quinta-feira, julho 08, 2004

Ano Um / Número 9

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Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. What is a saint?, Leonard Cohen
§ 4. Playmate absoluta do momento IX – Elisabeth Foster-Nietzsche
§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 6. Problemas narrativos, Boccaccio
§ 7. Irresponsabilidade e inocência, Friedrich Nietzsche
§ 8. De Saída: Número 10 (como sempre às Quintas!)...

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§ 1. Sumaríssimo

De regresso. Pois... Só isso. Alguns acontecimentos recentes deixaram-nos momentaneamente sem palavras. Não pedimos desculpa por isso. As circunstâncias são tudo, nós não somos nada.

Fiquem! Ou então não...

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§ 2. Dito e Feito, por P.D.

Perplexidade

Perplexo no mundo d’aquém tudo. Indeciso? Resolutamente, não! Esperar pela surpresa salvífica, em tédio a cair no chão escorregadio todo gelado e sem arestas da vida positiva. Descalços ao frio os sapatos de pedra, elevo-me em contemplação teórica, praticamente nu e cheio de mim, menos que verme e mais do que inadmissível anjo.

E vi, como uma árvore que sonha com Deus, que a terra pesa e segue-me, e eu sigo-a também, desconfiado da razão e sem saber fim senão a fonte que irá secar, já e ainda não.

Sempre o mesmo, repito. Sempre o mesmo para o mesmo de sempre. Nisso toda a fé, a única que cabe em casa do sentido. E a rir, a rir mil risos por ser assim, como pode ser, e ainda bem, admirado por haver coisas, em geral, as coisas que me cabem e eu ficar ao lado delas, à altura.

De cima para baixo, eu sou o númeno prático e tu, experiência, fica por aí, mas não me toques ainda.


Santos Carvalho, Encarnação

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§ 3. What is a saint?, Leonard Cohen

What is a saint? A saint is someone who has achieved a remote human possibility. It is impossible to say what that possibility is. I think it has something to do with the energy of love. Contact with this energy results in the exercise of a kind of balance in the chaos of existence. A saint does not dissolve the chaos; if he did the world would have changed long ago. I do not think that a saint dissolves the chaos even for imself, for there is something arrogant and warlike in the notion of a man setting the universe in order. It is a kind of balance that is his glory. He rides the drifts like an escaped ski. His course is the caress of the hill. His track is a drawing of the snow in a moment of its particular arrangement with wind and rock. Something in him so loves the world that he gives himself to the laws of gravity and chance. Far from flying with the angels, he traces with the fidelity of a seismograph needle the state of the solid bloody landscape. His house is dangerous and finite, but he is at home in the world. He can love the shape of human beings, the fine and twisted shapes of the heart. It is good to have among us such men, such balancing monsters of love.

L. Cohen, Beautiful Losers (1966)

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§ 4. Playmate absoluta do momento IX – Elisabeth Foster-Nietzsche


Elisabeth Foster-Nietzsche

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§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.

8. a caminho da Loba, mais arrumações.


Aquela carta é que não lhe saía da cabeça, mas deixava andar, como pensava e por vezes dizia. A música de aeroporto e a terceira cerveja da manhã eram a companhia para um saltinho à Loba, como se referia às suas nem sempre curtas estadias em Roma. Depois de uma vaga olhadela pelos jornais e por uns quantos cigarros o estômago reclamava agora os cuidados de mais um calmante leve, só para embalar. Como a embalava também sempre a leitura de Blanchot. Releu, já mais calma, uma passagem sublinhada:
O autor que escreve precisamente para um público, na verdade, não escreve: é esse público que escreve e, por esta razão, esse público já não pode ser leitor; a leitura é apenas aparência, na realidade ela é nula. Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas, ninguém as lê. Daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e os descobrir a eles mesmos: é que os outros não querem ouvir a sua própria voz, mas a voz de outro, uma voz real, profunda, incómoda como a verdade.
Música insistente aquela. The spy who loves me, na versão de Carly Simon, claro, não podia ser uma leve impressão sua. Dirigiu-se ao portão de embarque e, pelos vistos, embarcara num sono profundo ainda antes do avião descolar. Um rosto simpático e talvez algo profissionalmente preocupado de hospedeira, pedia-lhe agora amavelmente que se levantasse e saísse. Tinham aterrado há alguns minutos.

