quinta-feira, agosto 05, 2004

Ano Um / Número 13

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Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo.
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. A Ballade of Suicide, por G.K. Chesterton.
§ 4. Playmate absoluta do momento XIII – a ilustríssima e doce décima-terceira Dama, futuramente designada PAM X…: Laura Xi, uma simples desconhecida, em vez de Laura.
§ 5. Laura, por A.H.
§ 6. Auto-entrevista à Assembleia Editorial d’ O Saca-Mulas Oriental, concedida pelos próprios bosses, via Messenger 6.2, por ocasião da elaboração deste Número algo azíago e mágico, 13, na vez do habitual Contos, que os tempos estão para abusar e desabusar deste nosso chumbo da casa, à falta de melhor (ouro, prata, jóias, negrísimas pérolas, mulatíssimas arejadas e fresquinhas de cheiro pelas brisas do Índico…) ideia em tempo considerado útil de publicação, id est, cerca da ½ noite, mais badalada menos coisa.
§ 7. A Noção de Gasto, (II), Georges Bataille.
§ 8. De Saída: Número 14 (como sempre às Quintas!)...

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§ 1. Sumaríssimo

E eis-nos chegados que somos a uma primeira semana de Agosto - como esta, aparentemente tão deveras insignificantezinha como quase todas as restantes, diga-se -, em que temos pelo menos a lamentar (?) a somente hoje anunciada, apesar de ocorrida, ao que parece, no incício desta mesma semana, última passagem de Henri Cartier-Bresson, com os seus respeitabilíssimos e bem curtidos 95 anos de vida (e quase outros tantos de simplesmente fotógrafo, pantomineiro do Ir sempre vendo alguma coisa e o doce vício de captar, imagem de marca da insubstituível – repararam a “homenagem” no final de Dito & Feito, hum? - Magnum, entre outras, esse artesão do irrepetível hic et nunc, para os mais distraídos destas coisas da Imagem fixada),



Henri Cartier-Bresson (1908 – 2004)

iniciamos como sempre, de resto, com as palavras do nosso, salvo seja, caro Dr. P.D. e do seu (quase a meio caminho de entre-aqui-e-a-Cornualha, propriamente dita, depois de uma frugaz passagem prévia pela Baker Street) Dito & Feito, que continua a ser uma referência fundamental deste bloguIm – e páro de novo por aqui, que já me treslongo pelas inconfidências grotescas de quem, aparentemente, não tem mais o que dizer; seguimos com um inesperado (?) poema dess’outro não menos ilustre anglófono e literator de sua graça G.K. Chesterton, intitulado A Ballade of Suicide, um tema sempre tão conveniente, a propósito e aprazível de mais um agostozinho estival desta nossa amada vidinha habitualmente tristonha e sem consolo possível.

Passamos - sem a mínima Queluz-Belas de superstição, vergonha, ou até de outro resíduo de crendice popular (felizmente, de novo a passar de voga entre nós sob o disfarce de New Age mais ou menos rural) -, agora a apresentar um cliché da nossa Décima-terceira Dama, a muito aplaudida e sempre bem recebida playmate (não, ainda não é hoje que colocamos “mulherio” a sério, haja paciência, minhas senhoras e meus senhores…): a soberba Laura Xi, em vez da verdadeira e muitíssimo menos carnalmente apetecível Laura.

Logo em seguida, retomamos a escrita ultraretorcida, mais do que algumas das cabras que cá eu sei, de A.H., que desta vez, creio eu que… nem vos conto. O melhor é acabarem por ler mesmo a prosápia do animal, se for caso disso, ou, em simpática e económica alternativa, simplesmente passar o olhar adiante para a reprodução original da Auto-entrevista à incansável dupla de Ases da Assembleia Editorial d’ O Saca-Mulas Oriental, concedida […], etc. etc. – uma só surpresa!

Por último e, last but not least…, a Segunda Parte (de um total de apenas III, descansai) de A Noção de Gasto, pela pena inconfundível de Georges Bataille, no melhor do seu ensaismo da boa cepa gaulesa.

E resta-nos, finalmente, mais uma até-breve despedida que a prosa já vai mais que longa! Irra!

