quinta-feira, agosto 26, 2004

Ano Um / Número 16

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Tábua de Matérias


§ 1. Sumaríssimo.
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Death, por W.B. Yeats.
§ 4. PAM XVI: Florbela Espanca.
§ 5. Laura, (cont.), por A.H.
§ 6. Um Mundo Onde Reina A Verdade, por Lars Gustafsson.
§ 7. A Mente Divina como «e-mail», por Umberto Eco.
§ 8. De Saída: Número 17 (como sempre às Quintas!)...


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§ 1. Sumaríssimo



Lá vêm eles,
com aquelas falinhas mansas de entertainer em pré-reforma do costume, pensarão pelo menos algumas/uns da/os nossas/os mais-que ilustríssimas/os visitantes (andamos até aqui pelos cerca de mil quatrocentos e noventa e tantas/os, gar nicht so schlecht!).


... and knowin' the world by numbers.

Nada disso, meus caros. Desta vez optámos mesmo por um infraSumaríssimo desinvestindo ligeiramente, dirão alguns e é em parte verdade, na paciência das nossas virtuais vítimas-voluntárias, por assim dizer. Bref, resolvemos fustigar-Vos mais brandamente ainda como desaconselham os maus costumes…

Reza, então, baixinho assim, salvo seja, este nosso Número 16:

- Umas vacanças sulistas seguramente imerecidas, na narrativa mórbida mas como sempre impagável, ganda maluco!, de P.D.;
- Uma morte sûrement pas comme les autres…, pela pena firme e hirta de um eterno desconhecido como Yeats;
- Uma PAM XVI muitíssimo pouco consensual aqui em plenos seios desta nossa depravada Redacção, Florbela Espanca;
- Uma Laura, um tanto à (la) Nora (James – perceberam o troc?), pelo depravado devaneio desse homem-das-sete-gaitas, benza-o ..., que é o nosso genial A.H.;
- Um trechozinho do Lars Gustafsson – outro noviço, uma verdadeira esperança nestas andanças da escrita…;
- Um Eco no seu melhorzinho – que nem sempre é grande, como se sabe, a coisa…, cala-te boca!

& a habitual e até agora o mais escrupulosamente cumprida possível e reiterada promessa de regresso às Quintas, à xinxada, às Mulas, bem no fundo disto!

Sejam bem aparecidos e (esperamos que sintam BEM) recebidos

& um GRANDE
Bem hajam sempre EM NOME d’O Saca!


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§ 2. Dito e Feito, por P.D.



Férias

Em férias de mim, atiro-me ao ar. De janelas fechadas e nuvens carregadas, recolho as asas sob o peso do gelo das terras sem sol.

Em férias de mim, atiro-me ao mar. Ao longe, terra nas minhas costas e nem adeus com areia nos olhos, no nariz e a boca bem fechada cheia de algas mortas.

É o mar dos cães, das ossadas e dos bichos sem guelras de peito aberto às entranhas já salgadas. E espero.

Uma corrente profunda para baixo, mais baixo, até a água tornar ar e ficar quieto, soltando, muito lentamente, a última bolha...



Sie brullt, wir spielen.

P.D.

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§ 3. Death, por W. B. Yeats



DEATH

Nor dread nor hope attend
A dying animal;
A man awaits his end
Dreading and hoping all;
Many times he died,
Many times rose again.
A great man in his pride
Confronting murderous men
Casts derision upon
Supersession of breath;
He knows death to the bone –
Man has created death.



W. B. Yeats

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§ 4. PAM XVI – Florbela Espanca.



Flor bela... espanta-me!

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§ 5. Laura, por A.H.


IV.


Laura c'é andatta via!... Pensou, sem grande convicção, mas até um certo pequenino pontinho divertida como nem sempre costumava suportar estar pelo início das manhãs.

Estava a brincar. Não se foi nada embora, era ela apenas a brincar como gostava de fazer com o que lhe desse na realíssima gana. Ouvia-o num tonitroante ressonar no quarto ali ao lado, ao preparar-se sorridente para o duche na casa de banho. Escovava os dentes imaculadamente um pouco amarelecidos pela nicotina e outros vícios de boca, devagar, comme il faut.
Mediu outra vez de treslance as olheiras que sobejaram da madrugada anterior, enxaguou depressa a boca, fechou cuidadosamente a torneira de água fria e meteu-se dentro do duche, pousando no canapé de verga o roupão turco azul que a transformava naquela espécie do espantalho que há pouco vira ao espelho, olheirento e triste por detrás de um vago sorriso, que começava a enevoar-se com o vapor da água quente, fechando atrás de si a porta de vidro anti-salpicos, dir-se-ia mesmo?, ou a função quase meramente decorativa? C'est trop beau 'ça! Queria lá saber, ensaboou-se devagar, pausadamente.
Não sabia porque lhe vinham a despropósito aqueles pensamentos incómodos, queria apenas correr, de preferência sem pensar em nada, claro. Mas aquela voz roufenha e arrastada acaba sempre por se fazer ouvir em mais um dos seus incontáveis: Deixa estarr… Não há problema, querrridaa. Estou habituada a estar sozinhaa…
«…estamos sempre num túmulo», my ass!, pensou e fechou com algum estrondo a porta de casa atrás de si, saindo em passo acelerado de corrida em direcção ao parque. Queria lá saber da ressurreição, exceptuando, claro, quando quase só faltava rezar para conseguir obter uma segunda erecção do parceiro do lado. Conversa de bêbados, de mal fodidos. Correu sem parar durante cerca de dez minutos, parecia-lhe um relâmpago, isso do tempo, as pessoas a passarem-lhe ao lado, indiferentes e ensonadas àquela da manhã escura em direcção aos seus empregozinhos, a vidinha de sempre. Acabou por ter de se sentar num banco do parque e fazer uma pausa para recuperar o fôlego, a terra de novo debaixo dos pés cansados. A gravidade toda a retornar-lhe à mente.
Recordou com visível volúpia a noite anterior.

