quinta-feira, agosto 19, 2004

Ano Um / Número 15

--------- «(.)(.)» ---------

Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo.
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Dois poemas, por Luís Quintais.
§ 4. PAM XV: Marianne Faithfull.
§ 5. Laura, (cont.), por A.H.
§ 6. Farrapos de um diálogo (entre Hilas e Filonous...), por George Berkeley.
§ 7. A Noção de Gasto, (IV), Georges Bataille.
§ 8. De Saída: Número 16 (como sempre às Quintas!)...

--------- «(.)(.)» ---------

§ 1. Sumaríssimo.

Eis o Número 15, a tempo e horas e - por enquanto - sem desaparecer…

Haveria aqui lugar para Uma palavra sobre O Saca-Mulas Oriental e o seu (periclitante) futuro… Nã... nã-nã… Pela parte que me toca, prefiro recordar as avisadas palavras de Nietzsche Acerca da morte voluntária...

De resto, nada de especial. P.D. regressa com Dito e Feito. Mostramos Dois poemas, só por não querermos preencher O Saca, de Luís Quintais.

Marianne Faithfull mereceu desta vez a nossa escolha para Miss-todos-os-Agostos, PAM XV.

A.H. parece ter mergulhado, com Laura (?), de vez nos meandros do regresso ao romance negro pós-industrial. Não há-de ser nada. Se ainda não foi...

Ofertamo-vos, em seguida, ainda alguns «farrapos» de solipsismo pelo denominado pai do cujo, Georges Berkeley (sim, Berkeley, disseram-me...), incluindo, em ‘adenda’, um pouco conhecido retrato do filósofo no cumprimento do seu dever familiar…, em vez do konto.

E terminamos finalmente, e em profunda aridez hindu, com a Quarta e última (descansem, os mais cansados dos nossos "visitantes"…) parte do ensaio sobre A Noção de Gasto, de Georges Bataille.

Até sempre!


--------- «(.)(.)» ---------

§ 2. Dito e Feito, por P.D.



Plano inclinado


Escuto desinteressado o canto dos pássaros!
Olho, os telhados daquelas casas!
(Sim, todos iguais.)

Cheiro a terra, com gosto.
Escavo mais fundo e depois deixo-me!

Saio a raiar a fuga, sem poder, porém,
nunca esquecer que é aí que sou.

É que o céu é frio e
a chama apetece.


maldito o vosso ventre.

P.D.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 3. Dois poemas, por Luís Quintais


A Imprecisa Melancolia

Nada o distrairia
nessa procura, disse.
Este o recado
da contingência:

era verão e fazia
muito calor.
Saía cedo, cortando
a passos lentos

a sombra das 9.30.
Caminhar até à vertiginosa
queda dos poentes.
Assinalar uma cinza,

a imprecisa melancolia.



Fog tree.


Realidade

Olho para a realidade desprovida de silêncios.
As coisas são o que são. Porém, há que ter em conta
a gravidade que as prende à terra.

Os signos são os poucos recados que a vida pouca nos traz.
São o muito desta vida
onde árvores se perfilam nas avenidas, e nas avenidas

o frágil contraponto de domingo se passeia
atento à soalheira chegada de famílias-à-beira-Tejo
alheias à semana que aí vem, onde cada um por si,

e a desrazão por todos,
irá colher as incertezas do amanhã.
Dos sentidos todos o que resta são olhos fechados,

tacto de treva onde a realidade acaba
como um promontório sobre o outono: onde começo
a contar as folhas, a memória da sua queda, a avisada música.


Luís Quintais

--------- «(.)(.)» ---------

§ 4. PAM XV – Marianne Faithfull.




Marianne Faithfull.


--------- «(.)(.)» ---------

§ 5. Laura, por A.H.

III.

Laura non c'é…
(cont.)


L.

A.H.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 6. Farrapos de um diálogo (entre Hilas e Filonous...), por George Berkeley


Berkeley em família.

Farrapos...

[...]