Na próxima semana talvez surjam mais novidades… (com)prometoras (possíveis colaborações de outras/os autoras/es) e/ou estrita e simplesmente cumpridoras do original espírito (as Voraussetzungen, como lhe chamámos, lembram-se?) desta coisa-exquis que acaba por vir a ser O Saca, como sempre acabou por tornar-se já conhecido, naturalmente, nos meios mais claroescurecidos cá do Lusitano Burgo, sobretudo Lisboa e arredores (tais como a cosmopolita Cidade de Santos, Brasil, Aldeia de Paio Pires, ao Casal do Marco/Seixal, Trancoso e Beiras em Geral, Parque Expo e até mesmo das ex-Províncias Ultramarinas: na tão martirizada cidade de Bissau, da não menos esquecida República da Guiné-Bissau, etc.).

Saravá! E façam a vocês mesmos o favor de não fazerem favores a ninguém. Ou então, Sim. Boa semana!


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§ 2. Dito e Feito, por P.D.


A lágrima e o arroto


entendeu que da morte
a vida se nutria.
no matadouro vai gemendo o boi,
no inverno, à porta, uiva o cão.

a doença de um grande,
a morte dos pequenos.
um grande mal-estar,
um pequeno dissabor.

da riqueza à rua
da pobreza ao esgoto.

a lágrima e o arroto.


[Elliot Erwitt, USA, Pennsylvania, 1950.]

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§ 3. A Ballade of Suicide, por G. K. Chesterton



A Ballade of Suicide

The gallows in my garden, people say,

Is new and neat and adequately tall;
I tie the noose on in a knowing way
As one that knots his necktie for a ball;
But just as all the neighbours--on the wall—
Are drawing a long breath to shout "Hurray!"
The strangest whim has seized me. . . . After all
I think I will not hang myself to-day.

To-morrow is the time I get my pay--

My uncle's sword is hanging in the hall--
I see a little cloud all pink and grey--
Perhaps the rector's mother will not call-- I fancy that I heard
from Mr. Gall
That mushrooms could be cooked another way--
I never read the works of Juvenal--
I think I will not hang myself to-day.

The world will have another washing-day;
The decadents decay; the pedants pall;
And H.G. Wells has found that children play,
And Bernard Shaw discovered that they squall,
Rationalists are growing rational--
And through thick woods one finds a stream astray
So secret that the very sky seems small--
I think I will not hang myself to-day.
ENVOI
Prince, I can hear the trumpet of Germinal,
The tumbrils toiling up the terrible way;
Even to-day your royal head may fall,
I think I will not hang myself to-day.

G.K. Chesterton

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§ 4. Playmate absoluta do momento XIII – em futuro muito próximo a ser redenominada PAM XIII, anotai, e segs. - Laura Xi, a desconhecida, em vez de Laura, a verdadeira.


Laura, uma qualquer porque não encontrámos A Laura, preparando-se para pinar, i.e., executar o profano e salutar exercício do Pino.



Laura, uma qualquer porque não encontrámos A Laura, em pleno pino.


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§ 5. Laura, por A.H.


Laura.