Cadela linda, sussurrara-lhe ternamente G., antes de adormecer depois de outras maratonas... Gostava muito que lhe tocassem demoradamente com as pontas dos dedos, não das unhas, pelas costas até ao fim das cujas, curvilíneas nádegas de menina, depois pelo corpo todo, tanto fazia onde.
Gostei muito, meu querido, respondeu-lhe; em particular das suas mãos que ele próprio definira um dia como sendo ternas, pensou ainda antes de cerrar os olhos pelo escuro adentro.

(cont.)


A.H.

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§ 6. Um Mundo Onde Reina A Verdade, por Lars Gustafsson


Um Mundo Onde Reina A Verdade


No planeta número 3 do Sistema 13, em Aldebaran, existe uma civilização que se relaciona directamente com a realidade, sem símbolos intermediários.
A ideia de que, por exemplo, uma figura desenhada num papel representa alguma coisa mais do que ela própria é totalmente alheia aos miriápodes possuidores de uma força extraordinária que constituem o estádio civilizacional mais elevado do planeta.
A sua força invulgar pouco lhes adianta. Uma vez que o único símbolo de uma coisa que eles conhecem é a própria coisa, têm de transportar constantemente uma enorme quantidade de objectos. Neste planeta a expressão «uma retórica vigorosa» tem um significado real.
Por exemplo, quando se quer dizer «uma pedra aquecida pelo sol», só há uma maneira. É pôr uma pedra aquecida ao sol na mão, ou melhor, na pata daquele com quem se está a falar.
Se se quiser dizer «uma pedra gigantesca no alto de uma montanha», só há uma maneira de proferir essa frase. É carregar com uma pedra gigantesca para o cimo de uma montanha.
Produzir um poema, nestas circunstâncias, é uma prova de força que permanece, em toda a sua heróica evidência, por várias gerações.
A maior parte dos sonetos que esta civilização produziu parecem-se de certo modo com Stonehenge: formidáveis grupos de pedras alinhadas por heróicos antepassados, arquejando e gemendo, com as veias salientes, segundo um esquema ancestral.
Nesta civilização a mentira é, evidentemente, uma total impossibilidade. Se se quer dizer «amo-te» a alguém, só há uma maneira, que é fazê-lo. Se se quer dizer «não te amo», também só há uma maneira, que consiste em evitar fazê-lo. Se se for capaz.
Num mundo em que o símbolo é sempre coincidente com a própria coisa e esta não pode ser substituída por pequenos sons ridículos ou por fieiras de sinaizinhos bizarros desenhados num papel, sinais esses que nada têm a ver seja com o que for para além de uma frágil e transitória convenção, é claro que a verdade e o sentido, a mentira e o absurdo, serão coincidentes.
O único substituto da mentira que existe num mundo como este é, evidentemente, falar de forma tão incompreensível, tão absurda, que ninguém entenda.
A conversação normal, a conversa trivial, neste planeta, consiste em os seus habitantes tirarem de umas bolsas de couro que costumam trazer consigo uma quantidade de objectos muito pequenos, contas de vidro, pedrinhas de diversas cores, pauzinhos muito bem polidos – e trocarem-nos animadamente entre si.
O preço da verdade é elevado.
De todas as civilizações superiores da região dos velhos sóis, no centro da Via Láctea, não há nenhuma que viva tão isolada como esta.
A astronomia, naturalmente, é impossível. Não podemos falar de galáxias se for necessário transportá-las de um lado para o outro para nos referirmos a elas. Aliás, o próprio conceito de «planeta» é impensável.
Estes seres vivem numa planície avermelhada, delimitada por altas montanhas.
E nem para essa planície que, teoricamente, é o mesmo que «o mundo», eles têm um conceito.

(Caderno azul IV; 4)

in Lars Gustafsson, A Morte de um Apicultor


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§. 7 A Mente Divina como «e-mail», por Umberto Eco


Every mother loves some child of hers.


A Mente Divina como «e-mail»