Filonous. Com licença, Hilas: que entendeis por céptico?
Hilas. O que toda gente: entendo alguém que duvida de tudo.
F. O que não duvida, por conseguinte, acerca de um ponto particular, – pelo que tange a esse ponto não pode ser dito um céptico.
H. Com isso vou eu.
F. Consiste o duvidar, porventura, em tomar a solução afirmativa, ou a solução negativa de uma questão?
H. Não; em nenhuma das coisas; para quem quer que perceba o falar inglês, duvidar significa uma suspensão entre as duas.
F. Logo, do individuo que nega um ponto qualquer não se pode dizer que duvida dele, – nem mais nem menos do que de quem o afirma com o mesmo grau de segurança.
H. Assim é, de facto.
F. Por conseguinte, – ao primeiro, lá porque nega, não o teremos por mais céptico do que ao segundo.
H. Reconheço que sim.
F. Como então, ó Hilas, vos ocorre pronunciar que sou eu um céptico, só porque nego o que é por vós afirmado, ou seja a existência da matéria? Já que, como quer que digais, sou tão peremptório na negação como vós o sois no afirmar.
H. Tende mão, amigo, tende mão! Excedi-me um pouco na definição que propus; mas cumpre não fazer finca-pé demasiado nos passos em falso que ao discorrer nós damos. Disse, na verdade, ser céptico o indivíduo que põe tudo em dúvida; cumpriria, porém, acrescentar o seguinte: ou o que nega a realidade e a verdade das coisas.
F. Que coisas? Os princípios e os teoremas das ciências? Mas esses, como sabeis, são noções intelectuais universais, e portanto independentes da matéria; e a negação desta, por conseguinte, não implica a negação daqueles primeiros.
H. Nisso concordo; mas não existem, Filonous, outras coisas? Vinde cá: que pensais da acção de não dar fé aos sentidos? Da de negar a existência das coisas sensíveis? Da de pretender que nada sabemos acerca delas? Pois isto não basta para chamar céptico a um homem?
F. Examinemos qual de nós, nesse caso, é o que nega a realidade das coisas sensíveis, ou professa maior ignorância a seu respeito; porque será esse, se vos bem entendo, o que deve ser considerado o maior céptico?
H. Aí está precisamente o que eu desejo.
F. Que entendeis vós por coisas sensíveis?
H. As que são percepcionadas pelos sentidos. Pois podíeis fantasiar que entendesse outra coisa?
F. Perdoai-me, Hilas, o empenho de bem apreender todas as vossas noções, já que pode abreviar muito a nossa busca. Sofrei que vos faça uma pergunta mais. Só são percepcionadas pelos sentidos as coisas percepcionadas imediatamente? Ou podemos com propriedade chamar sensíveis as que são percepcionadas mediatamente, ou não sem a intervenção de quaisquer outras?
H. Não alcanço bastante o que estais dizendo.
F. Quando leio um livro, o que imediatamente percepciono são as letras; mas mediatamente, ou por meio delas, são-me sugeridas, digamos, a noção de Deus, ou a de virtude, ou a de verdade, etc., etc. Ora, de que as letras são coisas verdadeiramente sensíveis, – coisas percepcionadas pelos nossos sentidos – não poderá haver dúvida: mas queria eu saber, Hilas, se considerais sensíveis as que as letras sugerem.
H. Claro que não. Seria absurdo considerar a Deus – ou à virtude – como coisas sensíveis: se bem que seja possível significá-los a ambos, (ou sugeri-los à mente) por sinais sensíveis, com os quais, aliás, têm conexão que não é mais que arbitrária.
F. Só, pois, considerais como coisas sensíveis, ao que está a parecer-me, as imediatamente percepcionáveis pelos sentidos.
H. Nem menos.
F. E não se seguirá desse facto que, se bem que veja uma parte do céu avermelhada, e a outra parte de cor azulada, e que a minha razão de aí conclua, de maneira evidente, que haverá uma causa da diversidade das cores, no entanto essa causa não é cousa sensível, ou algo percepcionado pelo sentido da vista?
H. Com efeito.
[...]


