quinta-feira, junho 24, 2004

Ano Um / Número 7

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Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. O Corvo, Edgar Allan Poe
§ 4. Playmate absoluta do momento VII – Agripina, a filha.
§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 6. 7. Drancula, Extractos do Diário de David Benson, por Boris Vian (Escritos Pornográficos)
§ 7. Taras, extraído de Esse Maldito Eu, (confissões e anátemas), 1987, de E.M. Cioran, seguido de uma Entrevista ao autor.
§ 8. De Saída: Número 8 (como sempre às Quintas!)...

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§ 1. Sumaríssimo

Seguindo a desúnica ordem impossível no rigor do número, neste caso o profano 7, como de costume apresentamos de entrada o habitualmente ligeiro e, sobretudo, sumário, mas muito apreciado Dito e Feito, por P.D., desta vez com uma curiosa incursão ao mundo dos criadores de sacos-de-pulgas.

Um poema quase desconhecido de Edgar Allan Poe, O Corvo, na versão de Fernando Pessoa e a playmate é, tinha de ser, só podia, a sequiosa e ardente Agripina, a filha.

Seguimos, um pouco para quebrar o ritmo, ou nem tanto, e alegrar os fiéis leitores, com o sanguíneo e por vezes incompreendido (e ainda bem) A Explicação das Pássaras, como sempre por A.H., e com um fabuloso conto pornográfico (!!!), Drancula, da autoria de Boris Vian, para o qual alertamos desde já as sensibilidades mais débeis.

Terminamos, à francesa e em beleza, com (algumas das, dizemos) Taras de E.M. Cióran, outro patafísico (digo eu) de comprofano renome e maldito franco-romeno, e ainda a algumas vezes habitual entrevista ao autor, para fazer jus ao pendor transilvânico deste número-mais-que-perfeito, SETE.

Com tanto trabalho a responder à correspondência dos nossos 2 leitores-comentadores, está bom de ver, e das restantes cerca de 666 almas errantes que nos visitaram até à altura, não temos tido grande tempo para recensar muito...

Até quinta e ficassem (sim é de propósito)! Vossas analfabe-nentidades até lá desassossegados/as pelas tresleituras!!

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§ 2. Dito e Feito, por P.D.

Introspecção canina

Por que teimamos em perceber-nos uns aos outros?
Sempre em vão. Menos inútil é tentarmos perceber-nos a nós mesmos. Criamos ficções, e vivemo-las, espectadores de nós mesmos no filme sempre errado, na personagem fracamente composta, a mera coerência de um enredo industrial. O argumento de final conhecido mas nunca desejado, a banalidade das perspectivas forçadas, tudo embelezado pelos efeitos especiais da mentira quotidiana.

Porquê? Culpa da inexorável retórica das coisas. Em verdade, não queremos. Uma ideia sem acto. O que ficaria sem a tela? Sim, tudo escuro e desagradável; seja o que for, sente-se sempre como feio e indesejado, pouco dado a reviravoltas de tradução. Mais luz, mais luz, diz o agonizante. Transforma-me, desaparece-me, deixa-me sair de mim, infeliz ensimesmado.

O cão brinca com o osso: comê-lo-á quando necessário.

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§ 3. O Corvo, Edgar Allan Poe

O Corvo

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus
[umbrais.
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus
[umbrais.

É só isto, e nada mais.»

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros
[dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes
[celestiais –
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isto, e nada mais.»

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
«Senhor» eu disse, «ou senhora, decerto me
[desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...» E abri largos, franqueando-os,
[meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido, receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou
[iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome d’ ela, e o eco disse os meus ais.

Isto só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda alma em mim
[ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais
[e mais.
«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.
Meu coração se distraia pesquisando estes sinais.

É o vento, e nada mais».

Abri então a vidraça, e eis que, com muita
[negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons
[tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem
- [um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre meus
[umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus
[umbrais.

Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha
[amargura.
Com o solene decoro de seus ares rituais,
«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre
[e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Diz-me qual o teu name lá nas trevas infernais.»

Disse o corvo, «Nunca mais».

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus
[umbrais,

Com o nome «Nunca mais».


Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera,
[augusto
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu
[pensamento
Perdido, murmurei lento, «Amigos, sonhos – -mortais
Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais.»

Disse o corvo, «Nunca mais».

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
«Por certo», disse eu, «são estas suas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça
[e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou
[em ais,
E o bordão de desesprança de seu canto cheio de ais
Era este «Nunca mais».
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha
[amargura,
Sentei-me defronte d’ela, do alvo busto e meus
[umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureira dos maus tempos
[ancestrais
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos
[ancestrais

Com aquele «Nunca mais».

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio de um
[incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
«Maldito!» a mim disse, «deu-te Deus, por anjos
[concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus
[ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus
[ais!

Disse o corvo, «Nunca mais».


«Profeta», disse eu, «profeta – ou demónio ou ave
[preta –!,
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus
[umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, diz a esta alma a quem
[atrais

Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem
[atrais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».

«Profeta», disse eu, «profeta – ou demónio,
[ou ave preta –!,
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Diz a esta alma entristecida se no Eden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais !»

Disse o corvo, «Nunca mais».

«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!» eu disse,
[«Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas
[infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus
[umbrais!

Disse o corvo, «Nunca mais».

E o corvo na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre
[umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que
[sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais
[e mais
E a minh’alma dessa sombra, que no chão há mais
[e mais

Libertar-se-á... nunca mais!


Edgar Allan Poe, traduzido por Fernando Pessoa

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§ 4. Playmate absoluta do momento VII – Agripina, a filha.


Agripina, a mais nova...

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§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.

7. Sete. Telefonema. Banalidades…


As sirenes, as luzes, a ausência de sensibilidade à queimadura que desde há pouco lhe fazia as vezes de corpo finalmente a esvair-se noutra coisa, fumo, a dissolução afinal, para além de qualquer dor… O encontro com nada. … Memória de quase nada, duas ou três coisas inapagáveis.

Acordou já tarde dentro às voltas de eléctrico pelo Ring. Era noite dentro há mais de duas horas. Não conseguia ainda pensar em nada que se aproveitasse para perfazer mais um dia. A irritação sensata de andar às voltas, até passar. Não passava. Resolveu apear-se junto ao Burgtheater e andar um pouco para não ter de continuar a levar a sério o último telefonema de Max, quando já? Percorreu a pé o caminho até ao café onde tinha a absoluta certeza de não correr o risco de encontrar B. àquela hora. Uma água com gás e um café simples, forte, amargo. O primeiro cigarro daquela estranha forma de manhã escura, afundada na centenária poltrona e passando os olhos pelo El País de anteontem.
Quereria ele que acreditasse que ao fim de tanto tempo sentia ciúmes? Que sentia deveras a sua falta? Devia mas era ter mais alguma brilhante peça em mente, como ele dizia, e estaria há espera (como não disse) do adiantamento do editor. Uma coisa simples, simplesmente genial, dizia sempre. E desde que passaram a viver juntos que era sempre ela quem lhe escrevia todas as peças. Não queria pensar nisso agora. Na altura pareceu-lhe natural passar o dia entre almofadas, droga, cigarros, vinho tinto e livros. Escrever-lhe as peças era-lhe tão simples como pedir um quarto de genebra com tónica em qualquer snack-bar do mundo. Tu fazias-lhe falta.

Estava fora de questão deixar Viena nesta altura, muito menos para se ir encarcerar algures nas montanhas. A paixão já não dava para tanto. Havia entendimento e amizade, por vezes. Trocas de pequenos favores enquanto o mestre se ia entretendo a criar discípulas. Mas agora pedia-lhe que regressasse por uns dias “só”, dizia. Precisamos de falar, preciso de contar-te esta ideia que tive. Queria lá saber do racismo ou do que quer que fosse que ainda a prendia a ele. Escrever-lhe os livros para não ter de escrever os seus, deixar de ouvi-lo durante uns meses, talvez anos desta vez que seria, como sempre, a última. Já se imaginava a florear-lhe dramas mais ou menos honestos em troca de algum sossego. Que raio! Três peças premiadas, dois prémios-carreira-literária. Depois desistira de ir com ele às cerimónias.
Sair. O ar gelado da noite e de novo o cansaço. A vontade de regressar a casa, à droga. Tinha de voltar a Roma antes do Natal e não sairia nos próximos dias. Em casa não lhe faltava nada, ninguém. Escreveria rapidamente qualquer coisa sobre o tema, teceria os primeiros diálogos, ou desta vez optaria pelo monólogo? Agarrou-se à máquina, escreveu.

Devia ser manhã outra vez quando precisou de deitar-se, mas o sono fora-se. Continuou a escrever sem interrupções pela semana dentro até que ele voltasse a telefonar. Atendeu.

- Sim, está quase pronta. Deixo-te o final à escolha, mas sempre dentro das tuas ideias directrizes. Parto para Roma, amanhã cedo, sim. Diz coisas. Quero ver se regresso a tempo de passarmos juntos o Natal, se ainda for importante para ti. Até lá... Envio-te hoje ainda. Beijo. Não precisas de agradecer.
- Nunca saberei como agradecer-te. Boa noite. Desculpa não perguntar como estás, mas sei que não gostas. Boa noite.

A.H.

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§ 6. 7. Drancula, Extractos do Diário de David Benson, por Boris Vian (Escritos Pornográficos)

7. Drancula

I
Eu encontrava-me em casa há pouco mais de uma hora no castelo do conde Drancula e já o aspecto sinistro daquele sítio fazia nascer no meu coração os mais sombrios pressentimentos.
A residência do conde erguia-se numa das regiões mais selvagens da grande floresta da Transilvânia que prepara o assalto aos primeiros contrafortes dos Cárpatos com as suas hostes negras de grandes pinheiros austríacos e de cedros de fronte desdenhosa; o castelo, no cimo de um pontão de roca, dominava uma ravina profunda, no fundo da qual rumorejava uma torrente espumosa.
O conde solicitara ao serviço de advocacia que me empregava em Londres para lhe delegar um dos seus representantes a fim de, escrevia ele, pôr em ordem certos papéis importantes; eu tinha na minha pasta a cópia da resposta que me credenciava para tanto, e essa pequena folha branca era a única coisa que conseguiu dissipar um pouco a minha angústia naquela situação.
Com efeito, há mais de uma hora que transpusera o umbral da austera construção de pedra cinzenta e nem uma alma se oferecera ao meu olhar. Somente alguns morcegos volteavam bizarramente pelo ar, povoando com os seus gritos estridentes o silêncio opressivo, apenas a recordação do meu grande escritório revestido a madeira em Londres me fazia manter o aprumo.
Ao percorrer, uma após outra, as salas desertas, acabei todavia por descobrir, perdido por trás de uma pequena torre virada a Norte, um quarto onde crepitava um fogo de lenha. Um bilhete, deixado sobre uma mesa, informava-me que o proprietário, na caça há já dois dias, pedia desculpa por me receber de maneira tão indelicada, suplicando-me para me acomodar o melhor que pudesse aguardando o seu regresso.
Coisa estranha, o lado misterioso do caso, longe de fazer crescer as minhas preocupações, dissipou-as, e foi de coração leve que ceei com grande satisfação.
Depois, despindo-me completamente, pois o calor era muito, estendi-me diante do fogo sobre uma imensa pele de urso negro que conservava ainda um ligeiro odor de fera, isto sem dúvida devido aos métodos rudimentares usados na sua conservação pelos habitantes da montanha.