Por ontologia da referência entendo em primeiro lugar a posição filosófica segundo a qual os indivíduos (Paolo, Napoleão, Praga ou o Pó) podem ser designados rigidamente, no sentido que, seja qual for a descrição que atribuirmos a um nome, ele se refere de qualquer modo a algo ou alguém que foi assim baptizado num momento dado do espaço-tempo, e que – por mais propriedades que lhe sejam ignoradas – permanecerá sempre aquele algo ou alguém (um principium individuationis assente numa materia signata quantitate). Mas a teoria da referência ontológica também foi alargada às quidditates (as essências, ou os objectos gerais) as quais, mesmo que não as conhecêssemos, seriam constâncias da natureza que têm uma sua objectividade fora quer dos nossos actos mentais, quer do modo como a cultura os reconhece e os organiza. A ampliação da hipótese não é injustificada: se se assumir que um nome de pessoa possa ligar-se directamente a uma haecceitas (mesmo preterida, e portanto imaterial), porque é que um nome genérico não poderia ligar-se directamente a uma quidditas? É mais imaterial a Cavalinidade ou a haecceitas de Assurbanípal, de que considero que já não temos nem um punhado de poeira? Em ambos os casos, como veremos, não se poderia evitar assumir que a ligação seja dada pelos que Putnam denomina por noetic rays (e que naturalmente são apenas uma ficção teórica).
Deste ponto de vista, para uma teoria ontológica da referência, o termo água referir-se-á a H2O em qualquer mundo possível assim como o nome Napoleão se referirá sempre e rigidamente àquele unicum que na história do universo se verificou, genética, fisiológica e biograficamente, uma só vez (e assim ficaria, mesmo se num mundo futuro governado por feministas radicais Napoleão fosse recordado apenas como o indivíduo dotado da única propriedade de ter sido o marido de Josefina).
Esta seria uma ontologia «forte» pela qual a referência à água pareceria prescindir de todos os conhecimentos ou intenções ou crenças do falante. Mas esta perspectiva por um lado não exclui a pergunta sobre o que é a referência, e por outro também não elimina a noção de «cognição»: simplesmente desloca-as a ambas da psicologia para a teologia. O que então quererá dizer que a palavra água se refere sempre e em todas as condições a H2O para lá de toda e qualquer intenção dos falantes? Deveríamos dizer o que é aquela espécie de arame ontológico que ancora aquela palavra àquela essência – e para aproveitar a metáfora deveríamos pensar na essência como numa coisa extremamente hirsuta da qual se ramificam muitos arames, que a ligam a água, a water, a acqua, a agua, a eau, a Wasser, a voda, a shui e inclusivamente ao termo (ainda inexistente) que será forjado em 4025 pelos visitantes saturnianos para indicar aquele líquido transparente, deles desconhecido, que irão encontrar no nosso planeta.
Uma ontologia forte, para excluir as intenções dos falantes, mas de qualquer maneira fundamentar a ligação referencial, deveria pressupor uma Mente Divina, ou Infinita se quisermos. Dando por assente que o mundo existe independentemente do conhecimento que temos dele, e que existe coma população de essências reciprocamente reguladas por leis, só uma Mente que o conheça exactamente como é (e como o fez), e que aceite com indulgência que mesmo em línguas diferentes possamos referir-nos à mesma essência, pode «fixar» a referência de modo estável.
Para retomar o famoso exemplo de Putnam, se existisse numa Terra Gémea algo que se pareça em tudo e por tudo com a água deste planeta, que tivesse o mesmo aspecto, sabor e efeitos bioquímicos, e todavia não fosse H2O mas XYZ, para dizer que quem quer que (em ambos os planetas) falasse de água se referiria a H2O mas não a XYZ, tem de se assumir que qualquer Mente Infinita a pense precisamente deste modo, porque só o seu pensamento garantiria a ligação entre os nomes e as essências. Mas é exactamente Putnam, ao opor um realismo interno à perspectiva externalista, a dizer que esta última, para ser sustentável, pressuporia. justamente um Olho de Deus.
Postular uma Mente Divina levanta contudo um interessante problema em termos de intencionalidade. Temos de admitir que a Mente Divina «sabe» que toda a emissão do termo água se refere à essência da água, e qual é a relação intencional que liga a Mente Divina ao conteúdo do seu «saber» escapa à nossa capacidade de compreensão (e de facto postulamos que assim acontece, e não dizemos como acontece). Mas o que garante que todo o nosso pronunciar do termo água virá adequar a intencionalidade da Mente Divina? Evidentemente nada, senão a nossa boa intenção de, quando falamos de água, termos intenções de fazer, por assim dizer, a vontade de Deus e entendermos (voluntaristicamente) adaptar-nos à intenção da Mente Divina.
Tenha-se em conta que digo «à intenção» e não «à intencionalidade» de uma Mente Divina. Perguntar o que é a intencionalidade de uma Mente Divina ultrapassa os limites destas modestas reflexões – e também de reflexões bem mais orgulhosas. O problema é que também é difícil decidir o que quer dizer adaptar-se à intenção da Mente Divina.
Admito que existe agora um fenómeno que poderá valer como modelo de Mente Divina, e de designação absolutamente rígida. É o fenómeno do endereço e-mail. Ao «nome» constituído deste endereço (digamos: adam@eden.being) corresponde certamente uma e uma só entidade (nada garante que seja um indivíduo físico, poderia ser uma empresa, mas sé essa e não outra). Nós podemos não saber de modo nenhum que propriedades tem o destinatário (Adão poderia não ter sido o primeiro homem, poderia não ter comido da árvore do bem e do mal, poderia não ter sido o marido de Eva, etc.), mas sabemos que esse nome (endereço) aponta (por uma corrente de fenómenos electrónicos que não é caso para analisar em pormenor, mas de cuja eficiência somos diariamente testemunhas) para uma entidade individual distinguível de todas as outras, independentemente das nossas crenças, opiniões, conhecimentos lexicais, e do conhecimento que temos sobre o modo como o «aponta». Poderemos com o decorrer do tempo associar muitas propriedades a esse nome, mas não é necessário que o façamos: sabemos que se o escrevermos no nosso programa de e-mail chegaremos a esse endereço e não a outro. E sabemos que tudo depende de uma cerimónia baptismal, e que a potência referencial do endereço que usamos se deve causalmente a esse baptismo.
Mas um fenómeno do género (tão absolutamente «puro» e indiscutível, independente das intenções e das competências de todo o correspondente) só se verifica com o e-mail. Que o sistema de e-mail seja um modelo da Mente Divina pode parecer tão confortante como blasfemo, mas é certo que é o único caso em que usamos uma designação absolutamente rígida de acordo com o modelo, se não de uma Mente, pelo menos de uma Rede Divina.