solo ipse

H. Para prevenir outras perguntas do mesmo género, dir-vos-ei agora de uma vez por todas que tenho na conta de coisas sensíveis somente as percepcionadas pelos sentidos, e que os sentidos na verdade não percepcionam nada que não seja percepcionado de maneira imediata: pois não têm os sentidos o poder de inferir. A dedução de causas, ou de ocasiões, a partir de efeitos ou de aparências, somente percepcionadas pelos sentidos, é algo que inteiramente à razão compete.
F. Por conseguinte, acordamos nisto: unicamente são coisas sensíveis as imediatamente percepcionadas pelos sentidos. Dir-me-eis agora se com o sentido da vista percepcionamos algo que não seja a luz, ou cores, ou figuras; ou algo, pelo ouvido, que não seja som; ou algo, pelo paladar, além de sabores; ou algo, pelo olfacto, que não seja cheiro; e pelo tacto, alguma coisa mais que qualidades tangíveis.
H. Nada mais.
F. Ao que parece, portanto, se acaso suprimirmos todas as qualidades sensíveis, – nada de sensível nos ficará.
H. Concedido.
F. As coisas sensíveis, por conseguinte, não são mais que umas tantas qualidades sensíveis, ou então combinações de qualidades sensíveis.
H. Isso mesmo.
F. O calor é portanto uma coisa sensível.
H. Decerto que é.
F. Dar-se-á que a realidade das coisas sensíveis consiste no serem percepcionadas? Ou será ela qualquer coisa distinta do facto de serem percepcionadas, algo que não tenha relação com a mente?
[...]

G. Berkeley

--------- «(.)(.)» ---------

§. 7 A Noção de Gasto, (IV), Georges Bataille



«Eu venho para dividir...»

A Noção De Gasto, (IV)


6. O cristianismo e a revolução
À margem da revolta, foi possível aos intoxicados miseráveis recusar a participação moral no sistema de opressão de homens por outros. Em certas circunstâncias históricas recusaram, em particular por meio de símbolos mais contundentes ainda que a realidade, rebaixar a “natureza humana” inteira até uma ignominia tão horrível que o prazer dos ricos em provocar a miséria dos demais se fazia, de um golpe, demasiado agudo para ser suportado sem vertigem. Instituiu-se assim, independentemente das formas rituais, um intercâmbio de desafios exasperados, sobretudo do lado dos pobres, um potlatch em que a escória real e a imundície moral descobertas rivalizaram de um modo espectacular com tudo o que o mundo contém de riqueza, de pureza ou de esplendor. Com este tipo de convulsões espasmódicas abriu-se uma saída excepcional pelo desespero religioso que havia na exploração sem reserva.

Com o cristianismo, a alternância de exaltação e de angústia, de suplícios e de orgias que constitui a via religiosa, apresenta-se um contexto mais trágico, confundindo-se com uma estrutura social enferma, dilacerando-se ela mesma com a crueldade mais sórdida. O canto de triunfo dos cristãos magnifica a Deus porque entrou no jogo cruento da guerra social, porque “despenhou os poderosos do alto da sua grandeza e exaltou os miseráveis”.

Os místicos associam a ignomínia social, a ruína cadavérica do crucificado com o esplendor divino. Assim é que o culto assume a função de total oposição de forças de sentido contrário, repartidas de tal modo entre ricos e pobres que uns levam os outros à perda. O culto une-se estreitamente ao desespero terrestre, não sendo o mesmo mais que um epifenómeno do ódio sem medida que divide os homens, mas um epifenómeno que tende a suplantar o conjunto de processos divergentes que resume. Segundo as palavras atribuídas a Cristo, que dizia que tinha vindo para dividir, não para reinar, a religião não procura, pois, em absoluto, fazer desaparecer o que outros consideram como a calamidade humana. Na sua forma imediata, na medida em que o seu movimento ficou livre, a religião se enlameia, pelo contrário, numa imundície indispensável aos seus tormentos extáticos.

O sentido do cristianismo é dado pelo desenvolvimento das consequências delirantes do gasto de classes, por uma orgia agonística mental praticada a expensas da luta real.

No entanto, qualquer que seja a importância que a luta tenha na actividade humana, a humilhação cristã não é mais que um episódio na luta histórica dos ignóbeis contra os nobres, dos impuros contra os puros. Como se a sociedade, consciente do seu desconcerto intolerável, tivesse estado ébria por um tempo, para gozá-lo sadicamente. Mas a ebriedade mais pesada não pôde apagar as consequências da miséria humana e, ainda que as classes exploradas se oponham às classes superiores com uma lucidez crescente, nenhum limite concebível pode opor-se ao ódio. Na agitação histórica, só a palavra Revolução domina a confusão reinante e comporta promessas que correspondem às exigências ilimitadas das massas. Uma simples lei de reciprocidade social exige que aos amos, aos exploradores, cuja função social consiste em criar formas desprezíveis, excludentes da natureza humana – tal como esta natureza existe no limite da terra, quer dizer, do barro – sejam entregues ao medo, ao grande entardecer em que as suas belas frases ficarão cobertas pelos gritos de morte dos amotinados. É a esperança sangrenta que se confunde cada dia com a existência popular e que resume o conteúdo insubornável da luta de classes.