negativo de O Beijo, Joel-Peter Witkin

II
Fui arrancado ao meu torpor por uma sensação de asfixia e por uma outra sensação, esta perfeitamente desconhecida. O meu passado de celibatário bem comportado não me tinha preparado de modo algum para tal experiência; mas ao mesmo tempo que um peso que me pareceu considerável assentou sobre o meu peito, tinha a impressão que o meu sexo inteiro estava mergulhado numa caverna quente e estranhamente móvel, e que tirava dessa excitação nova para ele um aumento de força e de volume completamente anormal. Retomando pouco a pouco a consciência, apercebi-me que o meu nariz e a minha boca eram esfregados por uma penugem elástica; um odor particular, um pouco estonteante, penetrava minhas narinas e ao aproximar as mãos, encontrei dois globos lisos e sedosos que estremeceram ao meu contacto e se ergueram ligeiramente; com o que, notando uma certa humidade no meu lábio superior, lambi essa humidade e a minha língua penetrou numa fenda carnuda e ardente que iniciou nesse instante uma longa série de contracções. Sorvi o sumo suculento que me corria agora pela boca e dei-me conta então que alguém se tinha estendido sobre mim a todo o comprimento, cabeça para os pés, roendo o meu membro enquanto eu lhe devolvia, do outro lado, a amabilidade; eu, David Benson, estava em vias de comer o órgão de uma criatura, e tirava disso um prazer extremo.
Esta constatação atingiu-me no instante em que, acometido de uma forte emoção, deixei escapar uma grande quantidade de esperma, engolida logo que lançada. Ao mesmo tempo, as coxas que me aprisionavam a cabeça enrijeceram; eu fiz o meu melhor, mergulhando e remexendo a língua o mais depressa que podia, e absorvia tudo o que pude tirar do cálice exasperado que dançava contra a minha boca. As minhas mãos não permaneciam inactivas, percorrendo de alto a baixo a racha perfumada onde o meu nariz recolhia um aroma afrodisíaco; os meus dedos penetraram por instantes numa fenda diferente e de mais difícil acesso.
- Estou tramado, pensava eu. O conde é um vampiro e esta pessoa está ao seu serviço. E eis que eu próprio me transformo num vampiro...
a criatura, nesse momento, forçou um pouco mais o seu cu contra o meu nariz e eu senti de encontro ao meu queixo um volume peludo e duro. Apalpando o objecto, reconheci que ele se prolongava por um membro teso turgescente que se esforçava por introduzir-se na minha boca.
- Eu sonho... pensei eu. Os dois sexos não podem estar reunidos numa só pessoa.
E, como é preciso aproveitar os sonhos para adquirir experiência, eu chupei esse membro tão bem quanto pude, encolhendo a língua contra o meu palato para fazê-la percorrer o sulco que dividia em dois a glande, pois eu queria levar a bom termo as suas pesquisas topográficas. A actividade do vampiro continuava em redor do meu ventre, e não sei como, ajudado por um movimento que fiz sem me dar conta, ele lambia-me os bordos do meu traseiro com uma língua afiada e móvel como uma cabeça de serpente. A minha verga flácida retomou o vigor com este contacto.
Um derradeiro alongamento do talo que eu sugava avidamente avisou-me de uma modificação súbita e a minha boca encheu-se de cinco ou seis esguichos de um esperma saboroso cujo gosto a lexívia deu depressa lugar a um aroma discreto de trufas. Antes que tivesse tempo de engolir tudo, o vampiro fez uma volta rápida e colou a sua boca à minha, examinando as minas gengivas e a minha garganta para recuperar alguns filamentos que aí se encontravam ainda. Entretanto, o meu sexo invadia um canal tórrido e doce, enquanto uma mão ligeira, cegada aos contornos do meu ânus, fazia penetrar nele um falo ainda tímido, mas que endurecia de balanço em balanço, enlouquecendo-me com as emoções mais vivas e mais inesperadas.
Esforçando-me por retomar a consciência, tive tempo para reflectir que se tratava forçosamente de um sonho, uma vez que a vagina que, no minuto precedente, se abria entre o ânus e os testículos, encontrava-se agora por cima da verga, e eu continuava a aproveitar-me disso. A besta percorria o meu rosto com lambidelas rápidas e fugazes, perto dos olhos, das orelhas e das fontes, pontos que jamais supusera tão sensíveis. Veio-me um desejo de ver essa criatura mas os clarões moribundos da lareira mal me permitiam distinguir uma parte da sua sombra que se recortava em contra-luz sobre a vermelhidão semi-morta do fogo.
Mas estas reflexões foram suspensas por uma nova vaga de prazer que me cortou e eu lancei um rio de licor para o fundo da vulva que apertava o membro enquanto sentia no mais profundo das minhas entranhas fluir o de meu íntimo demónio. Crispando as minhas mãos sobre seios agudos e duros a ponto de sentir os seus mamilos perfurar a minha carne, perdi a consciência, esgotado por impressões tão terríveis e tão fortes.
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O diário de David Benson detém-se aqui. Estas poucas folhas foram descobertas perto do seu corpo, nos arredores do castelo inabitado de Radzaganyi, na Hungria. David Benson tinha sido parcialmente devorado por bestas ferozes que, coisa curiosa, tinham atacado o seu baixo ventre, completamente devorado, e tinham coberto o seu rosto de excrementos e urina.

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§ 7. Taras, extraído de Esse Maldito Eu, (confissões e anátemas), 1987, de E.M. Cioran, seguido de uma Entrevista ao autor.

Taras

Quando se saiu do círculo de erros e de ilusões no interior do qual decorrem os actos, tomar posição é quase impossível. É preciso um mínimo de estupidez para tudo, para afirmar e até mesmo para negar.

Tudo o que me opõe ao mundo me é consubstancial. A experiência ensinou-me poucas coisas. As minhas decepções precederam-me sempre.

Para poder vislumbrar o essencial não deve exercer-se nenhum ofício. Há que permanecer caído todo o dia, e gemer...

Existe um prazer inegável em saber que o que se faz não possui nenhuma base real, que é indiferente realizar ou não realizar um acto. No entanto, nos nossos gestos quotidianos contemporizamos com a Vacuidade, quer dizer, alternativamente e às vezes ao mesmo tempo, consideramos este mundo como real e irreal. Misturamos verdades puras com verdades sórdidas, e essa amálgama, vergonha do pensador, é a vingança do ser normal.

Não são os males violentos que nos marcam, mas os males surdos, os insistentes, os toleráveis, aqueles que fazem parte da nossa rotina e nos minam tão meticulosamente como o Tempo.

Impossível assistir mais de um quarto de hora ao desespero de alguém.

A amizade só é interessante e profunda na juventude. É evidente que com a idade o que mais se teme é que os nossos amigos nos sobrevivam.

Podemos imaginar tudo, prever tudo, salvo até onde podemos afundar-nos.

O que ainda me apega às coisas é uma sede herdada de antepassados que levaram a curiosidade de existir até à ignomínia.

Quanto deviam detestar-se os trogloditas na escuridão e pestilência das cavernas! É normal que os pintores que nelas mal viviam não tenham querido imortalizar o rosto dos seus semelhantes e tenham preferido o dos animais.

“Tendo renunciado à santidade...” – Pensar que fui capaz de escrever semelhante enormidade! Devo, no entanto, ter alguma desculpa e espero achá-la ainda.

Fora da música, tudo, até a solidão e o êxtase, é mentira. Ela é justamente ambos, mas melhorados.

Até que ponto a idade simplifica tudo! Numa biblioteca peço quatro livros: dois têm a letra demasiado pequena, deixo-os sem os examinar; o terceiro, demasiado... sério, parece-me ilegível. Levo o quarto sem convicção...

Podemos estar orgulhosos do que fizemos, mas deveríamos está-lo muito mais do que não fizemos. Esse orgulho está por inventar.

A seguir a uma tarde com ele ficava extenuado, pois a necessidade de controlar-me, de evitar a menor alusão susceptível de feri-lo (e tudo o feria), deixava-me no final sem forças, insatisfeito tanto com ele como comigo mesmo. Acabava sempre por me censurar ter-lhe dado razão em tudo por escrúpulos levados até à baixeza, depreciava-me por não ter reagido, por não ter explorado, em vez de ter-me imposto tão extenuante exercício de delicadeza.

Nunca se diz de um cão ou de uma ratazana que é mortal. Com que direito se arrogou o homem esse privilégio? Afinal de contas, a morte não é uma descoberta sua. Que fatuidade julgar-se o seu beneficiário exclusivo!

À medida que perdemos a memória os elogios que nos prodigalizaram apagam-se, contrariamente às censuras. E isso é justo: os primeiros raramente se merecem, enquanto que os segundos nos revelam aspectos de nós mesmos que ignorávamos.

Se eu tivesse nascido budista, sê-lo-ia ainda; mas nasci cristão e deixei de sê-lo na adolescência, numa época em que muito mais que hoje teria podido exagerar, por tê-la conhecido, a blasfémia que Goethe escreveu no mesmo ano da sua morte numa carta a Zelter: “A cruz é a imagem mais odiosa que existe debaixo do céu”.

O essencial surge frequentemente no final das conversas. As grandes verdades dizem-se nos vestíbulos.

O caduco em Proust são as suas futilidades carregadas de uma vertigem prolixa, o estilo simbolista, a acumulação de efeitos, a saturação poética. É como se Saint-Simon tivesse sofrido a influência das Preciosas. Ninguém o leria hoje.

Uma carta digna desse nome só pode escrever-se sob o efeito da admiração ou da indignação, do exagero, em suma. Daí que uma carta sensata seja uma carta inexistente.

Conheci escritores obtusos e mesmo tontos. Pelo contrário, os tradutores com que tratei eram mais inteligentes e interessantes que os autores que traduziam. É lógico: necessita-se de mais reflexão para traduzir que para “criar”.

Quem for considerado pelos seus amigos como alguém “extraordinário”, não deve dar provas do contrário. Que evite deixar vestígios e sobretudo que não escreva, se deseja ser algum dia para todos o que foi apenas para alguns.

Mudar de idioma, para um escritor, é como escrever uma carta de amor com um dicionário.

“Creio que chegaste a detestar tanto o que pensam os outros como o que tu mesmo pensas”, disse-me aquela amiga pouco depois de depois de uma longa separação. Mais tarde, no momento de nos despedirmos, citou-me um apólogo chinês do qual podia deduzir-se que nada iguala o esquecimento de si mesmo. Ela, o ser mais presente, o mais transbordante de “eu” que possa imaginar-se, por que espécie de mal-entendido preconiza agora a renúncia até ao ponto de julgar que oferece o exemplo perfeito?

Incorrecto até ao intolerável, mesquinho, desastrado, insolente, subtil, intrigante e caluniador, captava os menores matizes de tudo, gritava feliz diante de um exagero ou uma piada... Tudo nele era atraente e repulsivo. Um canalha de quem sentimos falta.

A nossa missão é realizar a mentira que encarnamos, conseguir não ser mais do que uma ilusão esgotada.

A lucidez: martírio permanente, inimaginável proeza.

Aqueles que desejam fazer-nos confidências escandalosas contam cinicamente com a nossa curiosidade para satisfazer a sua necessidade de exibir segredos. Sabem, além disso, que os invejaremos demasiado para revelá-los.

Só a música pode criar uma cumplicidade indestrutível entre dois seres. Uma paixão é morredoura, degrada-se como tudo aquilo que participa da vida; ao passo que a música pertence a uma ordem superior à vida e, evidentemente, à morte.

Se não possuo o gosto do mistério é porque tudo me parece inexplicável, ou melhor dito, porque o inexplicável é o meu único sustento e estou farto dele.

X. censura-me que me comporte como um espectador, que não participe em nada, que o novo me repugne. –“Mas se eu não quero mudar nada”, respondo-lhe. No entanto, não compreendeu o sentido da minha resposta: crê-me modesto.

Assinalou-se acertadamente que a gíria filosófica muda tão rapidamente como o argot: as razões? A primeira é demasiado artificial, o segundo demasiado vivo. Dois excessos desastrosos.

Vive os seus últimos dias desde há meses, ou desde há anos, e fala do seu final no passado. Uma existência póstuma. Como estranho que consiga manter-se na vida quase sem comer, disse-me: “O meu corpo e a minha alma tardaram tantos anos a soldar-se que já não conseguem separar-se”.
Se não tem voz de moribundo é porque faz tempo já que não está vivo. “Sou uma vela apagada”, são as suas palavras mais justas sobre a sua última metamorfose. E quando evoco a possibilidade de um milagre, responde-me: “Precisava de vários”.

Após quinze anos de solidão absoluta, São Serafim de Sarow recebia os que o visitavam exclamando: “Oh, que alegria!”
Quem que não tenha deixado nunca de dar-se com os seus semelhantes, seria suficientemente extravagante para saudá-los assim?

Sobreviver a um livro destruidor é tão penoso para o leitor como para o autor.

É preciso encontrar-se em estado de receptividade, quer dizer, de debilidade física, para que as palavras nos cheguem, penetrem em nós e comecem no nosso interior uma espécie de carreira.

Deicida é o insulto mais acariciador que se pode dirigir a um indivíduo ou a um povo.

O orgasmo é um paroxismo; o desespero, outro. O primeiro dura um instante; o segundo uma vida.

Aquela mulher tinha um perfil de Cleópatra. Sete anos depois teria podido pedir esmola numa esquina. – Experiência que devia curar-nos no acto e para sempre de toda a idolatria, de todo o desejo de procurar o insondável nuns olhos, num sorriso ou numa voz.

Sejamos razoáveis: ninguém pode estar completamente de volta de tudo. E uma vez que não existe uma decepção universal, também não poderia existir um conhecimento universal.

Tudo o que não é dilacerante é supérfluo – em música pelo menos.

Brahms representa, segundo Nietzsche, die Melancholie des Unvermögens, a melancolia da impotência.
Semelhante juízo, escrito no mesmo ano da sua crise, sufoca para sempre o esplendor do seu afundamento:

Não ter feito nunca nada e morrer, no entanto, extenuado.

Esses transeuntes idiotizados... – Mas como pudemos cair tão baixo? E como imaginar um espectáculo assim na Antiguidade, em Atenas por exemplo? Basta um minuto de lucidez aguda no meio desses condenados para que todas as ilusões se desmoronem.

Quanto mais se detesta os homens, mais maduro se está para Deus, para um diálogo com ninguém.

A fadiga extrema leva tão longe como o êxtase, com a diferença de que com ela desce-se até aos limites do conhecimento.

Tal como a aparição do Crucificado dividiu a história em dois, esta noite acaba de dividir em dois a minha vida...

Tudo parece miserável e inútil quando a música emudece. Compreende-se assim que possa ser odiada e se sintam tentações de considerar o seu absoluto como uma fraude. Porque quando a amamos demasiado é preciso reagir contra ela, seja como for. Ninguém percebeu o seu perigo melhor que Tolstoi, pois sabia que podia dominá-lo completamente. Daí que começasse a execrá-la com medo de transformar-se num joguete seu.