Ainda a terminar de vestir-se meio apressada, parece que estou a vê-la como dantes, meio entediada, por assim dizer, endireitando com desprezo o rumo à saia pelo joelho cinzenta ao melhor estilo intelectual-mf, ou pós-existencialista, o que para o caso vinha a resultar na mesma tão aparente contradição, uma vez que, afinal, na cama ela era quase sempre exageradamente soberba e tudo menos isso, livra!, e ainda bem, de se lhe tirar o chapéu, para quem como eu também noutros tempos por lá passou. Mas como nela até o ar angélico de galdéria vagamente seminarista, ou mesmo, em certas noites em que saíamos, de menina-Opus, irmãzinha entradota de abadia, ou recruta do Exército de Salvação, ao assentar-lhe assim que nem uma luva naquele bem esculpido traseirinho com que os abençoados pais lhe deram condições de sobrevivência muito acima da média das suas posses, provocava-me ainda agora e sempre uma imensa e felizmente incontrolável tesão.
Colocou a boina negra a condizer, depois de cuidados estarem a imprescindível pintura vermelho escura dos lábios e o ligeiríssimo petit toque de base. Afinal de contas, já não era propriamente uma menina, embora ainda conseguisse sem a menor dificuldade fornicar como tal, ou talvez mesmo melhor sob muitos dos aspectos que agora só atrapalhariam a narrativa.
O que sucede é que era uma daquelas mulheres tão notoriamente bf’s que quase chegavam a dar raiva, sobretudo a muito e a bom parolo do costume, uma vez que, para mim, prefiro continuar a guardar a recordação ardente de uma antiga paixão.
Sabia muitíssimo bem o que pretendia da sua vida, só isso. Talvez apenas isso fosse o muito menos que suficiente que muito poucos lhe perdoavam sempre com cinismo, embora evidentemente não precisasse da estúpida pretensa compaixão de ninguém, pensava agora, enquanto ia calçando vagarosamente as finíssimas meias de seda pretas, com aquela vulgar habilidade que ao que parece só as fêmeas possuem, ou pelo menos aparentam melhor tê-la, tal como visão quadricromática, ou a capacidade e valentia para fazer muito mais que apenas uma azelhice em simultâneo. Fumando já a cigarrilha pós-coital, desta vez apenas uma que-remédio era o que havia, Café Crème, à falta de melhor e mais avisado apetrechamento pré-fodal, continuava a pensar em Inge, na necessidade de lhe dar, pelo menos, pelo telefone uma qualquer satisfação, afinal, apesar de também ao mesmo tempo não lhe sairem ainda da cabeça as imagens, palavras, sons e vozes do breve pesadelo que não chegara a acabar de ter por completo. Tinha um sono leve, quase caridosamente fingido para evitar alguns constrangimentos na hora da despedida. O deles, o de estarem verdadeiramente fodidos até ao pré-AVC e adormecerem quase de imediato que nem melros. O dela, o de preferir sair sozinha do habitual hotel de cinco estrelas da capital (não tinha idade, dizia, nem sequer gosto e paciência para menos), onde praticava a profana arte de bem cavalgar toda a sela amiga, com conhecidos esporádicos e até os chamados – por ela, claro – actos de caridade que nem a um escorpião se deviam negar, quanto mais àquele seu cão desejo de simplesmente gostar de perder a cabeça e acabar por fazer mais um broche apressado a um colega de faculdade que andava sempre muito tenso por causa do mestrado, como dizia.
(…)


Chienne...

[… quanto ao seguimento... está atrasado, naturalmente, para esta edição ainda, em revisão de provas, comme d’habitude, porque hoje ainda por cima até me está a dar para a galicite aguda… e irá sendo oportunamente publicado ao longo dos próximos números.]

A.H.

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§ 6. Auto-entrevista à Assembleia Editorial d’ O Saca-Mulas Oriental, concedida […], etc.

Advertência: Esta é uma ideia e Reprodução original, por P.D. e A.H.©:


A peça compõe-se de três (III) Actos.

[… variadíssimos outros ruídos para além das “falas”, que se ouvem, quase chegam a ouvir, putas de merdas de vozes, em adsl-surdina rouca, como a um ouvido delicado de rapariga jovem...]