In, Umberto Eco, Kant e o Ornitorrinco


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§ 8. De Saída: Número 17 (como sempre às Quintas!)...


&


That explains all of it: nothing at all!

quinta-feira, agosto 19, 2004

Ano Um / Número 15

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Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo.
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Dois poemas, por Luís Quintais.
§ 4. PAM XV: Marianne Faithfull.
§ 5. Laura, (cont.), por A.H.
§ 6. Farrapos de um diálogo (entre Hilas e Filonous...), por George Berkeley.
§ 7. A Noção de Gasto, (IV), Georges Bataille.
§ 8. De Saída: Número 16 (como sempre às Quintas!)...

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§ 1. Sumaríssimo.

Eis o Número 15, a tempo e horas e - por enquanto - sem desaparecer…

Haveria aqui lugar para Uma palavra sobre O Saca-Mulas Oriental e o seu (periclitante) futuro… Nã... nã-nã… Pela parte que me toca, prefiro recordar as avisadas palavras de Nietzsche Acerca da morte voluntária...

De resto, nada de especial. P.D. regressa com Dito e Feito. Mostramos Dois poemas, só por não querermos preencher O Saca, de Luís Quintais.

Marianne Faithfull mereceu desta vez a nossa escolha para Miss-todos-os-Agostos, PAM XV.

A.H. parece ter mergulhado, com Laura (?), de vez nos meandros do regresso ao romance negro pós-industrial. Não há-de ser nada. Se ainda não foi...

Ofertamo-vos, em seguida, ainda alguns «farrapos» de solipsismo pelo denominado pai do cujo, Georges Berkeley (sim, Berkeley, disseram-me...), incluindo, em ‘adenda’, um pouco conhecido retrato do filósofo no cumprimento do seu dever familiar…, em vez do konto.

E terminamos finalmente, e em profunda aridez hindu, com a Quarta e última (descansem, os mais cansados dos nossos "visitantes"…) parte do ensaio sobre A Noção de Gasto, de Georges Bataille.

Até sempre!


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§ 2. Dito e Feito, por P.D.



Plano inclinado


Escuto desinteressado o canto dos pássaros!
Olho, os telhados daquelas casas!
(Sim, todos iguais.)

Cheiro a terra, com gosto.
Escavo mais fundo e depois deixo-me!

Saio a raiar a fuga, sem poder, porém,
nunca esquecer que é aí que sou.

É que o céu é frio e
a chama apetece.


maldito o vosso ventre.

P.D.

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§ 3. Dois poemas, por Luís Quintais


A Imprecisa Melancolia

Nada o distrairia
nessa procura, disse.
Este o recado
da contingência:

era verão e fazia
muito calor.
Saía cedo, cortando
a passos lentos

a sombra das 9.30.
Caminhar até à vertiginosa
queda dos poentes.
Assinalar uma cinza,

a imprecisa melancolia.



Fog tree.


Realidade

Olho para a realidade desprovida de silêncios.
As coisas são o que são. Porém, há que ter em conta
a gravidade que as prende à terra.

Os signos são os poucos recados que a vida pouca nos traz.
São o muito desta vida
onde árvores se perfilam nas avenidas, e nas avenidas

o frágil contraponto de domingo se passeia
atento à soalheira chegada de famílias-à-beira-Tejo
alheias à semana que aí vem, onde cada um por si,

e a desrazão por todos,
irá colher as incertezas do amanhã.
Dos sentidos todos o que resta são olhos fechados,

tacto de treva onde a realidade acaba
como um promontório sobre o outono: onde começo
a contar as folhas, a memória da sua queda, a avisada música.


Luís Quintais

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§ 4. PAM XV – Marianne Faithfull.




Marianne Faithfull.


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§ 5. Laura, por A.H.

III.

Laura non c'é…
(cont.)


L.

A.H.

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§ 6. Farrapos de um diálogo (entre Hilas e Filonous...), por George Berkeley


Berkeley em família.

Farrapos...

[...]