A renúncia é a única variedade de acção não aviltante.

É imaginável um cidadão que não possua uma alma de assassino?

Ter somente o gosto pelo pensamento indefinido que não chega à palavra e pelo pensamento instantâneo que vive apenas graças a ela. A divagação e a boutade.

Um jovem alemão pede-me na rua um franco. Converso com ele e conta-me que percorreu meio mundo e que esteve na Índia, país de que admira os mendigos, os quais se gaba de imitar. No entanto, não se pertence impunemente a uma nação didáctica. Observei-o a pedir: parecia ter recebido cursos de mendicidade.

A natureza, procurando uma fórmula que pudesse satisfazer toda a gente, escolheu finalmente a morte, a qual, como era de esperar, não satisfez ninguém.

Há em Heraclito um lado Delfos e um lado manual escolar, uma mistura de ideias fulminantes e de rudimentos; foi um inspirado e um preceptor. É uma pena que não fizesse abstracção da ciência, que nem sempre pensasse fora dela.

Condenei com tanta frequência toda a forma de acto, que manifestar-me, seja de que maneira for, me parece uma impostura, para não dizer uma traição. – No entanto, você continua a respirar. – Sim, faço como toda a gente. Mas...

Que juízo fazer sobre os seres vivos se é verdade, como alguém defendeu, que o que perece nunca existiu!

Enquanto me expunha os seus projectos, escutava-o sem poder esquecer que não lhe restavam mais que uns dias de vida. Que loucura a sua de falar de futuro, do seu futuro. Mas, já na rua, como não pensar que afinal de contas a diferença não é tão grande entre um mortal e um moribundo? O absurdo de fazer projectos é só um pouco mais evidente no segundo caso.

Ficamos sempre antiquados pelo que admiramos. Quando citamos alguém que não seja Homero ou Shakespeare, corremos o risco de parecer passados de moda ou da cabeça.

No máximo, podemos imaginar Deus a falar francês. Nunca Cristo. As suas palavras perdem o encanto e o vigor numa língua tão inadequada para o ingénuo ou o sublime.

Interrogar-se sobre o homem durante tantos anos! Impossível exagerar mais o gosto pelo malsão.

A raiva provém de Deus ou do Diabo? – Dos dois. Como explicar senão que sonhe com galáxias para pulverizá-las e não possa consolar-se por ter unicamente ao seu alcance este pobre, este miserável planeta?

Para que nos agitamos tanto? Para voltar a ser o que éramos antes de ser.

X. que fracassou em tudo, lamenta-se de não ter tido um destino. – Muito pelo contrário, digo-lhe. A série dos teus fracassos é tão notável que parece revelar um destino providencial.

A mulher foi importante enquanto simulou pudor e reserva. Que deficiência demonstra empenhando-se em deixar de jogar o jogo! Agora já não vale nada, pois assemelha-se a nós. Assim desaparece uma das últimas mentiras que tornavam tolerável a existência.

Amar o próximo é algo inconcebível. Acaso se pede a um vírus que ame outro vírus?

Os únicos acontecimentos importantes de uma vida são as rupturas. Elas são também a última coisa que se apaga da nossa memória.

Quando soube que ele era totalmente impermeável a Dostoievsky e à Música, recusei-me, apesar dos seus grandes méritos, a conhecê-lo. Prefiro conversar com um atrasado mental sensível a qualquer dos dois.

O facto de que a vida não tem nenhum sentido é uma razão para viver, a única na realidade.

Tendo vivido dia após dia na companhia do Suicídio, seria injusto e ingrato que o denegrisse agora. Existe algo mais são, mais natural? O que não o é, é o apetite raivoso de existir, tara grave, tara por excelência, minha tara...

(Trad. de A.H.)


E.M. Cioran

Entrevista a Cioran, por Sylvie Jaudeau (TF3)

– Por que razão rompeu com a poesia?

– Por esgotamento interior, por desfalecimento da minha capacidade de emoção. Chega um tempo em que secamos. O interesse pela poesia está ligado a essa frescura do espírito sem a qual pomos rapidamente a descoberto os seus artifícios. O mesmo acontece com a escrita. À medida que avanço na idade, escrever parece-me pouco essencial. Saído agora de um ciclo de tormentos, conheço por fim a doçura da capitulação. Sendo o rendimento a pior das superstições, sinto-me feliz por não ter caído nela. Conhece o enorme respeito que tenho pelos incompletos, por aqueles que tiveram a coragem de se extinguir sem deixar vestígios.

Se me pus a escrever, deve imputar-se a responsabilidade disso à minha ociosidade. Tinha de a justificar, e que fazer senão escrever? O fragmento, o único género compatível com os meus humores, é o orgulho de um instante transfigurado, com todas as contradições que daí decorrem. Uma obra de grande fôlego, submetida às exigências de uma construção, truncada pela obsessão da continuidade, é demasiado coerente para o Ser verdadeiro.

– A sua verdade não reside nesse silêncio que hoje opõe àqueles que ainda esperam livros de si?

– Talvez; mas se não escrevo mais é porque estou farto de caluniar o universo! Sou vítima de uma espécie de usura. A lucidez e a fadiga venceram-me – quero dizer uma fadiga tanto filosófica como biológica –, algo em mim se desarranjou. Escreve-se por necessidade e o cansaço faz desaparecer essa necessidade. Chega uma altura em que isso deixa de nos interessar. Além disso, conheci muitas pessoas que escreveram mais do que precisavam, obstinadas em produzir, estimuladas pelo espectáculo da vida literária parisiense. Mas parece-me que também eu escrevi de mais. Um só livro teria chegado. Não tive a sabedoria de deixar inexploradas as minhas potencialidades, como os verdadeiros sábios que admiro, aqueles que, deliberadamente, nada fizeram da sua vida.

– Como vê hoje a sua «obra» (se esta palavra ainda tem algum sentido para si)?

– É uma questão que não me preocupa absolutamente. O destino dos meus livros deixa-me indiferente. No entanto, creio que algumas das minhas insolências ficarão.

– O que diria àquele que descobre a sua obra? Aconselhá-lo-ia a começar por uma determinada obra?

– Pode escolher uma qualquer, já que não há continuidade naquilo que escrevo. O meu primeiro livro contém já virtualmente tudo o que eu disse depois. Só muda o estilo.

– Existe algum título a que esteja particularmente apegado?

– Sem qualquer dúvida De l’inconvénient d’être né. Adiro a cada palavra desse livro, que se pode abrir em qualquer página e não é preciso lê-lo todo.
Estou também apegado ao Syllogismes de l’amertume pela simples razão de toda a gente ter dito mal dele. Pensava-se que eu me comprometera ao escrever esse livro. Na altura da sua publicação, só Jean Rostand percebeu: «Este livro não será compreendido», disse ele.

Mas gosto particularmente das últimas sete páginas de La chute dans le temps que representam aquilo que de mais sério escrevi. Custaram-me muito e foram de modo geral incompreendidas. Falou-se pouco desse livro, embora seja, na minha opinião, o mais pessoal e onde exprimi aquilo que mais me ia no coração. Existe algum drama maior, com efeito, do que cair do tempo? Mas poucos dos meus leitores perceberam esse aspecto essencial do meu pensamento.
Estes três livros teriam certamente bastado e não hesito em repetir que escrevi de mais.

– É a sua última palavra?

– Sim.

(Trad. de P.D.)

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§ 8. De Saída: Número 8 (como sempre às Quintas!)...

quinta-feira, junho 17, 2004

Ano Um / Número 6

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Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Die gestundete Zeit, por Ingeborg Bachmann
§ 4. Playmate absoluta do momento VI – María Zambrano
§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 6. Ensaio, por Monsieur de Montaigne
§ 7. Entrevista a Maria Filomena Molder, a propósito de "A Imperfeição da Filosofia" (Ed. Relógio D'Água, Novembro, 2003), por Helena Vasconcelos, naturalmente sem kind permission do Público de Sábado, 17 de Janeiro de 2004...
§ 8. De Saída: Número 7 (como sempre às Quintas!)...

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§ 1. Sumaríssimo

A começar, já agora, como deixar de saudar esta não-quadrada meia-dúzia de números (são 6) editados, e as mais de 550 visitantes, seguramente de mais-que-duvidosa ocupação (alguém acabará mais tarde ou mais cedo por nos ler e comentar???, desabafámos no número anterior, na última Quinta, sem este sufocante ar de apesar de tudo, triunfo extra-futebolístico contra matrioskas de trazer pelas ruas da amargura e questionável proveniência). Adiante.

Well, a verdade é que logo a abrir recaímos no bloomiano intersubjectivismo solipsista de Dito e Feito, por P.D., seguindo de imediato – adivinhe-se porquê? - para um poema que resolvemos verter por que Sim, só para ver o que dava, Die gestundete Zeit, (santinho!) sem ser pelas penas do nosso não menos ilustre Barrento.

A vítima da escolha da playmate absoluta do momento recaiu por unanimidade desta vez sobre María Zambrano, não dispensa as apresentações, que, todavia, não apresentaremos, para passarmos depois à sempre inesperada continuação da saga neo-cubista de A Explicação das Pássaras, por A.H.

Coube a M. de Montaigne o breve ensaio e finalizamos (Goooolo... de Portugal!) com a proposta de leitura de uma entrevista a que mui originalmente demos o repomposo título de: Entrevista a Maria Filomena Molder, a propósito de "A Imperfeição da Filosofia" (Ed. Relógio D'Água, Novembro, 2003), por Helena Vasconcelos, naturalmente sem kind permission do Público de Sábado, 17 de Janeiro de 2004...

E é tudo, folks!
Ficassem, neste caso, Vossas nentidades muito bem e até à próxima Quinta!

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§ 2. Dito e Feito, por P.D.

O dia seguinte

«O senhor Leopold Bloom comia com deleite os órgãos internos de mamíferos e de aves. Gostava da grossa sopa de miúdos, moelas apaladadas com noz, coração assado recheado, iscas fritas panadas, ovas de bacalhau fritas. Mais do que tudo, gostava de rins de carneiro grelhados que davam ao paladar um belo sabor de urina levemente perfumada...»

James Joyce, Ulisses


Dublin

Assim principia o dia de Bloom, em 16 de Junho de 1904.
O que fica após este dia? O mesmo do início: miudezas da vida e despojos do passado consumidos num longo monólogo de poucas regras, numa corrente ininterrupta da consciência concluída em seios que só querem dizer sim.
Devora-se as entranhas do dia, apalada-se a morte e vomitamo-nos, alternadamente, até ao resto da vida.
No fim, espera aquela que tece, desfaz e tece novamente os fios das horas. Reconhecer-me-ás nos andrajos? Cão, não me morderás?
Tiro-vos os fígados a todos e, mais tarde, também vós sereis comidos. Um dia... como os outros.

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§ 3. Die gestundete Zeit, por Ingeborg Bachmann

Die gestundete Zeit

Es kommen härtere Tage.
Die auf Widerruf gestundete Zeit
wird sichtbar am Horizont.
Bald musst du den Schuh schnüren
und die Hunde zurückjagen in die Marschhöfe.
Denn die Eingeweide der Fische
sind kalt geworden im Wind.
Ärmlich brennt das Licht der Lupinen.
Dein Blick spurt im Nebel:
die auf Widerruf gestundete Zeit
wird sichtbar am Horizont.

Drüben versinkt dir die Geliebte im Sand,
er steigt um ihr wehendes Haar,
er fällt ih rins Wort,
er befiehlt ihr zu schweigen,
er findet sie sterblich
und willig dem Abschied
nach jeder Umarmung.

Sieh dich nicht um.
Schnür deinen Schuh.
Jag die Hunde zurück.
Wirf die Fische ins Meer.
Lösch die Lupinen!

Es kommen härtere Tage.



Ingeborg Bachmann

O Tempo Aprazado

Chegam dias fatídicos.
Até o tempo que resta
despontar no horizonte.
Em breve terás de calçar os sapatos
e guardar os cães.
Pois as tripas do peixe
apodrecem ao ar.
Morta é a vida das tremoceiras.
O teu olhar atravessa o nevoeiro:
até ver o tempo aprazado
despontar no horizonte.

Aí se enterra a amante,
com areia pelos cabelos
a tapar-lhe a boca,
à ordem do silêncio,
a vê-la morrer,
docilmente.
a cada abraço de despedida.

Não olhes em teu redor.
Calça os sapatos.
Vai guardar os cães.
Atira o peixe ao mar.
Esquece as tremoceiras.

Chegam dias fatídicos.

(versão de P.D. with a small help from A.H.)

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§ 4. Playmate absoluta do momento VI – María Zambrano


María Zambrano

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§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.

6. beber só. Seis. A carta.

