo Óssip Mandelstam.

P.- O seu trabalho tem vindo a desenvolver-se de uma forma segura e revigorante. Como chegou a esta íntima conexão do pensamento filosófico com a literatura, a fotografia, o cinema, a ciência e as artes plásticas?

R.- Gostaria de lembrar que se pode fazer filosofia (aliás, o mesmo se passa com a arte) a partir do que quer que seja (embora não se faça de qualquer maneira, como também acontece com a arte), e sempre se fez. O primeiro crítico sistemático da poesia foi Platão, e o seu primeiro defensor, Aristóteles, que ainda sabia (e aqui ele já citava o dificílimo Heraclito) que em todos os lugares pode haver deuses ou, usando as palavras de Colli, o primeiro dever do filósofo é não caluniar as aparências. Desde pequena que não posso viver sem música e sem cinema. Descobri na adolescência a poesia, as outras artes.

P.- Fala de Sócrates e do seu pedido para que seja aceite a "natureza incompleta da filosofia". Em relação ao título deste seu livro - "A Imperfeição da Filosofia" - será que está a reportar-se às palavras do filósofo? Ao debruçar-se sobre essa "imperfeição" quer dizer que a sabedoria implícita no termo Filosofia não é completa e que em vez de "consolo" traz a inquietação inerente à descoberta continuada?

R.- Reli Boécio e a sua "A Consolação da Filosofia" - uma obra escrita na prisão de Ticinium em 524 ou 525, antes de ele ser executado - por causa do Dante. É um admirável esforço de se libertar do desespero, da desilusão, do medo da morte e do desprezo pela morte desonrosa. Nessa obra, vemos pela última vez brilhar sem vacilações a relação entre filosofia e modo de vida ou, melhor, a filosofia entendida como modo de vida, coisa que os Modernos tenderam a ocultar de forma mais ou menos eficaz. No meio da devastação, há quem jogue ao xadrez. Que a filosofia providencie a consolação tem alguma parecença com o jogo: suspende-se a relação com a imediatez, abre-se uma pequena fenda e tenta-se respirar melhor. Por seu lado, a imperfeição tem a ver com incompletude, um sentimento de perda, e com agilidade, leveza, tentar não cair como o acrobata. Isto é, a filosofia traz realmente inquietação e só atravessando essa parede ardente podemos chegar a vislumbrar que ela rima com "descoberta continuada".

P.- Refere o suicídio no contexto a que a ele se referiu Camus que disse: "Só há um problema filosófico realmente sério: o suicídio."?

R.- Não me sinto capaz de falar do suicídio a não ser por interposta pessoa. N' "A Divina Comédia", Dante dá-nos a ver duas inexcedíveis aproximações, ambas perturbadoras. Num dos círculos do Inferno, numa vastidão hostil, crescem umas estranhas árvores, em cujos ramos retorcidos em vez de seiva corre sangue humano. Com crueldade involuntária, Dante parte um desses ramos e ouve uns lamentosos gritos de dor. Sem o saber, acaba de mutilar um suicida, por quem ele tem grande admiração e sente piedade, Piero della Vigna, homem de espírito nobre, acusado injustamente de traição. O suicida aos olhos da crença cristã é um escândalo, pois é um gesto de rebelião contra a vontade criadora de Deus, através da rejeição de si próprio, do seu corpo próprio. E, por isso, o suicida é aquele que jamais poderá resgatar o seu corpo, perdeu o direito a ele, quer dizer, o mistério da ressurreição foi por ele absolutamente selado. A outra aproximação encontramo-la à entrada do Purgatório, guardada por alguém que não é só um pagão, mas também um suicida, Catão. Mas, aqui, que a morte própria tenha origem no amor pela liberdade é um excesso bem-vindo aos olhos de Dante. Mais perto de nós, e próximo de Camus, temos o testemunho de Jean Améry.

P.- No seu texto sobre Rilke fala da "atmosfera da civilização", essas sucessivas "crostas" criadas pelo ser humano, que nos isolam de Deus. Será que, como diz Steiner, a religião poderia ser definida como uma resposta narrativa à interrogação de Leibnitz: "Porque há alguma coisa em vez de nada?"?