Filonous. Com licença, Hilas: que entendeis por céptico?
Hilas. O que toda gente: entendo alguém que duvida de tudo.
F. O que não duvida, por conseguinte, acerca de um ponto particular, – pelo que tange a esse ponto não pode ser dito um céptico.
H. Com isso vou eu.
F. Consiste o duvidar, porventura, em tomar a solução afirmativa, ou a solução negativa de uma questão?
H. Não; em nenhuma das coisas; para quem quer que perceba o falar inglês, duvidar significa uma suspensão entre as duas.
F. Logo, do individuo que nega um ponto qualquer não se pode dizer que duvida dele, – nem mais nem menos do que de quem o afirma com o mesmo grau de segurança.
H. Assim é, de facto.
F. Por conseguinte, – ao primeiro, lá porque nega, não o teremos por mais céptico do que ao segundo.
H. Reconheço que sim.
F. Como então, ó Hilas, vos ocorre pronunciar que sou eu um céptico, só porque nego o que é por vós afirmado, ou seja a existência da matéria? Já que, como quer que digais, sou tão peremptório na negação como vós o sois no afirmar.
H. Tende mão, amigo, tende mão! Excedi-me um pouco na definição que propus; mas cumpre não fazer finca-pé demasiado nos passos em falso que ao discorrer nós damos. Disse, na verdade, ser céptico o indivíduo que põe tudo em dúvida; cumpriria, porém, acrescentar o seguinte: ou o que nega a realidade e a verdade das coisas.
F. Que coisas? Os princípios e os teoremas das ciências? Mas esses, como sabeis, são noções intelectuais universais, e portanto independentes da matéria; e a negação desta, por conseguinte, não implica a negação daqueles primeiros.
H. Nisso concordo; mas não existem, Filonous, outras coisas? Vinde cá: que pensais da acção de não dar fé aos sentidos? Da de negar a existência das coisas sensíveis? Da de pretender que nada sabemos acerca delas? Pois isto não basta para chamar céptico a um homem?
F. Examinemos qual de nós, nesse caso, é o que nega a realidade das coisas sensíveis, ou professa maior ignorância a seu respeito; porque será esse, se vos bem entendo, o que deve ser considerado o maior céptico?
H. Aí está precisamente o que eu desejo.
F. Que entendeis vós por coisas sensíveis?
H. As que são percepcionadas pelos sentidos. Pois podíeis fantasiar que entendesse outra coisa?
F. Perdoai-me, Hilas, o empenho de bem apreender todas as vossas noções, já que pode abreviar muito a nossa busca. Sofrei que vos faça uma pergunta mais. Só são percepcionadas pelos sentidos as coisas percepcionadas imediatamente? Ou podemos com propriedade chamar sensíveis as que são percepcionadas mediatamente, ou não sem a intervenção de quaisquer outras?
H. Não alcanço bastante o que estais dizendo.
F. Quando leio um livro, o que imediatamente percepciono são as letras; mas mediatamente, ou por meio delas, são-me sugeridas, digamos, a noção de Deus, ou a de virtude, ou a de verdade, etc., etc. Ora, de que as letras são coisas verdadeiramente sensíveis, – coisas percepcionadas pelos nossos sentidos – não poderá haver dúvida: mas queria eu saber, Hilas, se considerais sensíveis as que as letras sugerem.
H. Claro que não. Seria absurdo considerar a Deus – ou à virtude – como coisas sensíveis: se bem que seja possível significá-los a ambos, (ou sugeri-los à mente) por sinais sensíveis, com os quais, aliás, têm conexão que não é mais que arbitrária.
F. Só, pois, considerais como coisas sensíveis, ao que está a parecer-me, as imediatamente percepcionáveis pelos sentidos.
H. Nem menos.
F. E não se seguirá desse facto que, se bem que veja uma parte do céu avermelhada, e a outra parte de cor azulada, e que a minha razão de aí conclua, de maneira evidente, que haverá uma causa da diversidade das cores, no entanto essa causa não é cousa sensível, ou algo percepcionado pelo sentido da vista?
H. Com efeito.
[...]


solo ipse

H. Para prevenir outras perguntas do mesmo género, dir-vos-ei agora de uma vez por todas que tenho na conta de coisas sensíveis somente as percepcionadas pelos sentidos, e que os sentidos na verdade não percepcionam nada que não seja percepcionado de maneira imediata: pois não têm os sentidos o poder de inferir. A dedução de causas, ou de ocasiões, a partir de efeitos ou de aparências, somente percepcionadas pelos sentidos, é algo que inteiramente à razão compete.
F. Por conseguinte, acordamos nisto: unicamente são coisas sensíveis as imediatamente percepcionadas pelos sentidos. Dir-me-eis agora se com o sentido da vista percepcionamos algo que não seja a luz, ou cores, ou figuras; ou algo, pelo ouvido, que não seja som; ou algo, pelo paladar, além de sabores; ou algo, pelo olfacto, que não seja cheiro; e pelo tacto, alguma coisa mais que qualidades tangíveis.
H. Nada mais.
F. Ao que parece, portanto, se acaso suprimirmos todas as qualidades sensíveis, – nada de sensível nos ficará.
H. Concedido.
F. As coisas sensíveis, por conseguinte, não são mais que umas tantas qualidades sensíveis, ou então combinações de qualidades sensíveis.
H. Isso mesmo.
F. O calor é portanto uma coisa sensível.
H. Decerto que é.
F. Dar-se-á que a realidade das coisas sensíveis consiste no serem percepcionadas? Ou será ela qualquer coisa distinta do facto de serem percepcionadas, algo que não tenha relação com a mente?
[...]

G. Berkeley

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§. 7 A Noção de Gasto, (IV), Georges Bataille



«Eu venho para dividir...»

A Noção De Gasto, (IV)


6. O cristianismo e a revolução
À margem da revolta, foi possível aos intoxicados miseráveis recusar a participação moral no sistema de opressão de homens por outros. Em certas circunstâncias históricas recusaram, em particular por meio de símbolos mais contundentes ainda que a realidade, rebaixar a “natureza humana” inteira até uma ignominia tão horrível que o prazer dos ricos em provocar a miséria dos demais se fazia, de um golpe, demasiado agudo para ser suportado sem vertigem. Instituiu-se assim, independentemente das formas rituais, um intercâmbio de desafios exasperados, sobretudo do lado dos pobres, um potlatch em que a escória real e a imundície moral descobertas rivalizaram de um modo espectacular com tudo o que o mundo contém de riqueza, de pureza ou de esplendor. Com este tipo de convulsões espasmódicas abriu-se uma saída excepcional pelo desespero religioso que havia na exploração sem reserva.