Beber para viver a beber a vida. O vício alimenta-se a si mesmo, nem que seja rastejando por uma cerveja fresca, à custa de tudo e de todos, sobretudo de nós mesmos. Nenhum viciado ouve calmamente estas palavras, mesmo que ditas por uma viciada como eu, ou sobretudo por serem escritas por uma falta de pessoa como eu, uma pessoa. Assim, como no poema das máscaras, do rapaz de Sils-Maria... Como ela amava todos os seus vícios, até mesmo, ainda que cada vez mais ocasionalmente, o sexo apenas e tão só pelo prazer, pela dissoluta luxúria e nada mais, o no hard feeling’s da manhã seguinte. Beber e seguir viagem, enquanto houver dinheiro e mesmo quando não. Cravar? Tudo menos ter de deixar de lembrar de uma forma cada vez mais sistemática a necessidade de esquecer, de viver cada minuto sem ser para esquecer, como se houvesse divertimento mais nobre. Um beijo? Uma merda.
Penso nisso depois, um dia destes. Como sempre.
Começou a ler. Uma espécie de prelúdio incompreensível.

28.03.99 ? (que significado teria tido na altura a indecisão relativamente à data?)

Os Pobres

Introdução

O que é um pobre?
Porque é impossível gostar dos pobres?
Der Weltverbesserer
Lénine e a confusão.

A graça das coisas… Lembrou-se.
Há dias, conversando com outro amigo, não interessa qual nem quando, abordámos sem preparação, como, aliás, é nosso hábito, o tema filosófico da pobreza. Estávamos bem bebidos e já havíamos conversado um pouco antes de iniciar o repasto, durante o inevitável gin com tónica e gelo.
Divagava ele sem rede há uns bons mais de dez minutos acerca da literatura, quando decidiste elogiá-lo, ainda de volta de um resto de gin. Disseste-lhe que daria um excelente crítico literário, disso não tinhas a menor dúvida, embora a sua maior formação fosse a da vida e dos seus modos de acabar com várias gerações seguidas de pessoas “geniais”. A segunda parte daquilo que acabo de afirmar nem sequer disse, para não me sentir na obrigação insuspeitada de ter de dar o exemplo, de provar da mesma água. Também não quis aprofundar o assunto em demasia. Queria, ao que suponho, limitar-me a recolher algumas ideias fundamentais para, wie gesagt wird, dar um novo rumo à minha vida. Talvez, no fundo, fosse isso que todos procurávamos ao perder tempo a conversar com um amigo. Mas gostava de ouvi-lo, naquele momento em que aparentemente só ligava ao copo de gin muito pouco refrescante que aquecia as mãos e o que fazer delas. Até porque ninguém diz simplesmente: Se não estivesses aqui, não saberia o que fazer da minha vida e isso por vezes é a única dignidade que nos resta… Ninguém fala assim com ninguém e muito menos o farias enquanto te debruças no cansaço a desaparecer diante do pó de há coisa de alguns minutos, diante de um copo de gin onde fixar os dedos e os olhos mesmo sem ser à procura de consolo, de dissolução. Portanto, também não disseste isso. Afastaste os olhos e ouviste a resposta. Saber pôr o outro a falar sempre te pareceu mais importante do que repetir pela vigésima vez episódios passados da própria vida.

Não te apetecia pensar nisso. Qual poderia ser o gozo de explanar o que se sabe de antemão? Ouvir-nos dizer aquilo que consideramos uma verdade?

O sol não é o melhor conselheiro. É preciso descansar.
Mas antes, alguns afazeres domésticos...

O que é um pobre?, que raio de pergunta.

A seguir, do outro lado?, vinha finalmente a carta, dos tempos do primeiro portátil que teve e que só utilizava para matar o tempo, os vários tempos de solitaire.

“António,” começava assim,
“também eu preciso de palavras. E não são apenas as que vêm de fora, mas as que vêm, ou, pelo menos, costumavam vir de dentro. Isto não é fácil! Cada vez ponho mais em causa o acto de escrever, escrevendo. E isto faz tanto sentido quanto a ressurreição de Cristo. Julgo que pessoas como nós estão condenadas a serem mais pó do que os outros. Quero dizer: o pó prolonga-se por mais tempo. Porque, hoje, não tenho dúvidas de que somos da mesma estúpida raça que tem de e vai escrever para que os outros façam teses, ganhem o seu dinheiro, façam as suas vidas que rejeitámos (porque nem sequer fomos perguntados acerca da possibilidade de ter outra), ou digam que não faziam outra coisa senão estar connosco, quando a maioria das vezes (se estávamos com eles) não passava de não podermos estar connosco e não haver mais ninguém. Sim, estou convicto de que, com esta tua nova vida, vais começar (se é que já não o tinhas feito) a escrever. Quando digo escrever, digo fazer com as palavras a mesma merda que fazemos com os dias. Conheço os sinais! E é fodido, não é nada, pelo menos para nós. Estou em Istambul e apetece-me tanto viver como se estivesse em Lisboa, Viena ou Paio Pires. Não obstante, comporto-me como se viver fosse a minha vida. De fora, dizem: tens uma vida do caralho. Aquilo que não sabem, e que não podem saber, é que, seja do caralho ou da cona, interessa-me tanto quanto encontrar um restaurante sem bebidas (das que sabes). E há frases que escreves, em português, que são melhores do que os livros que esses gajos vão escrevendo nessa terra que não tem ponta por onde se pegue. Para mim são um estímulo! Para quê? Para morrer depressa e melhor! Que é o que julgo (pelo menos tenho essa pretensão) ser o efeito das minhas palavras em ti. A língua portuguesa interessa-me tanto quanto um dia de perfeito tédio. Mas se tivesse outra não sei se seria diferente, e nunca irei saber. António, um gajo lê na língua que pode ler, e, quanto a escrever, escreve na que lhe resta. O resto é adolescência mal resolvida, romantismo e falta de sobriedade. Com trinta e cinco anos (quase) já não há puta de paciência para essa merda. Quanto muito dizemos: por vezes, o tempo que gastamos, que somos, até não se desperdiça de volta das palavras. Agora imagina que seríamos professores numa qualquer Universidade desse país (ou noutro) e tínhamos de fazer crer que ler e escrever e pensar até podia ser uma coisa boa, ou pelo menos pensar que seria boa para nós, que nos daria algum poder. É nestes momentos que me sinto próximo de Deus, António. Quando sinto que não tenho ilusões e que isso, obviamente, não pode vir de mim. Como pode vir de mim qualquer coisa que não é humana? Sei que Deus para ti é apenas uma cerveja a menos que bebes, mas como pode um gajo não acreditar em Deus num mundo, cada vez mais, de homens, de escória? A existência de Deus revela-se na directa proporção do desejo de poder dos homens, não o contrário. Quanto menos se vê, mais há. Deus não é religião. Religião é apenas o poder dos homens. Deus é, pelo menos é o que me parece, o buraco que temos, que sentimos e que não conseguimos curar. E, quando estou a falar de buraco, não estou a falar do cu, estou a falar daquilo que nos põe a falar, a beber, a foder e, até, a dizer amor. Dizias que precisavas de palavras. António, precisamos mais do que isso, precisamos de nos reconciliar com Deus, com o buraco que nos habita, que somos. Feliz o homem que carrega culpas e desgraçado dele. E quando digo culpa digo consciência. E se digo consciência digo estar no buraco. E, olha, já não digo mais! Agora, se quiseres, diz tu. Um grande e forte abraço, daquela que, como tu, ainda se sabe perder e pedir palavras, apenas para nada, porque sim, Paula."

Era assim que gostava de assinar algumas das poucas putices mais importantes que escrevia. Há quanto não o fazia já? Há quanto tempo perdera a estranheza de escrever à máquina?...

Sent: Wednesday, April 19, 2000 11:39 PM

E depois uns olhos muito cansados. Mais ainda. Como esquecer a importância que foi a epifânia da primeira leitura d’ A Carta de Lord Chandos… A correspondência a querer ser e ser mais do que uma muleta estilistico-qualquer-coisa. Hoje já não estava em condições de mais do que acabar por ir jantar tardiamente com algum amigo que já não visse há muito tempo, o que não era difícil. Mais difícil seria encontrar algum disponível para lhe fazer companhia durante pouco mais do que algumas horas, o tempo de uma refeição decente. Não aguentava o contacto com os outros por muito tempo, excepção feita a B., sem acabar por se irritar ou começar simplesmente a sentir o incómodo da obrigação de dizer coisas interessantes.
E agora… uma e quarenta e cinco da madrugada, acabou por ficar em casa e só se despir já tarde dentro do dia seguinte.

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§ 6. Ensaio, por M. De Montaigne


Michel de Montaigne

I, 51 - Da vaidade das palavras

(a) Um retórico do passado dizia que o seu ofício era fazer com que as coisas pequenas parecessem grandes e como tais fossem julgadas. (b) Dir-se-ia um sapateiro que, para calçar pés pequenos, sabe fazer sapatos grandes. (a) Em Esparta ter-lhe-iam dado a experimentar o azorrague por professar uma arte trapaceira e mentirosa. (b) E creio que Arquidamo, que foi seu rei, não terá ouvido sem espanto a resposta de Tucídides, ao qual perguntara quem era mais forte na luta, se Péricles, se ele: «Isso será difícil de verificar, pois quando o deito por terra, ele convence os espectadores que não caiu, e ganha.» (a) Os que, com cosméticos, caracterizam e pintam as mulheres fazem menos mal, pois é coisa de pouca perda não as ver ao natural, ao passo que estoutros fazem tenção de enganar, não já os olhos, mas o nosso juízo, e de abastardar e corromper a essência das coisas. Os Estados que longamente se mantiveram em boa ordem e bem governados, como o cretense e o lacedemónio, não tinham em grande conta os oradores.
(c) Aríston definiu sabiamente a retórica como a ciência de persuadir o povo; Sócrates e Platão, coma a arte de enganar e lisonjear; e aqueles que isto negam na sua definição genérica, confirmam-no por toda a parte nos seus preceitos. Os Maometanos proíbem-na de ser ensinada às crianças por causa da sua inutilidade. E os Atenienses, ao tomarem consciência de que a sua prática, a qual gozava de todo o crédito na sua cidade, era perniciosa, ordenaram que a sua parte principal, que consiste em mover as paixões, dela fosse retirada juntamente com os exórdios e as perorações.
(b) É um instrumento inventado para manipular e agitar turbas e multidões desordenadas, e que, à maneira da medicina, só se emprega nos Estados doentes. Naqueles onde o vulgo, onde os ignorantes, onde todos, tudo puderam, como os de Atenas, Rodes e Roma, e onde as coisas estavam em perpétua tempestade, abundavam os oradores. E, na verdade, nesses Estados viam-se poucas personagens atingir grande reputação sem o socorro da eloquência: Pompeu, César, Crasso, Luculo, Lentulo, Metelo apoiaram-se sobretudo nela para se alçarem à grandeza de autoridade aonde por fim chegaram, mais dela se valendo que das armas (c), e contrariando o que se pensava em melhores tempos. De feito, Lúcio Volúmnio, ao falar em publico a favor da eleição ao consulado de Quinto Fábio e Públio Décio, dizia: «São pessoas nascidas para a guerra, grandes na acção, rudes nas pugnas verbais: espíritos verdadeiramente consulares. Os subtis, os eloquentes e os eruditos são bons para ficarem na cidade como pretores a ministrar a justiça.»
(a) A eloquência floresceu mais em Roma quando os negócios públicos se achavam no seu pior estado e a tormenta das guerras civis os agitava, tal como um campo desocupado e incultivado produz as ervas daninhas mais viçosas. Assim, parece que os governos dependentes de um monarca têm dela menos necessidade que os outros, pois a estupidez e a ductilidade que se encontram na plebe e que a tornam sujeita a ser manipulada e meneada pelas orelhas ao doce som dessa harmonia, sem que chegue a sopesar e a conhecer a verdade das coisas pela força da razão, essa ductilidade, digo, não é tão fácil de se achar num só individuo, sendo este mais facilmente salvaguardado dos efeitos de tal veneno por uma boa educação e por bons conselhos. Não se viu sair da Macedónia nem da Pérsia nenhum orador de renome.
(b) Disse eu isto por causa de um italiano com quem acabo de conversar, o qual serviu como mordomo o cardeal Caraffa até à morte deste. Pu-lo a falar das suas incumbências. Fez-me ele um discurso sobre a ciência das goelas corno se estivesse a perorar acerca de uma importante questão de teologia. Enumerou-me as diferentes espécies de apetite, o que se tem em jejum e os que se têm após o segundo e o terceiro pratos; os meios quer de simplesmente os satisfazer, quer de os estimular e aguçar; a política dos molhos, primeiro tratada na generalidade, depois na particularidade; discriminando as qualidades dos seus ingredientes e os seus efeitos; e as diferenças das saladas consoante a época, as que devem ser aquecidas e as que devem ser servidas frias, e a maneira de as decorar e embelezar para as tornar mais agradáveis à vista. Após o que, ele encetou o assunto da ordem dos serviços, abundando em belas e importantes considerações.

(b) nec minimo sane discrimine refert
Quo gestu lepores, et quo gallina secetur.

[«e não é seguramente de somenos importância o saber como se trincha uma lebre e uma galinha» - Juvenal, V, 123-124]

(a) E tudo isto recheado de ricas e magníficas palavras, incluindo aquelas mesmas que se empregam para discorrer sobre o governo de um império.
Este homem trouxe-me à lembrança os seguintes versos:

Hoc salsum est, hoc adustum est, hoc lautum est parum,
Illud recte; iterum sic memento; sedulo
Moneo quae possum pro mea sapientia.
Postremo, tanquam in speculum, in patinas, Demea,
Inspicere jubeo, et moneo quid facto usus sit.

