Ano Um / Número 16
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Tábua de Matérias
§ 1. Sumaríssimo.
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Death, por W.B. Yeats.
§ 4. PAM XVI: Florbela Espanca.
§ 5. Laura, (cont.), por A.H.
§ 6. Um Mundo Onde Reina A Verdade, por Lars Gustafsson.
§ 7. A Mente Divina como «e-mail», por Umberto Eco.
§ 8. De Saída: Número 17 (como sempre às Quintas!)...
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§ 1. Sumaríssimo
Lá vêm eles,
com aquelas falinhas mansas de entertainer em pré-reforma do costume, pensarão pelo menos algumas/uns da/os nossas/os mais-que ilustríssimas/os visitantes (andamos até aqui pelos cerca de mil quatrocentos e noventa e tantas/os, gar nicht so schlecht!).
... and knowin' the world by numbers.
Nada disso, meus caros. Desta vez optámos mesmo por um infraSumaríssimo desinvestindo ligeiramente, dirão alguns e é em parte verdade, na paciência das nossas virtuais vítimas-voluntárias, por assim dizer. Bref, resolvemos fustigar-Vos mais brandamente ainda como desaconselham os maus costumes…
Reza, então, baixinho assim, salvo seja, este nosso Número 16:
- Umas vacanças sulistas seguramente imerecidas, na narrativa mórbida mas como sempre impagável, ganda maluco!, de P.D.;
- Uma morte sûrement pas comme les autres…, pela pena firme e hirta de um eterno desconhecido como Yeats;
- Uma PAM XVI muitíssimo pouco consensual aqui em plenos seios desta nossa depravada Redacção, Florbela Espanca;
- Uma Laura, um tanto à (la) Nora (James – perceberam o troc?), pelo depravado devaneio desse homem-das-sete-gaitas, benza-o ..., que é o nosso genial A.H.;
- Um trechozinho do Lars Gustafsson – outro noviço, uma verdadeira esperança nestas andanças da escrita…;
- Um Eco no seu melhorzinho – que nem sempre é grande, como se sabe, a coisa…, cala-te boca!
& a habitual e até agora o mais escrupulosamente cumprida possível e reiterada promessa de regresso às Quintas, à xinxada, às Mulas, bem no fundo disto!
Sejam bem aparecidos e (esperamos que sintam BEM) recebidos
Tábua de Matérias
§ 1. Sumaríssimo.
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Death, por W.B. Yeats.
§ 4. PAM XVI: Florbela Espanca.
§ 5. Laura, (cont.), por A.H.
§ 6. Um Mundo Onde Reina A Verdade, por Lars Gustafsson.
§ 7. A Mente Divina como «e-mail», por Umberto Eco.
§ 8. De Saída: Número 17 (como sempre às Quintas!)...
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§ 1. Sumaríssimo
Lá vêm eles,
com aquelas falinhas mansas de entertainer em pré-reforma do costume, pensarão pelo menos algumas/uns da/os nossas/os mais-que ilustríssimas/os visitantes (andamos até aqui pelos cerca de mil quatrocentos e noventa e tantas/os, gar nicht so schlecht!).
... and knowin' the world by numbers.
Nada disso, meus caros. Desta vez optámos mesmo por um infraSumaríssimo desinvestindo ligeiramente, dirão alguns e é em parte verdade, na paciência das nossas virtuais vítimas-voluntárias, por assim dizer. Bref, resolvemos fustigar-Vos mais brandamente ainda como desaconselham os maus costumes…
Reza, então, baixinho assim, salvo seja, este nosso Número 16:
- Umas vacanças sulistas seguramente imerecidas, na narrativa mórbida mas como sempre impagável, ganda maluco!, de P.D.;
- Uma morte sûrement pas comme les autres…, pela pena firme e hirta de um eterno desconhecido como Yeats;
- Uma PAM XVI muitíssimo pouco consensual aqui em plenos seios desta nossa depravada Redacção, Florbela Espanca;
- Uma Laura, um tanto à (la) Nora (James – perceberam o troc?), pelo depravado devaneio desse homem-das-sete-gaitas, benza-o ..., que é o nosso genial A.H.;
- Um trechozinho do Lars Gustafsson – outro noviço, uma verdadeira esperança nestas andanças da escrita…;
- Um Eco no seu melhorzinho – que nem sempre é grande, como se sabe, a coisa…, cala-te boca!