Com o cristianismo, a alternância de exaltação e de angústia, de suplícios e de orgias que constitui a via religiosa, apresenta-se um contexto mais trágico, confundindo-se com uma estrutura social enferma, dilacerando-se ela mesma com a crueldade mais sórdida. O canto de triunfo dos cristãos magnifica a Deus porque entrou no jogo cruento da guerra social, porque “despenhou os poderosos do alto da sua grandeza e exaltou os miseráveis”.

Os místicos associam a ignomínia social, a ruína cadavérica do crucificado com o esplendor divino. Assim é que o culto assume a função de total oposição de forças de sentido contrário, repartidas de tal modo entre ricos e pobres que uns levam os outros à perda. O culto une-se estreitamente ao desespero terrestre, não sendo o mesmo mais que um epifenómeno do ódio sem medida que divide os homens, mas um epifenómeno que tende a suplantar o conjunto de processos divergentes que resume. Segundo as palavras atribuídas a Cristo, que dizia que tinha vindo para dividir, não para reinar, a religião não procura, pois, em absoluto, fazer desaparecer o que outros consideram como a calamidade humana. Na sua forma imediata, na medida em que o seu movimento ficou livre, a religião se enlameia, pelo contrário, numa imundície indispensável aos seus tormentos extáticos.

O sentido do cristianismo é dado pelo desenvolvimento das consequências delirantes do gasto de classes, por uma orgia agonística mental praticada a expensas da luta real.

No entanto, qualquer que seja a importância que a luta tenha na actividade humana, a humilhação cristã não é mais que um episódio na luta histórica dos ignóbeis contra os nobres, dos impuros contra os puros. Como se a sociedade, consciente do seu desconcerto intolerável, tivesse estado ébria por um tempo, para gozá-lo sadicamente. Mas a ebriedade mais pesada não pôde apagar as consequências da miséria humana e, ainda que as classes exploradas se oponham às classes superiores com uma lucidez crescente, nenhum limite concebível pode opor-se ao ódio. Na agitação histórica, só a palavra Revolução domina a confusão reinante e comporta promessas que correspondem às exigências ilimitadas das massas. Uma simples lei de reciprocidade social exige que aos amos, aos exploradores, cuja função social consiste em criar formas desprezíveis, excludentes da natureza humana – tal como esta natureza existe no limite da terra, quer dizer, do barro – sejam entregues ao medo, ao grande entardecer em que as suas belas frases ficarão cobertas pelos gritos de morte dos amotinados. É a esperança sangrenta que se confunde cada dia com a existência popular e que resume o conteúdo insubornável da luta de classes.

A luta de classes só tem um fim possível: a perda daqueles que trabalharam para perder a “natureza humana”.

Qualquer que seja a forma de desenvolvimento escolhida, seja esta revolucionária ou servil, as convulsões gerais constituídas durante dezoito séculos pelo êxtase religioso cristão e, nos nossos dias, pelo movimento operário, devem ser consideradas igualmente como uma impulsão decisiva que constrange a sociedade a utilizar a exclusão de umas classes por outras para realizar um modo de gasto tão trágico e tão livre quanto possível, ao mesmo tempo que a introduzir formas sagradas tão humanas que as formas tradicionais cheguem a ser comparativamente desprezíveis. É o carácter cambiante destes movimentos que atesta o valor humano total da Revolução operária, susceptível de actuar por si mesma com uma força tão constritiva como a que dirige os organismos elementares para o sol.

... oya.

7. A insubordinação dos factos materiais
A vida humana, diferente da sua existência jurídica, e tal como tem lugar, de facto, sobre um globo isolado no espaço celeste, em qualquer momento e lugar, não pode ficar, em nenhum caso, limitada aos sistemas que se lhe atribuem nas concepções racionais. O imenso trabalho de abandono, de transbordamento e de tempestade que a constitui poderia ser expressado dizendo que a vida humana só começa com a quebra de tais sistemas. Ao menos, o que ela admite de ordem e de ponderação só tem sentido a partir do momento em que as forças ordenadas e ponderadas se libertam e se perdem em fins que não podem estar sujeitos a nada sobre o que seja possível fazer cálculos. Só por uma insubordinação semelhante, inclusivamente, ainda que seja miserável, pode a espécie humana deixar de estar isolada no esplendor incondicional das coisas materiais.

De facto, da forma mais universal, isoladamente ou em grupo os homens encontram-se constantemente comprometidos em processos de gasto. A variação das formas não implica alteração alguma das características fundamentais destes processos cujo princípio é a perda. Uma certa excitação, cuja intensidade se mantém no decurso das alternativas numa estiagem sensivelmente constante, anima as colectividades e as pessoas. Na sua forma acentuada, os estados de excitação, que são assimiláveis a estados tóxicos, podem ser definidos como impulsões ilógicas e irresistíveis para a recusa de bens materiais ou morais, que teria sido possível utilizar racionalmente (segundo o princípio da contabilidade). Às perdas assim realizadas encontra-se unida – tanto no caso da “filha perdida” como no do gasto militar – a criação de valores improdutivos, dos quais o mais absurdo e ao mesmo tempo o que provoca mais avidez é a gloria. Juntamente com a ruína, a glória, sob formas sinistras ou deslumbrantes, não deixou de dominar a existência social e torna impossível empreender algo sem ela, apesar de estar condicionada pela prática cega da perda pessoal ou social.