[«"Isto está salgado! Isto, queimado! Isto, pouco saboroso! Aquilo está como deve ser! Lembra-te de fazeres o mesmo da próxima vez". Aconselho-os cuidadosamente, na medida do meu parco saber. Por fim, ó Demea, ordeno-lhes que tenham os tachos luzidios como espelhos, e aviso-os de tudo o mais que deve ser feito.» - Terêncio, Adelphi, III, iii, 71-75]

A verdade é que os próprios Gregos grandemente louvaram a ordem e a disposição que Paulo Emílio observou no festim que lhes ofereceu ao voltar da Macedónia. Mas não falo aqui das acções, falo, isso sim, das palavras.
Não sei se com os outros acontece o mesmo que comigo, mas quando eu ouço os nossos arquitectos incharem-se com palavrões como pilastras, arquitraves, cornijas, ordem coríntia, ordem dórica, e outros que tais da sua gíria, não posso impedir que logo me venha à mente a imagem do palácio de Apolidon, ao passo que na realidade venho a descobrir que estão a designar as míseras partes da porta da minha cozinha.
(b) Quando ouvis dizer metonímia, metáfora, alegoria e outros similares termos gramaticais, não vos parece que se esteja a falar de alguma forma de linguagem rara e peregrina? São designações que se aplicam ao palavrório da vossa criada!
(a) É um logro parecido com este o de nomear os nossos cargos públicos com os grandíloquos títulos dados aos dos Romanos, ainda que não tenham nenhuma semelhança com eles quanto à função e, ainda menos, quanto à autoridade e ao poder. É-o também estoutro logro (que, em minha opinião, virá um dia a servir de testemunho da singular inépcia do nosso século) de indignamente atribuir a quem bem nos apetece os gloriosos sobrenomes com que a Antiguidade honrou, ao longo de muitos séculos, uma ou duas personagens. Obteve Platão, por consenso universal, o cognome de divino, que ninguém lhe ousou invejar, mas os italianos, que se gabam, e com razão, de comummente terem o espírito mais vivo e o discernimento mais são que os outros povos coevos, acabam de outorgar ao Aretino, no qual, salvo uma maneira de falar empolada e fervilhante de ditos agudos e, enfim, a sua eloquência, qualquer que ela seja, não vislumbro nada que paire acima do comum dos autores do seu tempo: era o que faltava que o aproximassem dessa «divindade» dos antigos! E o sobrenome de grande, nós o aplicamos a príncipes que nada possuem acima da grandeza popular.

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§ 7. Entrevista a Maria Filomena Molder, a propósito de "A Imperfeição da Filosofia" (Ed. Relógio D'Água, Novembro, 2003), por Helena Vasconcelos, naturalmente sem kind permission do Público de Sábado, 17 de Janeiro de 2004...

Um brilho sem vacilações

[Maria Filomena Molder iniciou a sua fulgurante trajectória como docente do Departamento de Filosofia da Universidade Nova em 1980, onde lhe foi atribuída a cadeira de Filosofia Medieval. Dessa experiência ficou-lhe o interesse por Santo Agostinho, Santo Anselmo e outros doutores da Igreja com quem mantém vivo contacto, apesar de os seus interesses terem continuado a expandir-se, principalmente em campos tão férteis como a Estética e a Filosofia da Linguagem. Desta autora, é possível encontrar na mesma editora a obra "Semear na Neve".]

Mil FOLHAS - Como se tem desencadeado o seu percurso de professora de Filosofia Medieval até esta "abertura" para a Estética e para a Filosofia da Linguagem?

Maria Filomena Molder - Na verdade, não estava preparada para ensinar filosofia medieval, no sentido de já ter levado a cabo uma longa e exaustiva investigação. Mas foi a cadeira que me foi distribuída quando, em 1980, entrei para o Departamento de Filosofia da Universidade Nova, precisamente no seu segundo ano de existência, e me dediquei inteiramente ao seu estudo durante os dois breves anos em que a leccionei. No entanto, desde os meus tempos da Faculdade de Letras que alguns dos autores medievais e dos seus problemas me tinham afectado profundamente (e evoco aqui o Padre de Cerqueira, meu professor de Medieval). Exemplifico: Santo Agostinho e o mistério do tempo e da memória, o modo original de conceber a linguagem, o modo de citar (que tomei como regra íntima) - quanto mais próximo de nós está um texto, menos a citação aparece como uma citação, ficando, por assim dizer, incorporada nas nossas palavras; Santo Anselmo e a sua delirante prova ontológica, que tantas voltas nos dá à cabeça, uma autêntica mina para exploração das relações entre o possível, o real e o pensável; o problema dos universais (a Arca de Noé é uma das suas apresentações mais antigas), que vem ter connosco sempre que tentamos distinguir um gato de um cão ou de saber qual é a diferença entre a arte e uma obra de arte. Além destes, tive a oportunidade de voltar a estudar durante esses dois anos um autor, que é como o último dos Gregos, Plotino, aquele que já não se vê propriamente como filósofo, e se atribuiu apenas o papel de intérprete, e que para as coisas da Estética (que é uma palavra tão recente!) se revelou um autêntico manancial, sobretudo para a compreensão da relação entre forma e informe e para a visão do universo como o acto de um dançarino.

P.- Acha que a sua base "medievalista" a preparou para o desenvolver do seu pensamento ou precisou de fazer um "corte", voltando às raízes clássicas da nossa cultura?

R.- Releio sempre Plotino, que não é um pensador medieval, mas foi tão lido directa ou indirectamente pelos medievais, e regresso muitas vezes aos abismos agostinianos: ao imenso palácio da memória, ao labirinto do tempo (não só o famoso "se não mo perguntam sei o que é, se mo perguntam não sei o que é", mas também o surpreendente, o admirável, resultado - é que ele acaba mesmo por nos esclarecer em que consiste o tempo: uma distensão da alma). E, recentemente, por obrigações de distribuição de serviço, voltei à filosofia medieval, mas agora, e mantendo-se a minha impreparação nos termos referidos, decidi-me a ler com os estudantes "A Divina Comédia", na qual encontrei tudo o que esperava encontrar, mais tudo o resto: o "absoluto que pertence à terra", que sendo um leit-motiv de Broch, não se podia aplicar melhor a Dante - ele chamava-lhe liberdade; as relações entre poesia e filosofia, entre sonho, visão e poesia; a visão infernal do tempo; uma das compreensões mais temíveis do suicídio; o carácter desmedido, insolente, da poesia; uma metafísica da luz... Na verdade, encontra-se tudo n' "A Divina Comédia"! Levou-me a reler, por exemplo, o tratado sobre os anjos de São Tomás de Aquino. Acrescente-se que o melhor guia para "A Divina Comédia", poema que não poderia ser mais medieval e continua a resistir a qualquer esforço de classificação, é o poeta russo Óssip Mandelstam.

P.- O seu trabalho tem vindo a desenvolver-se de uma forma segura e revigorante. Como chegou a esta íntima conexão do pensamento filosófico com a literatura, a fotografia, o cinema, a ciência e as artes plásticas?

R.- Gostaria de lembrar que se pode fazer filosofia (aliás, o mesmo se passa com a arte) a partir do que quer que seja (embora não se faça de qualquer maneira, como também acontece com a arte), e sempre se fez. O primeiro crítico sistemático da poesia foi Platão, e o seu primeiro defensor, Aristóteles, que ainda sabia (e aqui ele já citava o dificílimo Heraclito) que em todos os lugares pode haver deuses ou, usando as palavras de Colli, o primeiro dever do filósofo é não caluniar as aparências. Desde pequena que não posso viver sem música e sem cinema. Descobri na adolescência a poesia, as outras artes.

P.- Fala de Sócrates e do seu pedido para que seja aceite a "natureza incompleta da filosofia". Em relação ao título deste seu livro - "A Imperfeição da Filosofia" - será que está a reportar-se às palavras do filósofo? Ao debruçar-se sobre essa "imperfeição" quer dizer que a sabedoria implícita no termo Filosofia não é completa e que em vez de "consolo" traz a inquietação inerente à descoberta continuada?

R.- Reli Boécio e a sua "A Consolação da Filosofia" - uma obra escrita na prisão de Ticinium em 524 ou 525, antes de ele ser executado - por causa do Dante. É um admirável esforço de se libertar do desespero, da desilusão, do medo da morte e do desprezo pela morte desonrosa. Nessa obra, vemos pela última vez brilhar sem vacilações a relação entre filosofia e modo de vida ou, melhor, a filosofia entendida como modo de vida, coisa que os Modernos tenderam a ocultar de forma mais ou menos eficaz. No meio da devastação, há quem jogue ao xadrez. Que a filosofia providencie a consolação tem alguma parecença com o jogo: suspende-se a relação com a imediatez, abre-se uma pequena fenda e tenta-se respirar melhor. Por seu lado, a imperfeição tem a ver com incompletude, um sentimento de perda, e com agilidade, leveza, tentar não cair como o acrobata. Isto é, a filosofia traz realmente inquietação e só atravessando essa parede ardente podemos chegar a vislumbrar que ela rima com "descoberta continuada".

P.- Refere o suicídio no contexto a que a ele se referiu Camus que disse: "Só há um problema filosófico realmente sério: o suicídio."?

R.- Não me sinto capaz de falar do suicídio a não ser por interposta pessoa. N' "A Divina Comédia", Dante dá-nos a ver duas inexcedíveis aproximações, ambas perturbadoras. Num dos círculos do Inferno, numa vastidão hostil, crescem umas estranhas árvores, em cujos ramos retorcidos em vez de seiva corre sangue humano. Com crueldade involuntária, Dante parte um desses ramos e ouve uns lamentosos gritos de dor. Sem o saber, acaba de mutilar um suicida, por quem ele tem grande admiração e sente piedade, Piero della Vigna, homem de espírito nobre, acusado injustamente de traição. O suicida aos olhos da crença cristã é um escândalo, pois é um gesto de rebelião contra a vontade criadora de Deus, através da rejeição de si próprio, do seu corpo próprio. E, por isso, o suicida é aquele que jamais poderá resgatar o seu corpo, perdeu o direito a ele, quer dizer, o mistério da ressurreição foi por ele absolutamente selado. A outra aproximação encontramo-la à entrada do Purgatório, guardada por alguém que não é só um pagão, mas também um suicida, Catão. Mas, aqui, que a morte própria tenha origem no amor pela liberdade é um excesso bem-vindo aos olhos de Dante. Mais perto de nós, e próximo de Camus, temos o testemunho de Jean Améry.

P.- No seu texto sobre Rilke fala da "atmosfera da civilização", essas sucessivas "crostas" criadas pelo ser humano, que nos isolam de Deus. Será que, como diz Steiner, a religião poderia ser definida como uma resposta narrativa à interrogação de Leibnitz: "Porque há alguma coisa em vez de nada?"?

R.- Que a civilização seja constituída por uma sobreposição de crostas que nos separariam de Deus é uma ideia wittgensteiniana, ou melhor, é a devolução por Wittgenstein de um lugar-comum de muitas culturas, incluindo a ocidental, qualquer que seja a sua formulação, e isto desde que nós nos podemos lembrar. Esse lugar comum exprime o sentimento de perda de um contacto íntimo com o mistério da vida, do ser, de deus ou dos deuses, e obriga muitas vezes a procedimentos mais ou menos austeros de desprendimento e ascetismo, que atravessam a religião, a filosofia, a arte: voltar a conhecer a simplicidade do coração, voltar a beber a água pura das fontes. O que é uma maneira de reconhecer um grau de inadaptação "quantum satis" do ser humano à sua própria história. A pergunta pelo nada, a pergunta de Leibniz (retomada de maneira particular por Heidegger, do qual Steiner é um grande leitor), é a pergunta que não se refaz nunca do mistério de haver isto tudo que há, e conheceu respostas antes de a filosofia as ter formalizado. A descrição do Génesis é uma dessas respostas, que protege, como um tesouro ou um escândalo incomunicável, o porquê. Num dos mais belos hinos védicos, isso, que não pode deixar de ser ocultado, é apontado assim: pode ser que aquele que sustenta tudo saiba o porquê desta existência secundária (que inclui os homens e os deuses), mas também pode acontecer que esse também não saiba.

P.- Diz que a "imoderação própria da actividade filosófica tem a ver com a natureza do amor". Parece uma referência a uma espécie de movimentação física arrebatadora como o sexo. Será que se refere a Eros e à nossa mortalidade?

R.- Há uma embriaguez própria do acto contemplativo, no sentido em que a suspensão da vida a que ele obriga pode levar a um comprazimento solipsista, mas esse estar consigo próprio também pode originar formas mais ou menos agudas de dilaceração. Como muito bem diz a imoderação a que me refiro, atribuindo-a à natureza do amor, tem a ver com o deus Eros, essa força física, cósmica, que faz mover tudo e, em particular esses que tentam decifrar os discursos escritos nas suas própria almas, e, portanto, apresenta-se como um desafio à nossa mortalidade. É no "Fedro" que Platão descobre esse chamamento, que permita vencer a tentação (e a ilusão) solipsista, e toma formas paradoxais. No caso do discurso de Aristófanes, encontramos esta pergunta: os amantes não procuram outra coisa a não ser estarem juntos, que querem eles? No caso do discurso de Diotima, que se faz ouvir pela voz de Sócrates, no termo da descrição da escala de graus da experiência erótica, surpreendemos a alma a deixar cair tudo o que parecia decisivo: a figura, o saber, o logos, de modo a poder despenhar-se no pélago, no mar do desejo.