& a habitual e até agora o mais escrupulosamente cumprida possível e reiterada promessa de regresso às Quintas, à xinxada, às Mulas, bem no fundo disto!
Sejam bem aparecidos e (esperamos que sintam BEM) recebidos
& um GRANDE
Bem hajam sempre EM NOME d’O Saca!
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§ 2. Dito e Feito, por P.D.
Férias
Em férias de mim, atiro-me ao ar. De janelas fechadas e nuvens carregadas, recolho as asas sob o peso do gelo das terras sem sol.
Em férias de mim, atiro-me ao mar. Ao longe, terra nas minhas costas e nem adeus com areia nos olhos, no nariz e a boca bem fechada cheia de algas mortas.
É o mar dos cães, das ossadas e dos bichos sem guelras de peito aberto às entranhas já salgadas. E espero.
Uma corrente profunda para baixo, mais baixo, até a água tornar ar e ficar quieto, soltando, muito lentamente, a última bolha...
Sie brullt, wir spielen.
P.D.
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§ 3. Death, por W. B. Yeats
DEATH
Nor dread nor hope attend
A dying animal;
A man awaits his end
Dreading and hoping all;
Many times he died,
Many times rose again.
A great man in his pride
Confronting murderous men
Casts derision upon
Supersession of breath;
He knows death to the bone –
Man has created death.
W. B. Yeats
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§ 4. PAM XVI – Florbela Espanca.
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§ 3. Death, por W. B. Yeats
DEATH
Nor dread nor hope attend
A dying animal;
A man awaits his end
Dreading and hoping all;
Many times he died,
Many times rose again.
A great man in his pride
Confronting murderous men
Casts derision upon
Supersession of breath;
He knows death to the bone –
Man has created death.
W. B. Yeats
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§ 4. PAM XVI – Florbela Espanca.
Flor bela... espanta-me!
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§ 5. Laura, por A.H.
IV.
Laura c'é andatta via!... Pensou, sem grande convicção, mas até um certo pequenino pontinho divertida como nem sempre costumava suportar estar pelo início das manhãs.
Estava a brincar. Não se foi nada embora, era ela apenas a brincar como gostava de fazer com o que lhe desse na realíssima gana. Ouvia-o num tonitroante ressonar no quarto ali ao lado, ao preparar-se sorridente para o duche na casa de banho. Escovava os dentes imaculadamente um pouco amarelecidos pela nicotina e outros vícios de boca, devagar, comme il faut.
Mediu outra vez de treslance as olheiras que sobejaram da madrugada anterior, enxaguou depressa a boca, fechou cuidadosamente a torneira de água fria e meteu-se dentro do duche, pousando no canapé de verga o roupão turco azul que a transformava naquela espécie do espantalho que há pouco vira ao espelho, olheirento e triste por detrás de um vago sorriso, que começava a enevoar-se com o vapor da água quente, fechando atrás de si a porta de vidro anti-salpicos, dir-se-ia mesmo?, ou a função quase meramente decorativa? C'est trop beau 'ça! Queria lá saber, ensaboou-se devagar, pausadamente.