I. Primo. Contagem decadente, a roçar outra vez o “indecorosa”.

Dr. P.D. says:
olé!
Dr. P.D. says:
ióoo
Dr. P.D. says:
upa, upa
Dr. P.D. says:
catadupa
finalista AD NAUSEAM A.H. says:
zebriUUUUUuuuuuuUUUUuuuUUUuuuuuu!!!
Dr. P.D. says:
iuuuu
Dr. P.D. says:
Então?
finalista ad nauseam A.H. says:
isso pergunto je?
Dr. P.D. says:
aqui o je está um pouco tonto
finalista ad nauseam A.H. says:
o prelo 'tá rodando, cara...
finalista ad nauseam A.H. says:
um porco tonto?
Dr. P.D. says:
alienadamente porco
Dr. P.D. says:
não tenho playmate nem Conto?...
finalista ad nauseam A.H. says:
fixe...
finalista ad nauseam A.H. says:
playmate ando eu à procura (searching) da Laura (Bataille?)
finalista ad nauseam A.H. says:
ajudas?
Dr. P.D. says:
ok
finalista ad nauseam A.H. says:
quanto ao conto...
finalista ad nauseam A.H. says:
nem quinhentos míseros pausitos!...
Dr. P.D. says:
e ensaiozito?
finalista ad nauseam A.H. says:
‘tá na calha..., como aliás, tudo o mais...
finalista ad nauseam A.H. says:
tudo prontíssimo a sair
finalista ad nauseam A.H. says:
até a desbunda minha
finalista ad nauseam A.H. says:
quase infantil, quase em final de revisão...
finalista ad nauseam A.H. says:
um sumaríssimo genial
finalista ad nauseam A.H. says:
etc.
finalista ad nauseam A.H. says:
enfim... the Works.
Dr. P.D. says:
fx
finalista ad nauseam A.H. says:
trabalha-se, portanto...
Dr. P.D. says:
eu tenho andado alienado
Dr. P.D. says:
sem fazer nada de jeito
Dr. P.D. says:
e os cabrões da faculdade dos bichos levaram-me 40 euros para vacinar o xunga
finalista ad nauseam A.H. says:
eh eh
Dr. P.D. says:
rite-te
finalista ad nauseam A.H. says:
poupaste
finalista ad nauseam A.H. says:
pou
finalista ad nauseam A.H. says:
pi
Dr. P.D. says:
puff
finalista ad nauseam A.H. says:
píveas a esta hora, só se for O (próprio) Saca...
Dr. P.D. says:
outra: troquei 100 euros por libras, e os cabrões só me deram 65
finalista ad nauseam A.H. says:
publicamos uma auto-entrevista
finalista ad nauseam A.H. says:
extemporânea, narcisista q.b.
Dr. P.D. says:
boa
finalista ad nauseam A.H. says:
para o eventual esclarecimento das/os nossas/os solitárias/os visitas-leitoras/es...
finalista ad nauseam A.H. says:
aproveitando a embalagem do Ante-meia-noite
finalista ad nauseam A.H. says:
ainda nos calha alguma Cinderela
finalista ad nauseam A.H. says:
hallo????
Dr. P.D. says:
sim?
finalista ad nauseam A.H. says:
então?
Dr. P.D. says:
estava aqui a ver se via a Laura

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finalista ad nauseam A.H. says:
faz de conta que eras um dos editores d' O Saca...
finalista ad nauseam A.H. says:
além de acabares necessariamente por ter, mais tarde ou mais cedo, dar um valoroso tiro na própria pinha, o que é que terias, postumamente, a dizer?
Dr. P.D. says:
ui?
finalista ad nauseam A.H. says:
ai?
Dr. P.D. says:
dói?
finalista ad nauseam A.H. says:
«... atirem-me água benta...»
Dr. P.D. says:
espera aí...
finalista ad nauseam A.H. says:
vais buscar o penico à mesinha-de-cabeceira, ao psyché?
finalista ad nauseam A.H. says:
caganda maluko!!!

Dr. P.D. sends:


Laura??

Open (Alt+P)
finalista ad nauseam A.H. says:
ervanária?

You have successfully received C:\Documents and Settings\ [...] \laura.jpg from Dr. P.D..

finalista ad nauseam A.H. says:
quem é a rapariga?
Dr. P.D. says:
vê lá se é uma Laura boa
finalista ad nauseam A.H. says:
servia, ou sérvia?
Dr. P.D. says:
podemos chamar-lhe laura
finalista ad nauseam A.H. says:
mas acho que não, Laurindinha...
finalista ad nauseam A.H. says:
a outra tipa era super-hiper deprê...
Dr. P.D. says:
mas esta está com a moca, vê-se logo
finalista ad nauseam A.H. says:
só estava bem a pinar...
finalista ad nauseam A.H. says:
a fazer o pino, se é que me entendes...
...
*
II. Secundo. After another crashout. A bonomia instala-se…

Dr. P.D. says:
já cá estás?
finalista ad nauseam A.H. says:
mete a merda do título
finalista ad nauseam A.H. says:
estou com prob’s
Dr. P.D. says:
título do k?
finalista ad nauseam A.H. says:
please!!!
finalista ad nauseam A.H. says:
do Post
finalista ad nauseam A.H. says:
n tenho a net em conditions
finalista ad nauseam A.H. says:
depois insiro o material
finalista ad nauseam A.H. says:
propriamente dito
Dr. P.D. says:
ok. já viste o mail do clix?
finalista ad nauseam A.H. says:
ainda n cheguei lá
finalista ad nauseam A.H. says:
'tá-se mal...
Dr. P.D. says:
o poste já lá está
finalista ad nauseam A.H. says:
ókis
finalista ad nauseam A.H. says:
over
finalista ad nauseam A.H. says:
queres contar mais alguma coisa?
Dr. P.D. says:
keres aparecer amanhã? fumamos uma lá para as 3.30
finalista ad nauseam A.H. says:
é bem possível
finalista ad nauseam A.H. says:
para discutir a asneirada presente
Dr. P.D. says:
ok. apita e bom trabalho
finalista ad nauseam A.H. says:
idem
finalista ad nauseam A.H. says:
abraço!
Dr. P.D. says:
n t esqueças do clix, tá lá a playmate e mais
finalista ad nauseam A.H. says:
já vi
Dr. P.D. says:
over
finalista ad nauseam A.H. says:
‘tá jólix, mas n sei...
finalista ad nauseam A.H. says:
out