Maria Filomena Molder

P.- A linguagem utilizada na sua escrita é muito próxima da Poesia e, em muitos aspectos possui uma espécie de esplendor da visualização cinematográfica e/ou fotográfica. Aliás, a sua íntima ligação com essas duas linguagens é bem explícita. Como distingue o olhar sobre a pintura, a fotografia, o cinema e o olhar focado na palavra e no pensamento?

R.- Há quem tenha, e de modo excelente (em particular os poetas e os artistas), encontrado grandes afinidades entre a palavra e a pintura. Mas, na verdade, trata-se mais da aproximação entre escrita e pintura do que da relação entre palavra e pintura.
O pensamento dá-se bem com a palavra. Não me encontro entre aqueles para quem as palavras não chegam e, em contrapartida, estão convencidos de que há outras coisas que chegam. A palavra nasce na nossa boca, um dos lugares íntimos do nosso corpo, e, ao mesmo tempo, solta-se, expandindo-se, criando correntes de energia, e, como se não bastasse, é imediatamente um esforço compreensivo e expressivo. Ao contrário do que acontece com as mãos, instrumentos de realização, à voz humana, paradoxalmente, porque não podia ser-nos mais íntima, é atribuído um estatuto de mediação, que certamente provém da sua vocação conceptual, a palavra engana, louva, fere, mata, calcula. Quer dizer, a palavra não se mistura com aquilo de que fala, as palavras não são coisas. As artes passam adiante dessa separação entre o que há e o nosso dizer, há um elemento nelas que resiste definitivamente ao poder do logos (o que também sucede na poesia, mas com contornos únicos: a palavra resiste à palavra, e aí a música faz uma das suas aparições), que é o poder de irem ter directamente com as coisas, de se colocarem ao lado delas. Não sendo um prolongamento do corpo, as artes fazem parte do reino dos corpos, e qualificam directamente o espaço (aqui a arquitectura toma a dianteira). A escrita, em parte, também conhece estas determinações, daí a relação com as artes, mas há uma parte da escrita que não pertence ao espaço, que procede do som e do espírito da voz. Acho que não respondi inteiramente à sua pergunta. Mas sugiro-lhe que fiquemos por aqui.

P.- Os problemas da linguagem atravessam a sua obra. Vivemos em tempos babélicos? Ou, pelo contrário, estamos já num pós-Babel? Será que a palavra se transformou em ruído, que vivemos enclausurados neste "mortal coil" [invólucro mortal] onde ecoa o "shuffle" [tumulto] de que fala Shakespeare em "Hamlet"?

R.- Dá muito que pensar que na "Epopeia de Gilgamesh", onde existe a primeira referência ao grande Dilúvio, destruidor de toda a vida (a que só escapou um ser humano, a primeira versão de Noé), tenha sido decidido pelos deuses, pela razão simples e suficiente de já não poderem suportar o ruído que os homens faziam. A Torre de Babel é um lugar de atracção atormentada e um lugar que originou muitos lamentos, em que se misturam a confusão das línguas, a mudez e a surdez, o ruído. De tempos a tempos o projecto da Torre retorna. Mas o momento em que Babel fosse resgatada, e o coração humano não conhecesse essa desmedida (talvez um outro nome para a pedra sacrílega que Nietzsche diz estar à porta de qualquer civilização), não seria o dia da vitória sobre a multiplicidade das línguas. Vejo-o mais como equivalente ao dia de Pentecostes: cada um falaria na sua própria língua e todos seriam capazes de entender.

P.- De que é que nós, os seres humanos, temos medo? Do vazio? Do Nada?

R.- Gostaria de lembrar que o primeiro texto literário conhecido, escrito na Suméria centenas de anos antes da "Ilíada" e da "Odisseia", a "Epopeia de Gilgamesh"(que é por um lado o nome da personagem e o próprio autor), concentra-se em volta de duas experiências, que se podem abater sobre qualquer um de nós separadamente, mas que no poema são simultâneas: cair em si e descobrir o medo da morte pelo escândalo da morte alheia, a daquele que se ama. Devido a essas descobertas, acompanhadas por sentimentos insuportáveis de terror e de perda, Gilgamesh empreende uma viagem à procura da imortalidade. No termo da viagem, depois de ter falhado todas as tentativas de o conseguir (e que se resumem, por um lado, à impossibilidade de dominar o tempo e, por outro, à incapacidade de se metamorfosear até ao fim), o príncipe Gilgamesh regressa à sua cidade de Uruk, senta-se à beira das suas muralhas e escreve num poema tudo aquilo por que passou. Quer dizer, aquele que procurou desesperadamente, e em vão, por uma imortalidade incomportável, acaba de surpreender uma outra forma de imortalidade, a única que nos convém: imprimir sinais em tabuinhas de barro, contar uma história. Mesmo presentes, os deuses não atravessam sempre essa história, sobretudo quando o que está em causa é contar a alguém aquilo que aconteceu, uma prerrogativa humana. É aí que se engendram o poder da memória, o dever da transmissão e a tarefa de rememorar. Por outro lado, se nós conseguimos imaginar a corrupção do nosso corpo, o nosso tornar-se cadáver, já não somos capazes de modo nenhum de antecipar a irrealidade do nosso pensamento, quer dizer, a imaginação sem a condição do espaço emudece e paralisa. Isso é fonte de grande angústia.

P.- No ensaio que dá o título ao livro fala de Platão e do seu "projecto de uma arte de escrita" que escapasse ao "destino" da maior parte dos textos: ou serem uma "fonte de equívocos", encantando os leitores com falácias - domínio do romance, da ficção a que tanto quis fugir Daniel Defoe; ou serem um instrumento mais ou menos imposto ao leitor quando se entra nos domínios da retórica, da política ou da pedagogia. Essa "arte de escrita", do domínio filosófico, ganha em liberdade, permitindo uma espécie de "desprendimento" e de alastramento nos vários campos da experiência e do saber que parece ser do seu agrado. Concorda?

R.- Nessas hipóteses interpretativas, acerca do que a escrita filosófica não é, fazem-se ouvir as palavras de Platão sobre o assunto: a escrita é sempre enganadora ou porque encanta ou porque persuade e, em qualquer dos casos, em geral, a escrita é impotente, muda e incapaz de se defender. E ele, no "Fedro", tenta a introdução do único gesto que poderia diminuir essa impotência, justamente um projecto de escrita filosófica ou uma arte da escrita, em que aquele que escreve adverte aquele que lê contra os perigos em que está aquele que escreve, contra a petrificação, a esclerose, a mudez do efeito retórico. Gosto muito dessa expressão: "uma espécie de 'desprendimento'", que é ao mesmo tempo reserva, poder juntar um tesouro, e liberdade de seguir em qualquer lado, e em qualquer coisa, os vestígios daquilo que se procura.

P.- Alain de Botton - que escreveu "As Consolações da Filosofia" - diz que os seres humanos têm seis "gurus" para seis preocupações universais: Sócrates e a impopularidade; Epicuro e a falta de dinheiro; Séneca e o estado de frustração; Montaigne e a imperfeição; Schopenhauer e desgosto, Nietzsche e a necessidade da dificuldade. É uma espécie de "filosofia, modo de usar". Que autores escolheria - estes ou outros - como "pilares" a que podemos sempre recorrer?

R.- Não há experiência mais gratificante do que o reconhecimento da grandeza de alguém, mas essa experiência contém uma ameaça, a de se ser aniquilado. Para escaparmos a essa ameaça, é preciso que transformemos o reconhecimento da grandeza alheia em sentimento de veneração. Não se pode começar a pensar verdadeiramente sem essa forma de iniciação, que implica olhar para trás, conservar as cinzas, pagar as suas dívidas, provar a si próprio que não se é mais indigno do que aqueles que nós desprezamos. Estas palavras não poderiam ter sido escritas por mim, sem Goethe, Baudelaire, Benjamin e Montaigne. Mas ainda falta falar de Heraclito, Platão, Aristóteles, Plotino, Kant, Nietzsche, Wittgenstein, Broch, Colli. É evidente que a série está incompleta.

P.- Os seus livros possuem a inefável qualidade de poderem ser lidos sem uma preparação puramente filosófica. [Será que deseja fazer da prática do pensamento um instrumento vivencial, como em tempos idos era a leitura da Bíblia?] Aquilo a que chamou a "descoberta continuada" poderá estar ao alcance de (quase) todos?

R.- "Os limites da alma nunca os conhecerás", terá dito Heraclito por meio de um dos seus transmissores, o que é uma bela maneira de se contrapor à advertência socrática sobre os limites, o célebre "conhece-te a ti mesmo!". Ele que era e foi conhecido pelo seu desprezo indefectível pela multidão dos homens e pelas suas variadas formas de cegueira e embuste, não pôde evitar uma declaração de comunidade, que é, ao mesmo tempo, uma prova de confiança na possibilidade de nos decifrarmos a nós próprios: "A todos os homens pode caber a sorte de se reconhecerem a si mesmos e de sentirem a imediatez (o mais íntimo, o frémito da vida)".


(*) Publicado no Jornal Público - Suplemento Mil Folhas - www.publico.pt Sábado, 17 de Janeiro de 2004.

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§ 8. De Saída: Número 7 (como sempre às Quintas!)...

quinta-feira, junho 10, 2004

Ano Um / Número 5

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Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Poema de Kant
§ 4. Playmate absoluta do momento V – Leni Riefenstahl
§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 6. Ser Infeliz, por Franz Kafka
§ 7. Verdad y Vida (1), por Miguel de Unamuno
§ 8. De Saída: Número 6 em preparação...

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§ 1. Sumaríssimo

Antes de mais nada um agradecimento muito especial de (pelo menos) metade desta edição do Nº 5 d’ O Saca-Mulas a uma querida amiga e infiel leitora deste blogzine, cujo nome não vou divulgar como é óbvio, mas a quem formulo o desejo de que seja desta vez que nos lê de uma ponta à outra e, quem sabe?, nos envia um comentário para juntar aos inúmeros (como se pode facilmente confirmar) que temos recebido para a (aparentemente secreta) secção dos Coices... Mais uma vez, ainda queremos acreditar que das mais de 450 visitas alguma acabará mais tarde ou mais cedo por ler e comentar-nos...

Bem, a verdade é que recomeçamos com o habitual desvario filosófico de Dito e Feito, por P.D., seguindo logo, para não pensar muito nisso, para um (risos) Poema de Kant.

A escolha da playmate absoluta recai desta vez sobre Leni Riefenstahl que dispensa mais apresentações. E seguimos com A Explicação das Pássaras, por A.H.

Terminamos com um menos conhecido conto de Kafka e um ensaio de Miguel de Unamuno.

Fiquem bem!

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§ 2. Dito e Feito, por P.D.

O eu é outro!

Uma forma possível e, talvez, muito realista de traduzir a fórmula de Rimbaud «Je est un autre». (Mário de Sá Carneiro diria «Eu, o outro».)
A consciência absoluta de uma esquizofrenia natural e sensata. O eu é outro, e quem diz outro, diz outros, todos diferentes. A personalidade? A constante luta eterna entre todos os eus, a coerência do múltiplo na convergência de um carácter.
Daqui se segue a abertura ao possível, a mudança em si, a riqueza pessoal do espírito composto, não dividido, mas uno na sua própria multiplicidade.
Deixá-los a todos, sossegadamente, discutir e lutar. E o vencedor, já indiscutível, serei eu, dessa vez. A constância de natureza individual? A repetição do mesmo vencedor.

Esquizofrénico, eu? Sim, e o outro também. Tal como o mundo.
Psicótico é só o idiossincrático, sem outro, obsessivo do igual, compulsivo da identidade, o triste solitário de si.

P.D.

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§ 3. Poema de Kant


O chinês de Koenigsberg...

Poema de Kant

“É humilhante para a razão humana que, no seu uso puro, não chegue a conclusão alguma e necessite mesmo de uma disciplina para reprimir os excessos e impedir as ilusões que daí lhe resultam. Mas, por outro lado, há alguma coisa que a eleva e infunde confiança em si própria; é que ela pode e deve exercer esta disciplina, sem admitir acima de si uma outra censura. Acrescente-se ainda que as barreiras, que é obrigada a pôr ao seu uso especulativo, limitam ao mesmo tempo as pretensões sofísticas de todo o adversário e, por conseguinte, podem garantir contra quaisquer ataques tudo o que ainda restar à razão das suas exageradas pretensões anteriores. O proveito maior e talvez único de toda a filosofia da razão pura é, por isso, certamente apenas negativo; é que não serve de organon para alargar os conhecimentos, mas de disciplina para lhe determinar os limites e, em vez de descobrir a verdade, tem apenas o mérito silencioso de impedir os erros.”

Immanuel Kant, «O cânone da razão pura», Crítica da Razão Pura, A 795 / B 823

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§ 4. Playmate absoluta do momento V – Leni Riefenstahl


Leni Riefenstahl

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§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.