R.- Que a civilização seja constituída por uma sobreposição de crostas que nos separariam de Deus é uma ideia wittgensteiniana, ou melhor, é a devolução por Wittgenstein de um lugar-comum de muitas culturas, incluindo a ocidental, qualquer que seja a sua formulação, e isto desde que nós nos podemos lembrar. Esse lugar comum exprime o sentimento de perda de um contacto íntimo com o mistério da vida, do ser, de deus ou dos deuses, e obriga muitas vezes a procedimentos mais ou menos austeros de desprendimento e ascetismo, que atravessam a religião, a filosofia, a arte: voltar a conhecer a simplicidade do coração, voltar a beber a água pura das fontes. O que é uma maneira de reconhecer um grau de inadaptação "quantum satis" do ser humano à sua própria história. A pergunta pelo nada, a pergunta de Leibniz (retomada de maneira particular por Heidegger, do qual Steiner é um grande leitor), é a pergunta que não se refaz nunca do mistério de haver isto tudo que há, e conheceu respostas antes de a filosofia as ter formalizado. A descrição do Génesis é uma dessas respostas, que protege, como um tesouro ou um escândalo incomunicável, o porquê. Num dos mais belos hinos védicos, isso, que não pode deixar de ser ocultado, é apontado assim: pode ser que aquele que sustenta tudo saiba o porquê desta existência secundária (que inclui os homens e os deuses), mas também pode acontecer que esse também não saiba.

P.- Diz que a "imoderação própria da actividade filosófica tem a ver com a natureza do amor". Parece uma referência a uma espécie de movimentação física arrebatadora como o sexo. Será que se refere a Eros e à nossa mortalidade?

R.- Há uma embriaguez própria do acto contemplativo, no sentido em que a suspensão da vida a que ele obriga pode levar a um comprazimento solipsista, mas esse estar consigo próprio também pode originar formas mais ou menos agudas de dilaceração. Como muito bem diz a imoderação a que me refiro, atribuindo-a à natureza do amor, tem a ver com o deus Eros, essa força física, cósmica, que faz mover tudo e, em particular esses que tentam decifrar os discursos escritos nas suas própria almas, e, portanto, apresenta-se como um desafio à nossa mortalidade. É no "Fedro" que Platão descobre esse chamamento, que permita vencer a tentação (e a ilusão) solipsista, e toma formas paradoxais. No caso do discurso de Aristófanes, encontramos esta pergunta: os amantes não procuram outra coisa a não ser estarem juntos, que querem eles? No caso do discurso de Diotima, que se faz ouvir pela voz de Sócrates, no termo da descrição da escala de graus da experiência erótica, surpreendemos a alma a deixar cair tudo o que parecia decisivo: a figura, o saber, o logos, de modo a poder despenhar-se no pélago, no mar do desejo.



Maria Filomena Molder

P.- A linguagem utilizada na sua escrita é muito próxima da Poesia e, em muitos aspectos possui uma espécie de esplendor da visualização cinematográfica e/ou fotográfica. Aliás, a sua íntima ligação com essas duas linguagens é bem explícita. Como distingue o olhar sobre a pintura, a fotografia, o cinema e o olhar focado na palavra e no pensamento?