E é assim que a imensa quebra da actividade arrasta as intenções humanas – incluídas as que se associam com as actividades económicas – para o jogo qualificador da matéria universal: a matéria, com efeito, só pode ser definida pela diferença não lógica, que representa com relação à economia do universo o que o crime relativamente à lei. A glória, que resume ou simboliza (sem esgotá-lo) o objecto do gasto livre, como nunca pode excluir o crime, não se diferencia da qualificação, sobretudo se se considera a única qualificação que tem um valor comparável ao da matéria da qualificação insubordinada, o qual não é a condição de nenhuma outra.

Se se considera, por outro lado, o interesse, coincidente tanto com a glória (como com a ruína), que a colectividade humana põe necessariamente na mudança qualitativa realizada constantemente pelo movimento da história, se se considera, enfim, que este movimento não pode conter nem conduzir a um objectivo limitado, é possível, uma vez abandonada toda a reserva, atribuir à utilidade um valor relativo. Os homens asseguram a sua subsistência ou evitam o sofrimento não porque estas funções impliquem por si mesmas um resultado suficiente, mas para aceder à função insubordinada do gasto livre.

No sentido de comportar rivalidade e luta.


Z

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Trad. de A.H.

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§ 8. De Saída: Número 16 (como sempre às Quintas!)...

quinta-feira, agosto 12, 2004

Ano Um / Número 14

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Tábua de Matérias
§ 1. Sumaríssimo.
§ 2. Dito e Feito, por P.D. [ver Sumaríssimo!]
§ 3. Poema erótico do Siglo de Oro, por Anónimo?
§ 4. PAM XIV: Madonna, a visitante.
§ 5. Laura, (cont.), por A.H.
§ 6. O ouvido, por Sofia C.
§ 7. A Noção de Gasto, (III), Georges Bataille.
§ 8. De Saída: Número 15 (como sempre às Quintas!)... e uma surpresa

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§ 1. Sumaríssimo.
Cá estamos, então, caras/os Leitoras/es no nosso Número 14, passada que foi, sem grandes avarias ou acidentes de percurso, diga-se, a edição anterior – as vendas mantêm-se, o share vai subindo face à (ausência de possível) concorrência, etc… Estamos a facturar bem, pronto. Balsemão, tio, não insistas mais com a malta que é escusado, pá!
Desta vez, resolvemos optar, por um contexto e editin’ concept com um grafic-design algo pós-patafísico que em nada fica a dever às sobejamente conhecidas e amaldiçoadas brochuras com que nos atafulham as caixas de correio, ignorando em absoluto o vulgar e legítimo (e, aparentemente, ilegível...): NÃO QUEREMOS PUB, F***-SE!, os balcões de pastelarias e sítios tascómetros afins, com a sempre inovadora e, sobretudo, colorida e irresistível proposta de uma magnífica viagem de fds a Badajoz.
Resumindo, como estamos quase todos de férias…, cá fica então o prospecto número 14, exceptuando, naturalmente, a oferta do pata-negra de Vale da Mula e os cinco (5!) litros de Aceite de Oliva, ab-solutamente virgen… proveniente de Marrocos-Portugal.
Comecemos então pelo triste anúncio do desgosto número único da presente edição, ou seja, desta semana, que tendes, inúteis visitantes, entre mãos, salvo seja: desta feita não contamos com o habitual Dito e Feito, por razões que o próprio já explicou a outros propósitos e noutras vidas… Lamentamos (nada), mas a nossa vida segue em frente. Boas molhas, na Cornualha, na tola e no cocuruto, GFDaM! Julgamos que haverá, igualmente, um estranho mas alegado envolvimento com o não menos invulgar caso das K7’s piratas… mas isso agora… Não queriam mais nada?
Passamos, assim, logo de entrada, a um poema que não envergonha o seu autor (?), um suposto anónimo de um não menos suposto e erótico, pelos vistos, Siglo de Oro…, uma aposta clássica e segura, uma vez que não queremos, na chamada silly season, fustigá-los com grandes novidades literárias. Lá se resolveu a coisa. Considere-se resolvido.
Em seguida, a escolha da – agora, no novo formato, denominada – PAM XIV (desta vez solitária eleição e sem consulta das partes envolvidas nesta embrulhada) que recaiu unanimente e por Maioria absoluta em: Madonna, pelos altos serviços prestados não só à Santa Madre Igreja de Roma e entidades obsoletas e decadentistas afins, mas, sobretudo, Madonna sei dank!, pelo muitíssimo meritório contributo que tem vindo a desenvolver e a dar pela higiene sexual de várias gerações de adolescentes (as?) e não só.

Também esta, sem espinhas, portanto! E agora vem o pior...


Falta-preenchimento, no sentido da fenomenologia de Husserl

A.H. persiste em acreditar (deixá-lo!) piamente no que vai escrevendo - desta vez através de mais um perverso alter ego (?), Laura, outra rameira ingénua, mas com umas mamas excelentes, como adiante veremos, a pobrezinha -, alguma coisa de jeito, e, pela parte que lhe toca, continuar a acreditar que o estilo continua a ser fundamental no autor. A verdade – ainda que relativizada, por demasiado desinteressante quando vista apenas à luz da igualmente obsoleta razão iluminista, pelo menos – da literatura, por assim dizer.
Só um pedido: Por favor, não o acordem… Do not disturb! I’m tryin’ to write somethin’ here… Suckers!
Na secção habitualmente okupada pelo Conto, apresentamos, nada mais nada menos do que inesperada, precisa e originalmente… um conto: O ouvido, por Sofia C., a quem agradecemos desde já a colaboração.
& mesmo antes da saída, confessamos já que, afinal, A Noção…, do Bataille, com que terminamos este número, vai ter de mesmo de ser em quatro suaves prestações, em vez das anteriormente anunciadas 3, só para não monopolizarmos todo o presente número com a tradução (brilhante, diga-se) do senhor B. Sorry. Para a semana há mais.
Boa semana… de preguiça & literatura! Aproveitem bem a chuva deste magnífico Agosto. Uma coisa é certa: Não se repetirá…
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§ 2. Dito e Feito, por P.D.
ao que conseguimos apurar…e uma piada de gosto xenófobo duvidoso, mesmo - sobretudo - pela parte de um Lampião.
Seremos breves!...(sic)



As cassetes...