Queria acabar com ela, mas falta sempre a coragem, ser corajoso perante a morte ou perante a sua possibilidade. Nem no descuido é suficientemente descuidado este afã de existir. A mais lenta dissolução possível e depois mais nada, simplesmente mais nada. Levantar-me da cama para escrever outro poema; não consigo evitá-lo e ainda me queixo. Apetece-me lá escrever poesia, foda-se! Que merda de obsessão...

(sem)

Mudar de linha mais cedo
Fazer poema atrás de poema
Só para ver nascer o desenho lento
Dos teus dedos. Ponto.
O ponto em que os teus dedos
Urgem o meu toque por um momento
O desenho dos teus dentes
Sem ser nos meus lábios
Para variar, dois pontos:
Que merda de obsessão
A poesia.


Depois, sem interrupções intercalares, acender o cigarro que falta sempre depois do ócio, teclar por desespero, para não ter de sair, felizmente há cigarros até daqui a duas horas, a fumar a este andamento, alivia a respiração, como uma espécie de asma provocada ao contrário se é que isso é possível e mesmo que o não seja. A leve dor nos pulmões, a tosse seca de fumador, o medo de morrer se pronunciarmos a palavra certa.
Felizmente havia espaço, uma série de quartos vazios, apenas o pó. Tudo hermeticamente selado excepto a suite, a sala-quarto onde respiravam os livros e os cigarros e as garrafas mais ou menos vazias desleixada e deliberadamente espalhadas pelo chão. Havia espaço para morrer e regressar ao pó num desses quartos, cada um deles correspondendo a um diferente tipo de pesadelo ou fobia, as portas fechadas e abertas a um ritmo doentio. Circular pela casa, abrir todas as portas e fechar a da suite para arejar, andar sem destino, errando de quarto em quarto até tornar a fechar todas as portas. Regressar a casa.
O sonho de regressar.
Regressar a quê? Aos tempos longínquos do il y a?...
Haver...
Existir – que não compreendemos a não ser como uma ameaça?
Correr o sério risco de deixar de existir a qualquer momento e sem nenhuma razão especial. Claro que divagava, como sempre. Daí não lhe fazer a mínima confusão ressuscitar, subitamente, a vontade de estar a ser nem que seja para ver o minuto segundo da indecisão entre o sofá e a cama, a comodidade do risco calculado, saber que há droga e álcool nesta casa capazes de embriagar um batalhão de meninos mal comportados, os únicos com quem se dava, claro. A merda de tudo também ser tão estereotipado e previsível dava que pensar e sobretudo uma sede daquelas como se não bebesse há mais de duas horas. Queria lá saber se estava morta se estava viva, mas como os mortos não bebem talvez fosse agora um cão tranquilo em fim de tarde. Lembra-me de tomar o xanax agora, antes da primeira cerveja afinal tão ordinária como a do idiota que lhe elogiara o pernil, pediu a si própria em silêncio. Passava o dia a ver-se na terceira e na quarta e na quinta pessoas. Havia que acabar a tese, mas sobretudo acabar com o sentimento de dever por cumprir, mesmo sabendo que a tese não mudaria nada, nem sequer lhe devolveria a breve alegria pelo estudo que teve noutros tempos de boémia. Entre três bêbados geniais alguém tinha de escrever e acabou por ser ela a mostrar-se primeiro em papel de letra, ou letra de papel. Lembrou-se do entusiasmo que sentia nessa altura ao ler os últimos dois ou três poemas resultado de uma ou duas semanas de desaparecimento. Que puta, desaparecias e não davas sinal de vida, eles que se fodessem até outra sexta-feira qualquer, sempre um bom dia para começar a ir às aulas. O António lá acabou finalmente por morrer de cirrose mais que anunciada, coitado, exactamente como previras num poema.
Nada como certezas, lembras-te. Rebuscas na papelada e encontras a carta (de quando?)...
O sentido das coisas está fora do mundo, não é?
...
pausa.

A.H.

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§ 6. SER INFELIZ, por Franz Kafka


Franz Kafka

SER INFELIZ

Quando isso já se tinha tornado insuportável - uma vez ao entardecer, em Novembro -, e eu deslizava sobre a estreita alfombra do meu quarto como numa pista, estremecido pelo aspecto da rua iluminada dei a volta outra vez e, no fundo do quarto, no fundo do espelho, encontrei no entanto um novo objectivo e gritei, somente por ouvir o grito ao qual nada responde e ao qual muito menos nada subtrai a força de grito, que, portanto, sobe sem contrapeso e não pode parar ainda que emudeça; então desde a parede abriu-se a porta para fora assim de repente porque a pressa era, certamente, necessária, e até vi os cavalos dos carros em baixo, no pavimento, levantarem-se como potros que, tendo exposto os pescoços, se tivessem enfurecido na batalha.
Qual pequeno fantasma, correu uma menina desde o corredor completamente obscuro, no qual ainda não estava acesa a lâmpada, e ficou em bicos de pés sobre uma tábua do andar, a qual se balanceava levemente encandeada em seguida pela penumbra do quarto, quis ocultar rapidamente a cara entre as mãos, mas de repente acalmou-se ao olhar para a janela, ante cuja cruz o vapor da rua se imobilizou por fim sob a escuridão. Apoiando o cotovelo na parede do quarto, permaneceu erguida diante da porta aberta e deixou que a corrente de ar que vinha de fora se movesse ao longo das articulações dos pés, também do pescoço, também das fontes. Olhei um pouco nessa direcção, depois disse: "boa tarde", e peguei na minha jaqueta do guarda-fogo da estufa, porque não queria estar ali parado, assim, meio vestido. Durante um breve momento mantive a boca aberta para que a excitação me abandonasse pela boca. Tinha a saliva pesada; na cara tremiam-me as pestanas. Não me faltava senão justamente esta visita, esperada por certo. A menina estava ainda parada contra a parede no mesmo lugar; apertava a mão direita contra aquela, e, com as maçãs do rosto acesas, não lhe incomodava que a parede pintada de branco fosse asperamente granulada e lhe raspasse as pontas dos dedos. Disse-lhe:
- É a mim realmente quem quer ver? Não é um equívoco? Nada mais fácil que equivocar-se nesta enorme casa. Eu chamo-me assim e assado; vivo no terceiro andar. Sou então eu quem você deseja visitar?
- Calma, calma! – disse a menina por sobre o ombro -; já tudo está bem.
- Então entre mais no quarto. Eu queria fechar a porta.
- Acabo justamente de fechar a porta. Não se incomode. Acima de tudo, tranquilize-se!
- Nem falar de incómodos! Mas neste corredor vive um monte de gente. Naturalmente todos são conhecidos meus. A maioria vem agora das suas ocupações. Se ouvem falar num quarto acreditam simplesmente ter o direito de abrir e olhar o que é que está a acontecer. Já aconteceu uma vez. Esta gente já terminou o seu trabalho diário; quem suportariam na sua provisória liberdade nocturna? Além disso, você também já o sabe. Deixe-me fechar a porta.
- Mas que está a acontecer? Que é que tem? Por mim, pode entrar toda a casa. E recordo-lhe; já fechei a porta; acredite. Só você é que pode fechar as portas?
- Está bem, então. Mais não quero. De nenhuma maneira teria de ter fechado com a chave. E agora, já que está aqui, ponha-se confortável; você é minha hóspede. Tenha plena confiança em mim. A única coisa importante é que não tema pôr-se à sua vontade. Não a obrigarei a ficar nem a ir-se embora. Será preciso dizer-lhe? Conhece-me assim tão mal?
-Não. Na realidade não tinha que tê-lo dito. Mais ainda: não deveria tê-lo dito. Sou uma menina; porquê incomodar-se tanto por mim?
- Não é para tanto! Naturalmente, uma menina. Mas você também não é tão pequena. Já está bem crescidinha. Se fosse uma rapariga não teria podido fechar-se, assim sem mais, comigo num quarto.
- Por isso não temos de nos preocupar. Só queria dizer: não me serve de muito conhecê-lo tão bem; só lhe poupa a si o esforço de fingir um pouco à minha frente. Em todo o caso, não me venha com amabilidades. Deixemos isso, peço-lhe, deixemo-nos disso. E a isto é preciso juntar que não o conheço em qualquer lugar e sempre, e de nenhuma maneira nesta escuridão. Seria muito melhor que acendesse a luz. Não. Melhor não. Em todo o caso, continuarei a ter em conta que já me ameaçou.
- Como? Eu ameacei-a? Mas por favor! Estou tão contente de que por fim esteja aqui! Digo "por fim" porque já é tão tarde. Não posso entender por que veio tão tarde. Além disso, é possível que pela alegria tenha falado tão incongruentemente, e que você o tenha interpretado justamente dessa maneira. Concedo dez vezes que falei assim. Sim. Ameacei-a de tudo o que quiser. Uma coisa: pelo amor de Deus, não discutamos! Mas, como pude acreditar? Como pude ofender-me assim? Por que quer arruinar-me à força este pequeno momento de presença sua aqui? Um estranho seria mais complacente que a menina.
- Acredito. Isso não foi nenhuma genialidade. Por natureza estou tão perto de si quanto um estranho, posso garantir-lhe. Também você o sabe. Porquê então essa tristeza? Diga melhor que está a fazer teatro e vou-me embora imediatamente.
- Assim? Também se atreve a dizer-me isso? Você é um pouco audaz. Afinal de contas, está no meu quarto! Esfrega os dedos como uma louca na minha parede. O meu quarto, a minha parede! Além disso, o que diz é ridículo, não é apenas insolente. Diz que a sua natureza a força a falar-me desta forma. A sua natureza é a minha, e se eu por natureza me comporto amavelmente consigo, você também não tem o direito de fazer de outra maneira.
- Isto é amável?
- Falo de antes.
- Sabe como serei depois?
- Nada sei eu.
E dirigi-me para a mesa de luz, na qual acendi uma vela. Naquela altura não tinha no meu quarto luz eléctrica nem gás. Depois sentei-me um bocado à mesa, até que também disso me cansei. Vesti o sobretudo; peguei no chapéu que estava no sofá e de um sopro apaguei a vela. Ao sair tropecei na pata de um cadeirão. Na escada encontrei-me com um inquilino do mesmo andar.
- Já está a sair outra vez, bandido? - perguntou, descansando sobre as suas pernas bem abertas sobre dois degraus.
- Que hei-de fazer? - disse. Acabo de receber um fantasma no meu quarto.
- Di-lo com o mesmo descontentamento que se tivesse encontrado um cabelo na sopa.
- Está a brincar. Mas tenha em conta que um fantasma é um fantasma.
- Muito bem: mas como, se não acreditamos absolutamente em fantasmas?
- Ah! Pensa você que eu creio em fantasmas? Mas de que me serve este não acreditar?
- Muito simples. O que deve fazer é não ter mais medo se um fantasma vem realmente ao seu quarto.
- Sim. Mas é que esse é o medo secundário. O verdadeiro medo é o medo à causa da aparição. E este medo permanece, e tenho-o em grande forma dentro de mim.
De puro nervosismo, comecei a examinar todas as minhas algibeiras.
- Já que não tem medo da aparição como tal, deveria ter-lhe perguntado tranquilamente pela causa da sua vinda.
- Evidentemente, você ainda nunca tinha falado com fantasmas; nunca se pode obter deles uma informação clara. Isso é um daqui para lá. Estes fantasmas parecem duvidar mais que nós da sua existência, coisa que além do mais, dada a sua fragilidade, não é de estranhar.
- Mas eu ouvi dizer que é possível seduzi-los.
- Nesse ponto está bem informado. É possível. Mas quem vai fazê-lo?
- Por que não? Se é um fantasma feminino, por exemplo - disse, e subiu outro degrau.
- Ah, sim...! – disse -, mas ainda assim não vale a pena. Relembrei-me.
O meu vizinho estava já tão alto que para ver-me tinha de agachar-se por debaixo de uma arcada da escada.
- Mas no entanto – gritei -, se você aí em cima me tira o meu fantasma, cortamos relações para sempre.
- Mas se foi apenas uma piada! - disse, e retirou a cabeça.
- Então está bem - disse.
E agora sim, para dizer a verdade, poderia ter saído tranquilamente para passear; mas como me senti tão desolado preferi subir e deitei-me a dormir.

(Trad. de A.H.)

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§ 7. Verdad y Vida (1), por Miguel de Unamuno

Verdad y Vida

Uno de los que leyeron aquella mi correspondencia aquí publicada, a la que titulé Mi religión, me escribe rogándome aclare o amplíe aquella fórmula que allí empleé de que debe buscarse la verdad en la vida y la vida en la verdad. Voy a complacerle procediendo por partes.

Primero la verdad en la vida.

Ha sido mi convicción de siempre, más arraigada y más corroborada en mí cuanto más tiempo pasa, la de que la suprema virtud de un hombre debe ser la sinceridad. El vicio más feo es la mentira, y sus derivaciones y disfraces, la hipocresía y la exageración. Preferiría el cínico al hipócrita, si es que aquél no fuese algo de éste.