R.- Há quem tenha, e de modo excelente (em particular os poetas e os artistas), encontrado grandes afinidades entre a palavra e a pintura. Mas, na verdade, trata-se mais da aproximação entre escrita e pintura do que da relação entre palavra e pintura.
O pensamento dá-se bem com a palavra. Não me encontro entre aqueles para quem as palavras não chegam e, em contrapartida, estão convencidos de que há outras coisas que chegam. A palavra nasce na nossa boca, um dos lugares íntimos do nosso corpo, e, ao mesmo tempo, solta-se, expandindo-se, criando correntes de energia, e, como se não bastasse, é imediatamente um esforço compreensivo e expressivo. Ao contrário do que acontece com as mãos, instrumentos de realização, à voz humana, paradoxalmente, porque não podia ser-nos mais íntima, é atribuído um estatuto de mediação, que certamente provém da sua vocação conceptual, a palavra engana, louva, fere, mata, calcula. Quer dizer, a palavra não se mistura com aquilo de que fala, as palavras não são coisas. As artes passam adiante dessa separação entre o que há e o nosso dizer, há um elemento nelas que resiste definitivamente ao poder do logos (o que também sucede na poesia, mas com contornos únicos: a palavra resiste à palavra, e aí a música faz uma das suas aparições), que é o poder de irem ter directamente com as coisas, de se colocarem ao lado delas. Não sendo um prolongamento do corpo, as artes fazem parte do reino dos corpos, e qualificam directamente o espaço (aqui a arquitectura toma a dianteira). A escrita, em parte, também conhece estas determinações, daí a relação com as artes, mas há uma parte da escrita que não pertence ao espaço, que procede do som e do espírito da voz. Acho que não respondi inteiramente à sua pergunta. Mas sugiro-lhe que fiquemos por aqui.

P.- Os problemas da linguagem atravessam a sua obra. Vivemos em tempos babélicos? Ou, pelo contrário, estamos já num pós-Babel? Será que a palavra se transformou em ruído, que vivemos enclausurados neste "mortal coil" [invólucro mortal] onde ecoa o "shuffle" [tumulto] de que fala Shakespeare em "Hamlet"?

R.- Dá muito que pensar que na "Epopeia de Gilgamesh", onde existe a primeira referência ao grande Dilúvio, destruidor de toda a vida (a que só escapou um ser humano, a primeira versão de Noé), tenha sido decidido pelos deuses, pela razão simples e suficiente de já não poderem suportar o ruído que os homens faziam. A Torre de Babel é um lugar de atracção atormentada e um lugar que originou muitos lamentos, em que se misturam a confusão das línguas, a mudez e a surdez, o ruído. De tempos a tempos o projecto da Torre retorna. Mas o momento em que Babel fosse resgatada, e o coração humano não conhecesse essa desmedida (talvez um outro nome para a pedra sacrílega que Nietzsche diz estar à porta de qualquer civilização), não seria o dia da vitória sobre a multiplicidade das línguas. Vejo-o mais como equivalente ao dia de Pentecostes: cada um falaria na sua própria língua e todos seriam capazes de entender.

P.- De que é que nós, os seres humanos, temos medo? Do vazio? Do Nada?

R.- Gostaria de lembrar que o primeiro texto literário conhecido, escrito na Suméria centenas de anos antes da "Ilíada" e da "Odisseia", a "Epopeia de Gilgamesh"(que é por um lado o nome da personagem e o próprio autor), concentra-se em volta de duas experiências, que se podem abater sobre qualquer um de nós separadamente, mas que no poema são simultâneas: cair em si e descobrir o medo da morte pelo escândalo da morte alheia, a daquele que se ama. Devido a essas descobertas, acompanhadas por sentimentos insuportáveis de terror e de perda, Gilgamesh empreende uma viagem à procura da imortalidade. No termo da viagem, depois de ter falhado todas as tentativas de o conseguir (e que se resumem, por um lado, à impossibilidade de dominar o tempo e, por outro, à incapacidade de se metamorfosear até ao fim), o príncipe Gilgamesh regressa à sua cidade de Uruk, senta-se à beira das suas muralhas e escreve num poema tudo aquilo por que passou. Quer dizer, aquele que procurou desesperadamente, e em vão, por uma imortalidade incomportável, acaba de surpreender uma outra forma de imortalidade, a única que nos convém: imprimir sinais em tabuinhas de barro, contar uma história. Mesmo presentes, os deuses não atravessam sempre essa história, sobretudo quando o que está em causa é contar a alguém aquilo que aconteceu, uma prerrogativa humana. É aí que se engendram o poder da memória, o dever da transmissão e a tarefa de rememorar. Por outro lado, se nós conseguimos imaginar a corrupção do nosso corpo, o nosso tornar-se cadáver, já não somos capazes de modo nenhum de antecipar a irrealidade do nosso pensamento, quer dizer, a imaginação sem a condição do espaço emudece e paralisa. Isso é fonte de grande angústia.