Não sabia porque lhe vinham a despropósito aqueles pensamentos incómodos, queria apenas correr, de preferência sem pensar em nada, claro. Mas aquela voz roufenha e arrastada acaba sempre por se fazer ouvir em mais um dos seus incontáveis: Deixa estarr… Não há problema, querrridaa. Estou habituada a estar sozinhaa…
«…estamos sempre num túmulo», my ass!, pensou e fechou com algum estrondo a porta de casa atrás de si, saindo em passo acelerado de corrida em direcção ao parque. Queria lá saber da ressurreição, exceptuando, claro, quando quase só faltava rezar para conseguir obter uma segunda erecção do parceiro do lado. Conversa de bêbados, de mal fodidos. Correu sem parar durante cerca de dez minutos, parecia-lhe um relâmpago, isso do tempo, as pessoas a passarem-lhe ao lado, indiferentes e ensonadas àquela da manhã escura em direcção aos seus empregozinhos, a vidinha de sempre. Acabou por ter de se sentar num banco do parque e fazer uma pausa para recuperar o fôlego, a terra de novo debaixo dos pés cansados. A gravidade toda a retornar-lhe à mente.
«…estamos sempre num túmulo», my ass!, pensou e fechou com algum estrondo a porta de casa atrás de si, saindo em passo acelerado de corrida em direcção ao parque. Queria lá saber da ressurreição, exceptuando, claro, quando quase só faltava rezar para conseguir obter uma segunda erecção do parceiro do lado. Conversa de bêbados, de mal fodidos. Correu sem parar durante cerca de dez minutos, parecia-lhe um relâmpago, isso do tempo, as pessoas a passarem-lhe ao lado, indiferentes e ensonadas àquela da manhã escura em direcção aos seus empregozinhos, a vidinha de sempre. Acabou por ter de se sentar num banco do parque e fazer uma pausa para recuperar o fôlego, a terra de novo debaixo dos pés cansados. A gravidade toda a retornar-lhe à mente.
Recordou com visível volúpia a noite anterior.
Cadela linda, sussurrara-lhe ternamente G., antes de adormecer depois de outras maratonas... Gostava muito que lhe tocassem demoradamente com as pontas dos dedos, não das unhas, pelas costas até ao fim das cujas, curvilíneas nádegas de menina, depois pelo corpo todo, tanto fazia onde.
Gostei muito, meu querido, respondeu-lhe; em particular das suas mãos que ele próprio definira um dia como sendo ternas, pensou ainda antes de cerrar os olhos pelo escuro adentro.
(cont.)
A.H.
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§ 6. Um Mundo Onde Reina A Verdade, por Lars Gustafsson
Um Mundo Onde Reina A Verdade
No planeta número 3 do Sistema 13, em Aldebaran, existe uma civilização que se relaciona directamente com a realidade, sem símbolos intermediários.
A ideia de que, por exemplo, uma figura desenhada num papel representa alguma coisa mais do que ela própria é totalmente alheia aos miriápodes possuidores de uma força extraordinária que constituem o estádio civilizacional mais elevado do planeta.
A sua força invulgar pouco lhes adianta. Uma vez que o único símbolo de uma coisa que eles conhecem é a própria coisa, têm de transportar constantemente uma enorme quantidade de objectos. Neste planeta a expressão «uma retórica vigorosa» tem um significado real.
Por exemplo, quando se quer dizer «uma pedra aquecida pelo sol», só há uma maneira. É pôr uma pedra aquecida ao sol na mão, ou melhor, na pata daquele com quem se está a falar.
Se se quiser dizer «uma pedra gigantesca no alto de uma montanha», só há uma maneira de proferir essa frase. É carregar com uma pedra gigantesca para o cimo de uma montanha.
Produzir um poema, nestas circunstâncias, é uma prova de força que permanece, em toda a sua heróica evidência, por várias gerações.
A maior parte dos sonetos que esta civilização produziu parecem-se de certo modo com Stonehenge: formidáveis grupos de pedras alinhadas por heróicos antepassados, arquejando e gemendo, com as veias salientes, segundo um esquema ancestral.