Não se lembrava bem do breve sonho mas tinha algo a ver com a sua mania de abdicar sempre de tudo, sobretudo do que mais prezava. A nova peça de Max, claro, seria apenas mais um sucesso a juntar a todos outros que lhe fora forjando. Mais uma vez a crítica elogiaria a sensibilidade quase (sic) feminina da sua escrita, a sua preocupação de dar a pensar como quem dá à luz..., e outras aberrações supostamente hermenêuticas fariam jus ao velho estereotipo sexista. Ele rebentaria de riso e de vaidade e permaneceria em festa até à necessidade de um novo cheque.
Contas e mais contas... Felizmente o dinheiro continuaria a chegar para essas e todas as outras. A pilha de cartas na caixa do correio, seguramente mais contas pagas e outras por pagar, não deixava dúvidas, caso as houvesse, da sua ausência prolongada. Estaria, portanto, sozinha mais uma vez entre os últimos livros e outros fantasmas menos cooperantes. Sem Laura para brincar, rir e rever. Precisava apenas do tempo de arrumar os papéis numa semana e deixar tudo tratado com Laura até ao próximo retiro romano. Deixou cair o saco de viagem e dirigiu-se ao frigorífico para matar com o que houvesse a sede que tornava a acordar. Que dor de cabeça.

Tinha tudo encaixotado em dois dias e ainda não aparecera ninguém. Resolveu comemorar sozinha, deixando de fora apenas o manuscrito revisto daquele que seria por certo o seu último romance. Faltava, pelo menos, ainda uma releitura das partes mais obscuras, não porque quisesse ser mais clara, mas por uma questão essencial de coerência estilística, a única que ainda prezava por esses dias. Seria mais uma historieta, pensou.

Saiu. A noite fria, numa cidade onde não corremos o risco de ser reconhecidos, continuava a sua rotina de sempre. Revisitou os mesmos bares da zona sul, cumprimentou de passagem um vago poeta místico encalhado no Movies, entre dois black label. Falaram vagamente da superioridade notável da prosa e da necessidade de pôr termo à rameiragem pululante da chamada nova escrita. Em vez do super-homem, um super vazio que já nem se notava como tal.

- Quando voltas, miúda? Que Platão (risos) te acompanhe!, gritou-lhe ainda de um trago.
- Ciao!

De novo o frio cá fora. Andar. A Praça de Espanha continuava no sítio. Reconfortante era também e ainda mais aquele céu claro de início de manhã, as primeiras pombas, poder respirar numa quase paz. Uma pomba bêbeda, como ela, à procura da salvação, absurda. Quando só se tem o amor da despedida o reencontro não cala este vazio. Partia de novo amanhã, mas não para Genebra como lhe dissera. Precisava do espaço de Lisboa, daquela luz fria e azul-branca. Precisava de rever o Jardim da Parada antes de um novo ano de pequenas mentiras que se aproximava, as luzes de Natal na Avenida da Liberdade, o reencontro com P.
Voltou para casa e adormeceu.

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§ 6. Problemas narrativos, Boccaccio

Problemas narrativos


Uma alegre companhia de damas e cavaleiros, convidados de uma dama florentina num seu palacete de campo, depois da refeição dão um passeio a pé a caminho de outra amena localidade dos arredores. Para tornar mais agradável o caminho, um dos homens oferece-se para contar uma história.
«Dona Oretta, quando quiserdes, grande parte do caminho que teremos de andar, levar-vos-ei a cavalo numa das mais belas histórias do mundo».
Ao que a dama respondeu: «Senhor, eu mesma vo-lo peço muito, e ser-me-á mui agradável».
Ao ouvi-lo, o senhor cavaleiro, que talvez não se houvesse melhor com a espada à cinta do que com a língua a contar histórias, começou uma sua narrativa, a qual na verdade em si era mui bela, mas que ele, ora três, quatro e seis vezes repetindo uma mesma palavra, ora tornando atrás, ora dizendo: «Não é bem assim» e muitas vezes os nomes errando, trocando uns pelos outros, teimosamente a estragava: pessimamente, sem adaptar as qualidades das pessoas e dos acontecimentos ao tom em que contava.
Pelo que à Dona Oretta, ouvindo-o, com frequência vinham suores frios e um desfalecimento do coração, como se doente estivesse prestes a morrer; e como mais não podia aguentar, sabendo que o cavaleiro se metera num pântano de que não conseguia sair, prazenteiramente lhe disse: «Senhor, este vosso cavalo tem assaz mau trote, pelo que vos peço que vos praza deixar-me ir a pé».

Novela de Boccaccio, citada por Italo Calvino em Lezioni Americane.


