quinta-feira, julho 22, 2004

Ano Um / Número 11


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Tábua de Matérias
 
§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. El farolito, Manuel de Freitas
§ 4. Playmate absoluta do momento XI – Hannah Arendt
§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 6. Humor Místico, Leonardo Coimbra
§ 7. De Saída: Número 12 (como sempre às Quintas!)...
 
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§ 1. Sumaríssimo
 
Tempo de quase-férias, tempo de quase-nada e de nada mesmo, tempo de outras distracções menos perigosas, ou talvez não... Ainda assim, cá vos deixamos com algumas palavras mais.
 
O número 11, como prometido, aqui está.
 
Kalimero!
 
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§ 2. Dito e Feito, por P.D.
 
A vida é mesmo para matar
 
“Amo aqueles que me amam; quem me procura encontra-me ... quem me detesta ama a morte.” (Prov. 17, 36)
 
Só encontro morte. Acabei por amá-la sem ti. Não te procurei, nem te detesto, porém. Só te desprezo, nada mais.
Desprezo as tuas máscaras e armadilhas, as tuas graças e mentiras, os teus filhos e ministros, a tua forma e ideia.
 
A salvação é a condição aproblemática, a leviandade vivida no tédio que espera sempre mais, mais além, para mais tarde. Quem detesta a morte já morreu na promessa vã da vida outra.
 
Mas a vida é problemática activa, aporia natural e constante. Quem ama a morte vive, seguro da sua própria promessa, da sua morte por vir, em boa verdade.
 
Creio em mim como um só homem, creio na morte, em toda a minha vida...
 


et in arcadia ego

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§ 3. El farolito, Manuel de Freitas
 
 
El farolito
 
Bebe, bebe muita e amarelada tequila,
morre sobretudo de a beberes, fazendo
da tua reles existência um escombro,
uma vergonha cansada servida a álcool e desamor.
 
Ri-te desumanamente desta vida que se compraz
em desgraçar-te. Afinal. nenhum mérito é
maior do que a da amarelada tequila em que
sobrevives
noite após noite. Quem falou do mundo,
quem disse tanta asneira errando no vento?
 
Ri-te apenas, como se chorasses sem riso e sem
lágrimas, com lábios exaustos, desfeitos
pelo álcool esse paraíso e inferno
de quem do amor só mostrou imperícia.
 
Ri-te, como se nada mais houvesse do
que um festejo de velhas fedendo ao crepúsculo.
Fedendo à tua morte enquanto te servem tequila,
necessariamente tequila, e sorriem
do teu rosto jovem já tão devastado.
 
Ri-te com elas, tuas servas babadas
sem dentes para morder a vida. São os esponsais
da tua morte, mais cedo do que pensavas, e convém
que estejas alegre. Deixa-as grunhir exaltando
a noite de que morres. Elas, elas apenas carpindo
a tua glória vazia, sabem que não és ninguém
e celebram a tua destemperada passagem
entre os que mortos ruminam a vida.
 
Deixa que te sirvam a loura tequila, desumanamente.
Bebe-a como um sangue que te faltou, o crime
inocente que arrastas. Sabes bem que o teu
suicídio é demorado, festa que tarda no crepúsculo
doentio de já nada sentir ou desejar.
 
Ri-te, blasfema dessa morte – desta morte só tua
que em cada gesto perpetuas.
 
 
Manuel de Freitas, Todos contentes e eu também.
 
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§ 4. Playmate absoluta do momento XI – Hannah Arendt
 


Hannah Arendt

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§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
 
10. Nada.
 
 
- Que ricas pernas!...
 
Nada.
 
A.H.
 
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§ 6. Humor Místico, Leonardo Coimbra
 
 
Humor Místico
 
Eu vi a vida gloriosa erguer-se no horizonte da minha alma oculta. Por um recolhimento contemplativo e extático tinha esquecido o homem e quase ascendia a estrela do meu destino cósmico. Nesse momento criador vi a essência, a unidade original e eterna, através da acidentalidade humanamente sensível.
Eu era envolto em sonho e em luar. O meu corpo conhece a Lua, lembrava-se e a alma era cheia de saudades,
Em mim um clamor ardente de vida, em minha carne um gesto criador, de balbuciante mistério.
Senti então o poder da carne reveladora.
Já viram essa terra seca e mirrada que um estio voraz queimou com beijos de fogo?
Aquela desolação inquieta não me lembra uma face severa que sente, e inutilmente procura falar, uma alma inundada de enternecimento?
Eis o que é uma virgem amorosa. Terra estéril e mísera e que impetuosa torrente de vida não refere e tumultua adentro do cárcere de mentiroso pudor!
Assim era então junta a mim a mais próxima irmã do destino.
Os seus flancos vibráteis, o seu ventre misterioso, os seus peitos húmidos, os seus olhos de fogo, as suas húmidas pálpebras diziam o mais eloquente pedido, erravam, na órbita fatal da matéria, para os meus braços trémulos e magnéticos!
E eis o que ouvi ao seu corpo sonoro e luminoso:
«Na eternidade copularam as estrelas e geraram-me em sonho.
Sou o Sonho. Falo luz, são astros os meus gestos. Das entranhas da terra subi em luar, na terra fiquei em sonho e sou o luar das almas.
Numa noite tempestuosa, cheia do clamor das formas rezando a imperfeição, fulgurei nos olhos dum tigre.
Oh! Que pavor e assombro havia na minha prece!
Iluminei um dia uma serpente e subi aos céus nas asas duma ave. Criei uma alma, indaguei a vida e fui ao homem. Como tem sido dolorosa e bela a minha peregrinação humana! Esqueceu-me o passado, ignoro a vida, não compreendo o Universo, e, no entanto, há em mim, insofrida e insaciável, uma imensa ânsia de luz, de verdade, de comunhão.
Criei a alma e fui sua vítima. Como as há estreitas, tenebrosas e mirradas! Aspiro, soluço, sofro e não posso revelar-me, o cárcere é opaco, não posso revelar-me. Há almas ligeiras, simples, etéreas, puras e luminosas. Aí floresço as flores eternas do Ideal.
Sou a nuvem que leva o povo de Moisés à Terra de Promissão. Sou o sorriso da criança e a suavidade de Cristo, a timidez da virgem e a humildade do mendigo, a quimera do poeta e a loucura do herói.
Incendiei as almas e ergo-as na plenitude da sua beleza, aproximando-se na nudez da sua absoluta verdade. Por mim se conhecem as almas, num olhar possuem-me no mais completo contacto.»
Assim falava a sua carne numa harmonia tangível, sensual e quente. Eu era tão exíguo que me sentia inexistente, diluído em sonho. O luar sonoro e fluído inundava a terra.
As plantas bebiam gulosamente luar e construíam flores.
 
Leonardo Coimbra, Dispersos, III, Verbo.
 
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§ 7. De Saída: Número 12 (como sempre às Quintas!)...