Nesta civilização a mentira é, evidentemente, uma total impossibilidade. Se se quer dizer «amo-te» a alguém, só há uma maneira, que é fazê-lo. Se se quer dizer «não te amo», também só há uma maneira, que consiste em evitar fazê-lo. Se se for capaz.
Num mundo em que o símbolo é sempre coincidente com a própria coisa e esta não pode ser substituída por pequenos sons ridículos ou por fieiras de sinaizinhos bizarros desenhados num papel, sinais esses que nada têm a ver seja com o que for para além de uma frágil e transitória convenção, é claro que a verdade e o sentido, a mentira e o absurdo, serão coincidentes.
O único substituto da mentira que existe num mundo como este é, evidentemente, falar de forma tão incompreensível, tão absurda, que ninguém entenda.
A conversação normal, a conversa trivial, neste planeta, consiste em os seus habitantes tirarem de umas bolsas de couro que costumam trazer consigo uma quantidade de objectos muito pequenos, contas de vidro, pedrinhas de diversas cores, pauzinhos muito bem polidos – e trocarem-nos animadamente entre si.
O preço da verdade é elevado.
De todas as civilizações superiores da região dos velhos sóis, no centro da Via Láctea, não há nenhuma que viva tão isolada como esta.
A astronomia, naturalmente, é impossível. Não podemos falar de galáxias se for necessário transportá-las de um lado para o outro para nos referirmos a elas. Aliás, o próprio conceito de «planeta» é impensável.
Estes seres vivem numa planície avermelhada, delimitada por altas montanhas.
E nem para essa planície que, teoricamente, é o mesmo que «o mundo», eles têm um conceito.
(Caderno azul IV; 4)
Cadela linda, sussurrara-lhe ternamente G., antes de adormecer depois de outras maratonas... Gostava muito que lhe tocassem demoradamente com as pontas dos dedos, não das unhas, pelas costas até ao fim das cujas, curvilíneas nádegas de menina, depois pelo corpo todo, tanto fazia onde.
Gostei muito, meu querido, respondeu-lhe; em particular das suas mãos que ele próprio definira um dia como sendo ternas, pensou ainda antes de cerrar os olhos pelo escuro adentro.
(cont.)
A.H.
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§ 6. Um Mundo Onde Reina A Verdade, por Lars Gustafsson
Um Mundo Onde Reina A Verdade
No planeta número 3 do Sistema 13, em Aldebaran, existe uma civilização que se relaciona directamente com a realidade, sem símbolos intermediários.
A ideia de que, por exemplo, uma figura desenhada num papel representa alguma coisa mais do que ela própria é totalmente alheia aos miriápodes possuidores de uma força extraordinária que constituem o estádio civilizacional mais elevado do planeta.
A sua força invulgar pouco lhes adianta. Uma vez que o único símbolo de uma coisa que eles conhecem é a própria coisa, têm de transportar constantemente uma enorme quantidade de objectos. Neste planeta a expressão «uma retórica vigorosa» tem um significado real.
Por exemplo, quando se quer dizer «uma pedra aquecida pelo sol», só há uma maneira. É pôr uma pedra aquecida ao sol na mão, ou melhor, na pata daquele com quem se está a falar.
Se se quiser dizer «uma pedra gigantesca no alto de uma montanha», só há uma maneira de proferir essa frase. É carregar com uma pedra gigantesca para o cimo de uma montanha.
Produzir um poema, nestas circunstâncias, é uma prova de força que permanece, em toda a sua heróica evidência, por várias gerações.
A maior parte dos sonetos que esta civilização produziu parecem-se de certo modo com Stonehenge: formidáveis grupos de pedras alinhadas por heróicos antepassados, arquejando e gemendo, com as veias salientes, segundo um esquema ancestral.
Nesta civilização a mentira é, evidentemente, uma total impossibilidade. Se se quer dizer «amo-te» a alguém, só há uma maneira, que é fazê-lo. Se se quer dizer «não te amo», também só há uma maneira, que consiste em evitar fazê-lo. Se se for capaz.