A luta de classes só tem um fim possível: a perda daqueles que trabalharam para perder a “natureza humana”.

Qualquer que seja a forma de desenvolvimento escolhida, seja esta revolucionária ou servil, as convulsões gerais constituídas durante dezoito séculos pelo êxtase religioso cristão e, nos nossos dias, pelo movimento operário, devem ser consideradas igualmente como uma impulsão decisiva que constrange a sociedade a utilizar a exclusão de umas classes por outras para realizar um modo de gasto tão trágico e tão livre quanto possível, ao mesmo tempo que a introduzir formas sagradas tão humanas que as formas tradicionais cheguem a ser comparativamente desprezíveis. É o carácter cambiante destes movimentos que atesta o valor humano total da Revolução operária, susceptível de actuar por si mesma com uma força tão constritiva como a que dirige os organismos elementares para o sol.

... oya.

7. A insubordinação dos factos materiais
A vida humana, diferente da sua existência jurídica, e tal como tem lugar, de facto, sobre um globo isolado no espaço celeste, em qualquer momento e lugar, não pode ficar, em nenhum caso, limitada aos sistemas que se lhe atribuem nas concepções racionais. O imenso trabalho de abandono, de transbordamento e de tempestade que a constitui poderia ser expressado dizendo que a vida humana só começa com a quebra de tais sistemas. Ao menos, o que ela admite de ordem e de ponderação só tem sentido a partir do momento em que as forças ordenadas e ponderadas se libertam e se perdem em fins que não podem estar sujeitos a nada sobre o que seja possível fazer cálculos. Só por uma insubordinação semelhante, inclusivamente, ainda que seja miserável, pode a espécie humana deixar de estar isolada no esplendor incondicional das coisas materiais.

De facto, da forma mais universal, isoladamente ou em grupo os homens encontram-se constantemente comprometidos em processos de gasto. A variação das formas não implica alteração alguma das características fundamentais destes processos cujo princípio é a perda. Uma certa excitação, cuja intensidade se mantém no decurso das alternativas numa estiagem sensivelmente constante, anima as colectividades e as pessoas. Na sua forma acentuada, os estados de excitação, que são assimiláveis a estados tóxicos, podem ser definidos como impulsões ilógicas e irresistíveis para a recusa de bens materiais ou morais, que teria sido possível utilizar racionalmente (segundo o princípio da contabilidade). Às perdas assim realizadas encontra-se unida – tanto no caso da “filha perdida” como no do gasto militar – a criação de valores improdutivos, dos quais o mais absurdo e ao mesmo tempo o que provoca mais avidez é a gloria. Juntamente com a ruína, a glória, sob formas sinistras ou deslumbrantes, não deixou de dominar a existência social e torna impossível empreender algo sem ela, apesar de estar condicionada pela prática cega da perda pessoal ou social.

E é assim que a imensa quebra da actividade arrasta as intenções humanas – incluídas as que se associam com as actividades económicas – para o jogo qualificador da matéria universal: a matéria, com efeito, só pode ser definida pela diferença não lógica, que representa com relação à economia do universo o que o crime relativamente à lei. A glória, que resume ou simboliza (sem esgotá-lo) o objecto do gasto livre, como nunca pode excluir o crime, não se diferencia da qualificação, sobretudo se se considera a única qualificação que tem um valor comparável ao da matéria da qualificação insubordinada, o qual não é a condição de nenhuma outra.

Se se considera, por outro lado, o interesse, coincidente tanto com a glória (como com a ruína), que a colectividade humana põe necessariamente na mudança qualitativa realizada constantemente pelo movimento da história, se se considera, enfim, que este movimento não pode conter nem conduzir a um objectivo limitado, é possível, uma vez abandonada toda a reserva, atribuir à utilidade um valor relativo. Os homens asseguram a sua subsistência ou evitam o sofrimento não porque estas funções impliquem por si mesmas um resultado suficiente, mas para aceder à função insubordinada do gasto livre.

No sentido de comportar rivalidade e luta.


Z

*
Trad. de A.H.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 8. De Saída: Número 16 (como sempre às Quintas!)...