P.- No ensaio que dá o título ao livro fala de Platão e do seu "projecto de uma arte de escrita" que escapasse ao "destino" da maior parte dos textos: ou serem uma "fonte de equívocos", encantando os leitores com falácias - domínio do romance, da ficção a que tanto quis fugir Daniel Defoe; ou serem um instrumento mais ou menos imposto ao leitor quando se entra nos domínios da retórica, da política ou da pedagogia. Essa "arte de escrita", do domínio filosófico, ganha em liberdade, permitindo uma espécie de "desprendimento" e de alastramento nos vários campos da experiência e do saber que parece ser do seu agrado. Concorda?

R.- Nessas hipóteses interpretativas, acerca do que a escrita filosófica não é, fazem-se ouvir as palavras de Platão sobre o assunto: a escrita é sempre enganadora ou porque encanta ou porque persuade e, em qualquer dos casos, em geral, a escrita é impotente, muda e incapaz de se defender. E ele, no "Fedro", tenta a introdução do único gesto que poderia diminuir essa impotência, justamente um projecto de escrita filosófica ou uma arte da escrita, em que aquele que escreve adverte aquele que lê contra os perigos em que está aquele que escreve, contra a petrificação, a esclerose, a mudez do efeito retórico. Gosto muito dessa expressão: "uma espécie de 'desprendimento'", que é ao mesmo tempo reserva, poder juntar um tesouro, e liberdade de seguir em qualquer lado, e em qualquer coisa, os vestígios daquilo que se procura.

P.- Alain de Botton - que escreveu "As Consolações da Filosofia" - diz que os seres humanos têm seis "gurus" para seis preocupações universais: Sócrates e a impopularidade; Epicuro e a falta de dinheiro; Séneca e o estado de frustração; Montaigne e a imperfeição; Schopenhauer e desgosto, Nietzsche e a necessidade da dificuldade. É uma espécie de "filosofia, modo de usar". Que autores escolheria - estes ou outros - como "pilares" a que podemos sempre recorrer?

R.- Não há experiência mais gratificante do que o reconhecimento da grandeza de alguém, mas essa experiência contém uma ameaça, a de se ser aniquilado. Para escaparmos a essa ameaça, é preciso que transformemos o reconhecimento da grandeza alheia em sentimento de veneração. Não se pode começar a pensar verdadeiramente sem essa forma de iniciação, que implica olhar para trás, conservar as cinzas, pagar as suas dívidas, provar a si próprio que não se é mais indigno do que aqueles que nós desprezamos. Estas palavras não poderiam ter sido escritas por mim, sem Goethe, Baudelaire, Benjamin e Montaigne. Mas ainda falta falar de Heraclito, Platão, Aristóteles, Plotino, Kant, Nietzsche, Wittgenstein, Broch, Colli. É evidente que a série está incompleta.

P.- Os seus livros possuem a inefável qualidade de poderem ser lidos sem uma preparação puramente filosófica. [Será que deseja fazer da prática do pensamento um instrumento vivencial, como em tempos idos era a leitura da Bíblia?] Aquilo a que chamou a "descoberta continuada" poderá estar ao alcance de (quase) todos?

R.- "Os limites da alma nunca os conhecerás", terá dito Heraclito por meio de um dos seus transmissores, o que é uma bela maneira de se contrapor à advertência socrática sobre os limites, o célebre "conhece-te a ti mesmo!". Ele que era e foi conhecido pelo seu desprezo indefectível pela multidão dos homens e pelas suas variadas formas de cegueira e embuste, não pôde evitar uma declaração de comunidade, que é, ao mesmo tempo, uma prova de confiança na possibilidade de nos decifrarmos a nós próprios: "A todos os homens pode caber a sorte de se reconhecerem a si mesmos e de sentirem a imediatez (o mais íntimo, o frémito da vida)".


(*) Publicado no Jornal Público - Suplemento Mil Folhas - www.publico.pt Sábado, 17 de Janeiro de 2004.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 8. De Saída: Número 7 (como sempre às Quintas!)...