Num mundo em que o símbolo é sempre coincidente com a própria coisa e esta não pode ser substituída por pequenos sons ridículos ou por fieiras de sinaizinhos bizarros desenhados num papel, sinais esses que nada têm a ver seja com o que for para além de uma frágil e transitória convenção, é claro que a verdade e o sentido, a mentira e o absurdo, serão coincidentes.
O único substituto da mentira que existe num mundo como este é, evidentemente, falar de forma tão incompreensível, tão absurda, que ninguém entenda.
A conversação normal, a conversa trivial, neste planeta, consiste em os seus habitantes tirarem de umas bolsas de couro que costumam trazer consigo uma quantidade de objectos muito pequenos, contas de vidro, pedrinhas de diversas cores, pauzinhos muito bem polidos – e trocarem-nos animadamente entre si.
O preço da verdade é elevado.
De todas as civilizações superiores da região dos velhos sóis, no centro da Via Láctea, não há nenhuma que viva tão isolada como esta.
A astronomia, naturalmente, é impossível. Não podemos falar de galáxias se for necessário transportá-las de um lado para o outro para nos referirmos a elas. Aliás, o próprio conceito de «planeta» é impensável.
Estes seres vivem numa planície avermelhada, delimitada por altas montanhas.
E nem para essa planície que, teoricamente, é o mesmo que «o mundo», eles têm um conceito.
(Caderno azul IV; 4)
in Lars Gustafsson, A Morte de um Apicultor
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§. 7 A Mente Divina como «e-mail», por Umberto Eco
Every mother loves some child of hers.
A Mente Divina como «e-mail»
Por ontologia da referência entendo em primeiro lugar a posição filosófica segundo a qual os indivíduos (Paolo, Napoleão, Praga ou o Pó) podem ser designados rigidamente, no sentido que, seja qual for a descrição que atribuirmos a um nome, ele se refere de qualquer modo a algo ou alguém que foi assim baptizado num momento dado do espaço-tempo, e que – por mais propriedades que lhe sejam ignoradas – permanecerá sempre aquele algo ou alguém (um principium individuationis assente numa materia signata quantitate). Mas a teoria da referência ontológica também foi alargada às quidditates (as essências, ou os objectos gerais) as quais, mesmo que não as conhecêssemos, seriam constâncias da natureza que têm uma sua objectividade fora quer dos nossos actos mentais, quer do modo como a cultura os reconhece e os organiza. A ampliação da hipótese não é injustificada: se se assumir que um nome de pessoa possa ligar-se directamente a uma haecceitas (mesmo preterida, e portanto imaterial), porque é que um nome genérico não poderia ligar-se directamente a uma quidditas? É mais imaterial a Cavalinidade ou a haecceitas de Assurbanípal, de que considero que já não temos nem um punhado de poeira? Em ambos os casos, como veremos, não se poderia evitar assumir que a ligação seja dada pelos que Putnam denomina por noetic rays (e que naturalmente são apenas uma ficção teórica).
Deste ponto de vista, para uma teoria ontológica da referência, o termo água referir-se-á a H2O em qualquer mundo possível assim como o nome Napoleão se referirá sempre e rigidamente àquele unicum que na história do universo se verificou, genética, fisiológica e biograficamente, uma só vez (e assim ficaria, mesmo se num mundo futuro governado por feministas radicais Napoleão fosse recordado apenas como o indivíduo dotado da única propriedade de ter sido o marido de Josefina).