Abrigo la profunda creencia de que si todos dijésemos siempre y en cada caso la verdad, la desnuda verdad, al principio amenazaría hacerse inhabitable la Tierra, pero acabaríamos pronto por entendernos como hoy no nos entendemos. Si todos, pudiendo asomarnos al brocal de las conciencias ajenas, nos viéramos desnudas las almas, nuestras rencillas y reconcomios todos fundiríanse en una inmensa piedad mutua. Veríamos las negruras del que tenemos por santo, pero también las blancuras de aquel a quien estimamos un malvado.

Y no basta no mentir, como el octavo mandamiento de la ley de Dios nos ordena, sino que es preciso, además, decir la verdad, lo cual no es del todo lo mismo. Pues el progreso de la vida espiritual consiste en pasar de los preceptos negativos a los positivos. El que no mata, ni fornica, ni hurta, ni miente, posee una honradez puramente negativa y no por ello va camino de santo. No basta no matar, es preciso acrecentar y mejorar las vidas ajenas; no basta no fornicar, sino que hay que irradiar pureza de sentimiento; ni basta no hurtar, debiéndose acrecentar y mejorar el bienestar y la fortuna pública y las de los demás; ni tampoco basta no mentir, sino decir la verdad.

Hay ahora otra cosa que observar—y con esto a la vez contesto a maliciosas insinuaciones de algún otro espontáneo y para mí desconocido corresponsal de esos pagos—, y es que como hay muchas, muchísimas más verdades por decir que tiempo y ocasiones para decirlas, no podemos entregarnos a decir aquellas que tales o cuales sujetos quisieran dijésemos, sino aquellas otras que nosotros juzgamos de más momento o de mejor ocasión. Y es que siempre que alguien nos arguye diciéndonos por qué no proclamamos tales o cuales verdades, podemos contestarle que si así como él quiere hiciéramos, no podríamos proclamar tales otras que proclamamos. Y no pocas veces ocurre también que lo que ellos tienen por verdad y suponen que nosotros por tal la tenemos también, no es así.

Y he de decir aquí, por vía de paréntesis, a ese malicioso corresponsal, que si bien no estimo poeta al escritor a quien él quiere que fustigue nombrándole, tampoco tengo por tal al otro que él admira y supone, equivocándose, que yo debo admirar. Porque si el uno no hace sino revestir con una forma abigarrada y un traje lleno de perendengues y flecos y alamares un maniquí sin vida, el otro dice, sí, algunas veces cosas sustanciosas y de brío —entre muchas patochadas— pero cosas poco o nada poéticas, y, sobre todo, las dice de un modo deplorable, en parte por el empeño de sujetarlas a rima, que se le resiste. Y de esto le hablaré más por extenso en una correspondencia que titularé: Ni lo uno ni lo otro.

Y volviendo a mi tema presente, como creo haber dicho lo bastante sobre lo de buscar la verdad en la vida, paso a lo otro, de buscar la vida en la verdad.

Y es que hay verdades muertas y verdades vivas, o mejor dicho: puesto que la verdad no puede morir ni estar muerta, hay quienes reciben ciertas verdades como cosa muerta, puramente teórica y que en nada les vivifica el espíritu.


Miguel de Unamuno

Kierkegaard dividía las verdades en esenciales y accidentales, y los pragmatistas modernos, a cuya cabeza va Guillermo James, juzgan de una verdad o principio científico según sus consecuencias prácticas. Y así, a uno que dice creer haya habitantes en Saturno, le preguntan cuál de las cosas que ahora hace no haría o cuál de las que no hace haría en caso de no creer que haya habitantes en tal planeta, o en qué se modificaría su conducta si cambiase de opinión a tal respecto. Y si contesta que en nada, le replican que ni eso es creer cosa alguna ni nada que se le parezca.

Pero este criterio así tomado —y debo confesar que no lo toman así, tan toscamente, los sumos de la escuela— es de una estrechez inaceptable. El culto a la verdad por la verdad misma es uno de los ejercicios que más eleva el espíritu y lo fortifica.

En la mayoría de los eruditos, que suele ser gente mezquina y envidiosa, la rebusca de pequeñas verdades, el esfuerzo por rectificar una fecha o un nombre, no pasa de ser o un deporte o una monomanía o un puntillo de pequeña vanidad; pero en un hombre de alma elevada y serena, y en los eruditos de erudición que podría llamarse religiosa, tales rebuscas implican un culto a la verdad. Pues le que no se acostumbra a respetarla en lo pequeño, jamás llegará a respetarla en lo grande. Aparte de que no siempre sabemos qué es lo grande y qué lo pequeño, ni el alcance de las consecuencias que pueden derivarse de algo que estimemos, no ya pequeño, sino mínimo.

Todos hemos oído hablar de la religión de la ciencia, que no es —¡Dios nos libre!— un conjunto de principios y dogmas filosóficos derivados de las conclusiones científicas y que vayan a sustituir a la religión, fantasía que acarician esos pobres cientificistas de que otras veces os he hablado, sino que es el culto religioso a la verdad científica, la sumisión del espíritu ante la verdad objetivamente demostrada, la humildad de corazón para rendirnos a lo que la razón nos demuestre ser verdad, en cualquier orden que fuere y aunque no nos agrade.

Este sentimiento religioso de respeto a la verdad, ni es muy antiguo en el mundo ni lo poseen más los que hacen más alarde de religiosidad. Durante los primeros siglos del cristianismo y en la Edad Media, el fraude piadoso —así se le llama: pia fraus— fue corriente. Bastaba que una cosa se creyese edificante para que se pretendiera hacerla pasar por verdadera. Cabiendo, como cabe, en una cuartilla del tamaño de un papelillo de fumar cuanto los Evangelios dicen de José, el esposo de María, hay quien ha escrito una Vida de San José, patriarca, que ocupa 600 páginas de compacta lectura ¿Qué puede ser su contenido sino declamaciones o piadosos fraudes?

De cuando en cuando recibo escritos, ya de católicos, ya de protestantes —más de éstos, que tienen más espíritu de proselitismo, que de aquéllos— en que se trata de demostrarnos tal o cual cosa conforme a su credo, y en ellos suele resplandecer muy poco el amor a la verdad. Retuercen y violentan textos evangélicos, los interpretan sofísticamente y acumulan argucias nada más que para hacerles decir, no lo que dicen, sino lo que ellos quieren que digan. Y así resulta que esos exegetas tachados de racionalismo —no me refiero, claro está, a los sistemáticos detractores del cristianismo, como Nietzsche, o a los espíritus ligeros que escriben disertaciones tratando de probar que el Cristo no existió, que fue discípulo de Buda, u otra fantasmagoría por el estilo—, esos exegetas han demostrado en su religioso culto a la verdad una religiosidad mucho mayor que sus sistemáticos refutadores y detractores.

Y este amor y respeto a la verdad y este buscar en ella vida, puede ejercerse investigando las verdades que nos parezcan menos pragmáticas.

Ya Platón hacía decir a Sócrates en el Parménides, que quien de joven no se ejercitó en analizar esos principios metafísicos, que el vulgo estima ocupación ociosa y de ociosos, jamás llegará a conseguir verdad alguna que valga. Es decir, traduciendo al lenguaje de hoy ahí, en esa tierra, que los cazadores de pesos que desprecian las macanas jamás sabrán nada que haga la vida más noble, y aunque se redondeen de fortuna tendrán pobrísima el alma, siendo toda su vida unos beocios; y siglos más tarde que Platón, otro espíritu excelso, aunque de un temple distinto al de aquél, el canciller Bacon, escribió que "no se han de estimar inútiles aquellas ciencias que no tienen uso, siempre que agucen y disciplinen el ingenio".

Éste es un sermón que hay que estarlo predicando a diario —y por mí no quedará— en aquellos países, entre aquellas gentes donde florece la sobreestimación a la ingeniería con desdén de otras actividades.

En el vulgo es esto inevitable, pues no juzga sino por los efectos materiales, por lo que le entra por los ojos. Y así, es muy natural que ante el teléfono, el fonógrafo y otros aparatos que le dicen ser invención de Edison —aunque en rigor sólo en parte lo sean de este diestro empresario de invenciones técnicas— se imaginen que el tal Edison es el más sabio y más genial de los físicos hoy existentes e ignoren hasta los nombres de tantos otros que le superan en ciencia. Ellos, los del vulgo, no han visto ningún aparato inventado por Maxwell, verbigracia, y se quedan con su Edison, lo mismo que se quedan creyendo que el fantástico vulgarizador Flammarión es un estupendo astrónomo.

Mal éste que, con el del cientificismo, tiene que ser mayor que en otros en países como ése, formados en gran parte de emigrantes de todos los rincones del mundo que van en busca de fortuna, y cuando la hacen, procuran instruirse de prisa y corriendo, y en países además donde los fuertes y nobles estudios filosóficos no gozan de estimación pública y donde la ciencia pura se supedita a la ingeniería, que es la que ayuda a ganar pesos. Al menos, por lo pronto.

Y digo por lo pronto, porque donde la cultura es compleja, han comprendido todos el valor práctico de la pura especulación y saben cuánta parte cabe a un Kant o un Hégel en los triunfos militares e industriales de la Alemania moderna. Y saben que si cuando Staudt inició la geometría pura o de posición esta rama de la ciencia no pasaba de ser una gimnástica mental, hoy se funda en ella mucha parte del cálculo gráfico que puede ser útil hasta para el tendido de cables.

Pero aparte esta utilidad mediata o a largo plazo que pueden llegar a cobrar los principios científicos que nos aparezcan más abstractos, hay la utilidad inmediata de que su investigación y estudio educa y fortifica la mente mucho mejor que el estudio de las aplicaciones científicas.

Cuando nosotros empezamos a renegar de la ciencia pura, que nunca hemos cultivado de veras —y por eso renegamos de ella— y todo se nos vuelve hablar de estudios prácticos, sin entender bien lo que esto significa, están los pueblos en que más han progresado las aplicaciones científicas escarmentándose del politecnicismo y desconfiando de los practicones. Un mero ingeniero —es decir, un ingeniero sin verdadero espíritu científico, porque los hay que le tienen— puede ser tan útil para trazar una vía férrea como un buen abogado para defender un pleito; pero ni aquél hará avanzar a la ciencia un paso, ni a éste le confiaría yo la reforma de la constitución de un pueblo.

Buscar la vida en la verdad es, pues, buscar en el culto de ésta ennoblecer y elevar nuestra vida espiritual y no convertir a la verdad, que es, y debe ser siempre viva, en un dogma, que suele ser una cosa muerta.

Durante un largo siglo pelearon los hombres, apasionándose, por si el Espíritu Santo procede del Padre solo o procede del Padre y del Hijo a la vez, y fue esa lucha la que dio origen a que en el credo católico se añadiera lo de Filioque, donde dice qui ex Patre Filioque procedit; pero hoy ¿a qué católico le apasiona eso? Preguntadle al católico más piadoso y de mejor buena fe, y buscadlo entre los sacerdotes, por qué el Espíritu Santo ha de proceder del Padre y del Hijo y no sólo del primero, o qué diferencia implica en nuestra conducta moral y religiosa el que creamos una cosa o la otra, dejando a un lado lo de la sumisión a la Iglesia, que así ordena se crea, y veréis lo que os dice. Y es que eso, que fue en un tiempo expresión de un vivo sentimiento religioso a la que en cierto respecto se puede llamar verdad de fe —sin que con esto quiera yo afirmar su verdad objetiva— no es hoy más que un dogma muerto.

Y la condena del actual Papa contra las doctrinas del llamado modernismo, no es más sino porque los modernistas —Loisy, Le Roy, el padre Tyrrell, Murri, etc.— tratan de devolver vida de verdades a dogmas muertos, y el Papa, o mejor dicho sus consejeros —el pobrecito no es capaz de meterse en tales honduras—, prevén, con muy aguda sagacidad, que en cuanto se trate de vivificar los tales dogmas, acaban éstos por morirse del todo. Saben que hay cadáveres que al tratar de insuflarles nueva vida se desharían en polvo.

Y ésta es la principal razón por qué se debe buscar la vida de las verdades todas, y es para que aquellas que parecen serlo y no lo son se nos muestren como en realidad son, como no verdades o verdades aparentes tan sólo. Y lo más opuesto a buscar la vida en la verdad es proscribir el examen y declarar que hay principios intangibles. No hay nada que no deba examinarse. ¡Desgraciada la patria donde no se permite analizar el patriotismo!

Y he aquí cómo se enlazan la verdad en la vida y la vida en la verdad, y es que aquellos que no se atreven a buscar la vida de las que dicen profesar como verdades, jamás viven con verdad en la vida. El creyente que se resiste a examinar los fundamentos de su creencia es un hombre que vive en insinceridad y en mentira. El hombre que no quiere pensar en ciertos problemas eternos, es un embustero y nada más que un embustero. Y así suele ir tanto en los individuos como en los pueblos la superficialidad unida a la insinceridad. Pueblo irreligioso, es decir, pueblo en que los problemas religiosos no interesan a casi nadie —sea cual fuere la solución que se les dé—, es pueblo de embusteros y exhibicionistas, donde lo que importa no es ser, sino parecer ser.
He aquí cómo entiendo lo de la verdad en la vida y la vida en la verdad.

Salamanca, febrero de 1908.
Miguel de Unamuno, Mi religión y otros ensayos, 1910.

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§ 8. De Saída: Número 6 em preparação...