*
III. Tertio: (o) FIM.

[Corta! (ouve-se em uníssono off)...]


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§. 7 A Noção de Gasto, (II), Georges Bataille

A Noção De Gasto, (II)


Gasto...


3. Produção, intercâmbio e gasto improdutivo
Uma vez demonstrada a existência do gasto como função social, é necessário ter em conta as relações desta função com as de produção e aquisição, que lhes são opostas. Estas relações apresentam-se imediatamente como as de um fim com a utilidade. E, se bem que seja verdade que a produção e a aquisição, mudando de forma ao desenvolverem-se, introduzem uma variável cujo conhecimento é fundamental para a compreensão dos processos históricos, ambas não são, no entanto, mais que meios subordinados ao gasto. Apesar de ser espantosa, a miséria humana não foi nunca uma realidade digna de atenção nas sociedades porque a preocupação pela conservação, que dá à produção a aparência de um fim, se impõe sobre o gasto improdutivo. Para manter esta preeminência, como o poder é exercido pelas classes que gastam, a miséria foi excluída de toda a actividade social. E os miseráveis não têm outro meio de entrar no círculo do poder senão a destruição revolucionária das classes que o ocupam, quer dizer, através de um gasto social sangrento e absolutamente ilimitado.

O carácter secundário da produção e da aquisição relativamente ao gasto aparece da forma mais clara nas instituições económicas primitivas porque o intercâmbio é ainda tratado como uma perda sumptuária dos objectos cedidos. O intercâmbio apresenta-se assim, no fundo, como um processo de gasto sobre o qual se desenvolveu um processo de aquisição. A economia clássica acreditou que o intercâmbio primitivo se efectuava sob a forma de troca, pois não tinha, com efeito, nenhuma razão para supor que um meio de aquisição como o intercâmbio tivesse podido ter como origem, não a necessidade de adquirir, mas a necessidade contrária de destruição e de perda. A concepção tradicional das origens da economia só foi arruinada em data recente, mesmo muito recente, razão pela qual um grande número de economistas continua a considerar arbitrariamente a troca como a antepassada do comércio.

Oposta à noção artificial de troca, a forma arcaica do intercâmbio foi identificada por Mauss com o nome de potlatch[1] tomado de empréstimo aos índios do noroeste americano, que praticam o tipo mais conhecido. Instituições análogas ao potlatch índio ou vestígios delas foram encontradas com muita frequência.

O potlatch dos tlingit, dos haïda, dos tsimshian, dos kwakiutl da costa noroeste foi estudado com exactidão desde finais do século XIX (mas não foi comparado, então, com as formas arcaicas de intercâmbio de outros países). Os povos americanos menos avançados praticam o potlatch por ocasião de mudanças na situação das pessoas – iniciações, matrimónios, funerais e até, sob uma forma menos desenvolvida, nunca pode ser dissociado de uma festa, quer por que o potlatch ocasiona a festa, quer por ter lugar por sua ocasião. O potlatch exclui todo o regateio e, em geral, é constituído por uma dádiva considerável de riquezas, que se oferecem ostensivamente com o objectivo de humilhar, desafiar e obrigar um rival. O carácter de intercâmbio da dádiva resulta do facto de o donatário, para evitar a humilhação e aceitar o desafio, dever cumprir com a obrigação contraída por ele ao aceitá-lo, respondendo mais tarde com uma dádiva mais importante; quer dizer, que deve devolver com usura.


Prieur...