Esta seria uma ontologia «forte» pela qual a referência à água pareceria prescindir de todos os conhecimentos ou intenções ou crenças do falante. Mas esta perspectiva por um lado não exclui a pergunta sobre o que é a referência, e por outro também não elimina a noção de «cognição»: simplesmente desloca-as a ambas da psicologia para a teologia. O que então quererá dizer que a palavra água se refere sempre e em todas as condições a H2O para lá de toda e qualquer intenção dos falantes? Deveríamos dizer o que é aquela espécie de arame ontológico que ancora aquela palavra àquela essência – e para aproveitar a metáfora deveríamos pensar na essência como numa coisa extremamente hirsuta da qual se ramificam muitos arames, que a ligam a água, a water, a acqua, a agua, a eau, a Wasser, a voda, a shui e inclusivamente ao termo (ainda inexistente) que será forjado em 4025 pelos visitantes saturnianos para indicar aquele líquido transparente, deles desconhecido, que irão encontrar no nosso planeta.
Uma ontologia forte, para excluir as intenções dos falantes, mas de qualquer maneira fundamentar a ligação referencial, deveria pressupor uma Mente Divina, ou Infinita se quisermos. Dando por assente que o mundo existe independentemente do conhecimento que temos dele, e que existe coma população de essências reciprocamente reguladas por leis, só uma Mente que o conheça exactamente como é (e como o fez), e que aceite com indulgência que mesmo em línguas diferentes possamos referir-nos à mesma essência, pode «fixar» a referência de modo estável.
Para retomar o famoso exemplo de Putnam, se existisse numa Terra Gémea algo que se pareça em tudo e por tudo com a água deste planeta, que tivesse o mesmo aspecto, sabor e efeitos bioquímicos, e todavia não fosse H2O mas XYZ, para dizer que quem quer que (em ambos os planetas) falasse de água se referiria a H2O mas não a XYZ, tem de se assumir que qualquer Mente Infinita a pense precisamente deste modo, porque só o seu pensamento garantiria a ligação entre os nomes e as essências. Mas é exactamente Putnam, ao opor um realismo interno à perspectiva externalista, a dizer que esta última, para ser sustentável, pressuporia. justamente um Olho de Deus.
Postular uma Mente Divina levanta contudo um interessante problema em termos de intencionalidade. Temos de admitir que a Mente Divina «sabe» que toda a emissão do termo água se refere à essência da água, e qual é a relação intencional que liga a Mente Divina ao conteúdo do seu «saber» escapa à nossa capacidade de compreensão (e de facto postulamos que assim acontece, e não dizemos como acontece). Mas o que garante que todo o nosso pronunciar do termo água virá adequar a intencionalidade da Mente Divina? Evidentemente nada, senão a nossa boa intenção de, quando falamos de água, termos intenções de fazer, por assim dizer, a vontade de Deus e entendermos (voluntaristicamente) adaptar-nos à intenção da Mente Divina.
Tenha-se em conta que digo «à intenção» e não «à intencionalidade» de uma Mente Divina. Perguntar o que é a intencionalidade de uma Mente Divina ultrapassa os limites destas modestas reflexões – e também de reflexões bem mais orgulhosas. O problema é que também é difícil decidir o que quer dizer adaptar-se à intenção da Mente Divina.
Admito que existe agora um fenómeno que poderá valer como modelo de Mente Divina, e de designação absolutamente rígida. É o fenómeno do endereço e-mail. Ao «nome» constituído deste endereço (digamos: adam@eden.being) corresponde certamente uma e uma só entidade (nada garante que seja um indivíduo físico, poderia ser uma empresa, mas sé essa e não outra). Nós podemos não saber de modo nenhum que propriedades tem o destinatário (Adão poderia não ter sido o primeiro homem, poderia não ter comido da árvore do bem e do mal, poderia não ter sido o marido de Eva, etc.), mas sabemos que esse nome (endereço) aponta (por uma corrente de fenómenos electrónicos que não é caso para analisar em pormenor, mas de cuja eficiência somos diariamente testemunhas) para uma entidade individual distinguível de todas as outras, independentemente das nossas crenças, opiniões, conhecimentos lexicais, e do conhecimento que temos sobre o modo como o «aponta». Poderemos com o decorrer do tempo associar muitas propriedades a esse nome, mas não é necessário que o façamos: sabemos que se o escrevermos no nosso programa de e-mail chegaremos a esse endereço e não a outro. E sabemos que tudo depende de uma cerimónia baptismal, e que a potência referencial do endereço que usamos se deve causalmente a esse baptismo.