Six Memos, Italo Calvino

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§ 7. Irresponsabilidade e inocência, Friedrich Nietzsche


Friedrich Nietzsche

Irresponsabilidade e inocência


A plena irresponsabilidade do homem pelo seu procedimento e pelo seu carácter é a gota mais amarga que o estudioso tem de engolir, se foi habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza da sua humanidade. Devido a isso, todas as suas estimativas, distinções, aversões se desvalorizam e tornaram erróneas: o seu sentimento mais profundo, que ele dedicava ao mártir, ao herói, tornou-se equivalente a um erro; já não lhe é lícito elogiar, nem censurar, pois é despropositado elogiar e censurar a Natureza e a necessidade. Tal como ele gosta de uma boa obra de arte, mas não a elogia, porque esta nada pode por si própria, tal como ele se encontra perante a planta, assim tem de estar perante as acções dos homens, perante as suas próprias. Pode admirar nelas energia, beleza, plenitude, mas não lhe é permitido encontrar aí méritos: o processo químico e a luta dos elementos, o tormento do doente, que anseia pela cura, são tão poucos méritos quanto aqueles combates e estados de emergência psicológicos, em que uma pessoa é arrastada para cá e para lá, por diversos motivos, até que, finalmente, se decide pelo mais poderoso – como se diz (mas, na verdade, até que o motivo mais poderoso decida quanto a nós). Todos esses motivos, porém, e por muito que lhes demos nomes elevados, cresceram a partir das mesmas raízes, em que nós julgamos residirem os venenos malignos; entre acções boas e más, não há diferença de espécie, mas, quando muito, de grau. Acções boas são más acções sublimadas; más acções são boas acções tornadas grosseiras e estúpidas. É apenas o anseio do indivíduo pelo gozo de si próprio (juntamente com o receio de ser privado do mesmo) que se satisfaz em todas as circunstâncias, actue o homem como puder, isto é, como tiver de actuar: quer seja em actos de vaidade, vingança, volúpia, interesse, maldade ou astúcia, quer seja em actos de sacrifício, de compaixão ou de inteligência. Os diferentes graus na capacidade de ajuizar decidem para onde alguém se deixa levar por esse anseio; está continuamente presente a cada sociedade, a cada indivíduo, uma hierarquia de bens, segundo a qual ele determina as suas acções e julga as dos outros. Mas essa escala modifica-se continuamente, muitas acções são denominadas más e são apenas estúpidas, porque o grau da inteligência, que se decidiu por elas, era muito baixo. Sim, num certo sentido, até todas as acções são estúpidas, ainda hoje, pois o grau mais elevado de inteligência humana, que pode ser alcançado hoje em dia, ainda será seguramente ultrapassado: e, então, numa retrospectiva, todo o nosso comportamento e o nosso juízo parecerão tão limitados e inconsiderados como, hoje, se nos afiguram limitados e inconsiderados o comportamento e o juízo de tribos selvagens e atrasadas. Reconhecer tudo isto pode causar profundos sofrimentos, mas, depois, há uma consolação: esses sofrimentos são dores de parto. A borboleta quer romper o seu casulo, puxa por ele, rasga-o: então, cega-a e confunde-a a luz desconhecida, o império da liberdade. É naqueles homens, que são capazes dessa tristeza – quão poucos eles serão! –, que será feita a primeira experiência para ver se uma humanidade moral se pode transformar numa humanidade sábia. O sol de um novo evangelho lança o seu primeiro raio sobre os mais altos cumes na alma desses isolados: aí, as névoas concentram-se, mais densas que nunca, e, ao lado um do outro, encontram-se o fulgor mais claro e o crepúsculo mais sombrio. Tudo é necessidade – é o que diz o novo saber: e esse saber é ele próprio necessidade. Tudo é inocência: e o saber é o caminho para chegar à compreensão dessa inocência. Se o prazer, o egoísmo, a vaidade são necessários para a produção dos fenómenos morais e da sua suprema floração, o sentimento da verdade e da rectidão do conhecimento, se o erro e o extravio da fantasia eram o único meio, através do qual a humanidade conseguiu erguer-se pouco e pouco a este grau de auto-esclarecimento e de autolibertação – quem ousaria ficar triste, ao aperceber-se da meta, a que esses caminhos conduzem? Tudo no campo da moral resulta de um processo evolutivo, é mutável, inconstante; tudo está em movimento, é verdade, mas também tudo vai com a corrente, em direcção a um objectivo. Embora o hábito hereditário dos erros de apreciação, de amor e de ódio, possa continuar a prevalecer em nós, sob a influência, porém, do saber crescente, ele tornar-se-á mais fraco: um novo hábito, o de compreender, de não amar, de não odiar, de abranger com a vista, implanta-se a pouco e pouco em nós no mesmo terreno e, dentro de milhares de anos, será talvez suficientemente poderoso para dar à humanidade força para gerar o homem sábio, inocente (consciente da sua inocência), tão regularmente como, actualmente, ela gera o homem não-sábio, injusto, consciente da sua culpa – ou seja, a necessária condição prévia, não a antítese daquele.

F. Nietzsche, Humano Demasiado Humano, 107

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§ 8. De Saída: Número 10 (como sempre às Quintas!)...