Mas a dádiva não é a única forma do potlatch. É igualmente possível desafiar rivais através de destruições espectaculares de riqueza. Desta última forma é que o potlatch incorpora o sacrifício religioso, sendo as destruições teoricamente oferecidas aos antepassados míticos dos donatários. Numa época relativamente recente, podia acontecer que um chefe tlingit se apresentasse diante do seu rival para degolar na sua presença alguns dos seus escravos. Esta destruição devia ser respondida, num prazo determinado, com o degolar de um número de escravos maior. Os tchoukchi do extremo noroeste siberiano, que conheciam instituições análogas ao potlatch, degolavam pescoços de cães de um valor considerável para fustigar e humilhar outros grupos. No noroeste americano, as destruições consistem inclusivamente em incêndios de aldeias e na destruição de pequenas frotas de canoas. Os lingotes de cobre brasonados, uma espécie de moeda à qual era atribuído um valor acordado tal que representavam uma imensa fortuna, eram destroçados ou lançados ao mar. O delírio próprio da festa associa-se tanto às hecatombes patrimoniais, quanto às dádivas acumuladas com a intenção de maravilhar e sobressair.


O Arco...

A usura, que intervém regularmente nestas operações sob a forma de mais valia obrigatória nos potlatch de desforra, permitiu que diga que o empréstimo com juros devia ocupar o lugar da troca na história das origens do intercâmbio. Há que reconhecer, com efeito, que a riqueza se multiplica nas civilizações com potlatch de uma forma que nos recorda o hipercrescimento do crédito na civilização bancária. Quer dizer, seria impossível realizar ao mesmo tempo todas as riquezas possuídas pelo conjunto dos donatários com base nas obrigações contraídas pelo conjunto dos donatários. Mas esta semelhança alude a uma característica secundária do potlatch.

O potlatch é a constituição de uma propriedade positiva da perda – da qual emanam a nobreza, a honra, o estatuto na hierarquia – que dá a esta instituição o seu valor significativo. A dádiva deve ser considerada como uma perda e também como uma destruição parcial, sendo o desejo de destruir transferido, em parte, para o donatário. Nas formas inconscientes, tais como as que a psicanálise descreve, a dádiva simboliza a excreção, que está ligada à morte segundo a conexão fundamental do erotismo anal e do sadismo. O simbolismo excrementício dos cobres brasonados, que constituem na costa noroeste objectos de dádiva por excelência, é baseado numa mitologia muito rica. Na Melanésia, o doador designa como seu lixo as magníficas ofertas que deposita aos pés do chefe rival.

As consequências na ordem da aquisição não são mais que o resultado não pretendido – pelo menos na medida em que os impulsos que regem a operação continuem a ser primitivos – de um processo dirigido num sentido contrário. “O ideal, indica Mauss, seria dar um potlatch e que ele não fosse devolvido”. Este ideal é realizado por certas destruições nas quais o costume consiste em não terem contrapartidas possíveis. Por outro lado, quando os frutos do potlatch se encontram, de alguma forma, unidos à realização de um novo potlatch, o sentido arcaico da riqueza manifesta-se sem nenhum dos atenuantes que resultam da avareza desenvolvida em estádios ulteriores. A riqueza surge, assim, como uma aquisição, uma vez que o rico adquire um poder, mas a riqueza dirige-se inteiramente para a perda, no sentido em que um tal poder seja entendido como o poder de perder. Somente pela perda estão unidos à riqueza a glória e a honra.

Enquanto jogo, o potlatch é o contrário de um princípio de conservação. Põe fim à estabilidade das fortunas, tal como existiam no interior da economia totémica, onde a posse era hereditária. Uma actividade de câmbio excessivo colocou no lugar da herança uma espécie de póquer ritual, em forma delirante, como fonte da posse. Mas os jogadores nunca podem retirar-se uma vez que tenham feito fortuna. Devem permanecer expostos à provocação. A fortuna não tem, pois, em nenhum caso, de situar o que a possui ao abrigo das necessidades. Pelo contrário, fica funcionalmente, e juntamente com a fortuna o possuidor, exposto à necessidade de perda desmesurada que existe em estado endémico num grupo social.

A produção e o consumo não-sumptuário que condicionam a riqueza surgem, assim, enquanto utilidade relativa.
...

[1] Sobre o potlatch veja-se, sobretudo, Marcel MAUSS, “Ensaio sobre a dádiva, forma arcaica do intercâmbio”, em “L’Année sociologique”, 1925.

(cont.)
*
Trad. de A.H.

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§ 8. De Saída: Número 14 (como sempre às Quintas!)...