Mas um fenómeno do género (tão absolutamente «puro» e indiscutível, independente das intenções e das competências de todo o correspondente) só se verifica com o e-mail. Que o sistema de e-mail seja um modelo da Mente Divina pode parecer tão confortante como blasfemo, mas é certo que é o único caso em que usamos uma designação absolutamente rígida de acordo com o modelo, se não de uma Mente, pelo menos de uma Rede Divina.
In, Umberto Eco, Kant e o Ornitorrinco
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§ 8. De Saída: Número 17 (como sempre às Quintas!)...
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A Mente Divina como «e-mail»
Por ontologia da referência entendo em primeiro lugar a posição filosófica segundo a qual os indivíduos (Paolo, Napoleão, Praga ou o Pó) podem ser designados rigidamente, no sentido que, seja qual for a descrição que atribuirmos a um nome, ele se refere de qualquer modo a algo ou alguém que foi assim baptizado num momento dado do espaço-tempo, e que – por mais propriedades que lhe sejam ignoradas – permanecerá sempre aquele algo ou alguém (um principium individuationis assente numa materia signata quantitate). Mas a teoria da referência ontológica também foi alargada às quidditates (as essências, ou os objectos gerais) as quais, mesmo que não as conhecêssemos, seriam constâncias da natureza que têm uma sua objectividade fora quer dos nossos actos mentais, quer do modo como a cultura os reconhece e os organiza. A ampliação da hipótese não é injustificada: se se assumir que um nome de pessoa possa ligar-se directamente a uma haecceitas (mesmo preterida, e portanto imaterial), porque é que um nome genérico não poderia ligar-se directamente a uma quidditas? É mais imaterial a Cavalinidade ou a haecceitas de Assurbanípal, de que considero que já não temos nem um punhado de poeira? Em ambos os casos, como veremos, não se poderia evitar assumir que a ligação seja dada pelos que Putnam denomina por noetic rays (e que naturalmente são apenas uma ficção teórica).
Deste ponto de vista, para uma teoria ontológica da referência, o termo água referir-se-á a H2O em qualquer mundo possível assim como o nome Napoleão se referirá sempre e rigidamente àquele unicum que na história do universo se verificou, genética, fisiológica e biograficamente, uma só vez (e assim ficaria, mesmo se num mundo futuro governado por feministas radicais Napoleão fosse recordado apenas como o indivíduo dotado da única propriedade de ter sido o marido de Josefina).
Esta seria uma ontologia «forte» pela qual a referência à água pareceria prescindir de todos os conhecimentos ou intenções ou crenças do falante. Mas esta perspectiva por um lado não exclui a pergunta sobre o que é a referência, e por outro também não elimina a noção de «cognição»: simplesmente desloca-as a ambas da psicologia para a teologia. O que então quererá dizer que a palavra água se refere sempre e em todas as condições a H2O para lá de toda e qualquer intenção dos falantes? Deveríamos dizer o que é aquela espécie de arame ontológico que ancora aquela palavra àquela essência – e para aproveitar a metáfora deveríamos pensar na essência como numa coisa extremamente hirsuta da qual se ramificam muitos arames, que a ligam a água, a water, a acqua, a agua, a eau, a Wasser, a voda, a shui e inclusivamente ao termo (ainda inexistente) que será forjado em 4025 pelos visitantes saturnianos para indicar aquele líquido transparente, deles desconhecido, que irão encontrar no nosso planeta.
Uma ontologia forte, para excluir as intenções dos falantes, mas de qualquer maneira fundamentar a ligação referencial, deveria pressupor uma Mente Divina, ou Infinita se quisermos. Dando por assente que o mundo existe independentemente do conhecimento que temos dele, e que existe coma população de essências reciprocamente reguladas por leis, só uma Mente que o conheça exactamente como é (e como o fez), e que aceite com indulgência que mesmo em línguas diferentes possamos referir-nos à mesma essência, pode «fixar» a referência de modo estável.
Para retomar o famoso exemplo de Putnam, se existisse numa Terra Gémea algo que se pareça em tudo e por tudo com a água deste planeta, que tivesse o mesmo aspecto, sabor e efeitos bioquímicos, e todavia não fosse H2O mas XYZ, para dizer que quem quer que (em ambos os planetas) falasse de água se referiria a H2O mas não a XYZ, tem de se assumir que qualquer Mente Infinita a pense precisamente deste modo, porque só o seu pensamento garantiria a ligação entre os nomes e as essências. Mas é exactamente Putnam, ao opor um realismo interno à perspectiva externalista, a dizer que esta última, para ser sustentável, pressuporia. justamente um Olho de Deus.
Postular uma Mente Divina levanta contudo um interessante problema em termos de intencionalidade. Temos de admitir que a Mente Divina «sabe» que toda a emissão do termo água se refere à essência da água, e qual é a relação intencional que liga a Mente Divina ao conteúdo do seu «saber» escapa à nossa capacidade de compreensão (e de facto postulamos que assim acontece, e não dizemos como acontece). Mas o que garante que todo o nosso pronunciar do termo água virá adequar a intencionalidade da Mente Divina? Evidentemente nada, senão a nossa boa intenção de, quando falamos de água, termos intenções de fazer, por assim dizer, a vontade de Deus e entendermos (voluntaristicamente) adaptar-nos à intenção da Mente Divina.
Tenha-se em conta que digo «à intenção» e não «à intencionalidade» de uma Mente Divina. Perguntar o que é a intencionalidade de uma Mente Divina ultrapassa os limites destas modestas reflexões – e também de reflexões bem mais orgulhosas. O problema é que também é difícil decidir o que quer dizer adaptar-se à intenção da Mente Divina.
Admito que existe agora um fenómeno que poderá valer como modelo de Mente Divina, e de designação absolutamente rígida. É o fenómeno do endereço e-mail. Ao «nome» constituído deste endereço (digamos: adam@eden.being) corresponde certamente uma e uma só entidade (nada garante que seja um indivíduo físico, poderia ser uma empresa, mas sé essa e não outra). Nós podemos não saber de modo nenhum que propriedades tem o destinatário (Adão poderia não ter sido o primeiro homem, poderia não ter comido da árvore do bem e do mal, poderia não ter sido o marido de Eva, etc.), mas sabemos que esse nome (endereço) aponta (por uma corrente de fenómenos electrónicos que não é caso para analisar em pormenor, mas de cuja eficiência somos diariamente testemunhas) para uma entidade individual distinguível de todas as outras, independentemente das nossas crenças, opiniões, conhecimentos lexicais, e do conhecimento que temos sobre o modo como o «aponta». Poderemos com o decorrer do tempo associar muitas propriedades a esse nome, mas não é necessário que o façamos: sabemos que se o escrevermos no nosso programa de e-mail chegaremos a esse endereço e não a outro. E sabemos que tudo depende de uma cerimónia baptismal, e que a potência referencial do endereço que usamos se deve causalmente a esse baptismo.
Mas um fenómeno do género (tão absolutamente «puro» e indiscutível, independente das intenções e das competências de todo o correspondente) só se verifica com o e-mail. Que o sistema de e-mail seja um modelo da Mente Divina pode parecer tão confortante como blasfemo, mas é certo que é o único caso em que usamos uma designação absolutamente rígida de acordo com o modelo, se não de uma Mente, pelo menos de uma Rede Divina.
In, Umberto Eco, Kant e o Ornitorrinco
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§ 8. De Saída: Número 17 (como sempre às Quintas!)...
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That explains all of it: nothing at all!
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