[cf. Sumaríssimo]
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§ 3. Poema erótico do Siglo de Oro, anónimo? (who cares?)
15.
Na margem de um regato estando um dia,
alheia de cuidado, uma formosa
de olhar seu próprio inferno desejosa,
por se ver só ali, sem companhia,

a saia ergueu, que vê-lo lhe impedia,
e, satisfeita ao ver tão rica coisa,
disse-lhe com voz mansa e amorosa
que de dentro da alma lhe saía:

«Por vós, sou eu por tantos requestada,
por vós, me of’recem jóias, boa anágoa,
meias, sapatos, manto para o frio.

Um beijo quero dar-vos.» E, abaixada
ao dá-lo, por estar à beira da água,
voltou-se de cabeça e deu no rio.
(anónimo)
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§ 4. PAM XIV – madonna, finalmente uma mulher com h…


Naughty Girl...

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§ 5. Laura, por A.H.
(cont.)
Uma pessoa ajuda-a anos a fio a escrever as suas doutorais e louvadas teses sobre esses misóginos do Heidegger e do Wittgenstein e é esta a paga que recebe! Mal-agradecida, pensou, enquanto ia terminando lentamente de calçar os ténis para um sprintezinho matinal, enquanto Giorggio, ou seria Paolo outra vez?, pouco importava para o caso uma vez que eram apenas amigos, acabava de ressonar em paz e sobretudo longe dela que não suportava ressonares.Laura telefonara-lhe há pouco ainda para o handy… parecia absolutamente normal, ou seja, bêbada, muito rouca, putéfia e cabra fria e, ao mesmo tempo, num grande sofrimento, como sempre.Que sim, claro que estava bem (comida, pensou) de mais, que não se esquecera nada dela e de que prometera ajudar, mas que, mesmo assim, regressava só hoje a Roma, com toda a certeza ainda a tempo de jantarem juntas nalgum dos lugares do costume. Sim, que descansasse. Sim. Chegaria por volta das sete e pouco da tarde, mesmo a tempo de saírem para um jantarzinho, e logo teriam tempo suficiente para pôr a escrita em dia. Até logo!Pôs-se de novo a pensar em Inge, não lhe saía da cabeça aquela sua obsessão, crença de que estamos sempre num túmulo encomendado pelos dias que nos couberam em sorte e do qual não há ressureição possível. Destroços, pó e ventania. Nada que se assemelhasse a um tempo, uma alma. Apenas destroços, mais nada.



Bronze Charm Set of 12...

(...)

A.H.
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§ 6. O ouvido, por Sofia C.
O ouvido.
De um lado da parede, o habitante vagueava perdido e com o olhar vazio. Não estava triste, mas sim cansado. Ao fim de tanto tempo, apercebera-se que a luta já não tinha razão de ser, e que era tempo de baixar os braços. Os factos eram mais fortes que tudo o resto. Sentia-se ridículo por ter pensado, por momentos, que poderia fazer valer as suas ideias e demonstrar que era possível fazê-las funcionar. No entanto, as respostas aos seus apelos não chegavam.
Do outro lado da parede, prevalecia a confusão, a falta de tempo e vinte relógios pendurados a lembrar que não se pode parar e que há muitas coisas para fazer. Corria-se de um lado para o outro para fazer tudo e para fazer nada, porque o nada também tomava muito tempo. Os segundos para as respostas já estavam tomados pelos rascunhos, pela cama, pelos tachos e pelas nódoas.
De regresso ao lado oposto, o silêncio era um convidado recebido de braços abertos, porque deste lado, só havia um relógio que sussurrava as horas baixinho, quase sem se fazer notar. O habitante tinha momentos de euforia, de frenesim e de falta de tempo, mas não para as coisas importantes. Um segundo da sua vida era dedicado aos outros, aos que faziam parte da sua caminhada percorrida a passos largos. Durante as suas passadas bem medidas, que tinham tomado tanto de si, tinha estendido cordas a quem as quis agarrar. Uma, duas, várias, as que foram precisas para não perder de vista quem interessava. Mesmo assim, sobraram as cordas de quem não as agarrou e faltaram aquelas que o habitante se tinha esquecido de lançar. Mas ainda ia a tempo, pois o caminho afigurava-se longo… Ainda podia recolher ou lançar umas quantas cordas, até acertar nos imprescindíveis, assim que chegasse à conclusão de quem são.
De vez em quando, o habitante batia na parede três vezes, na esperança de ser ouvido.
- Está aí alguém – perguntava –, alguém me ouve?
Algumas vezes respondiam apenas os vinte relógios, mas por uma vez encontrou do outro lado da trincheira alguém que lhe respondeu. Chegaram a falar mais duas vezes separados pela parede.
A terceira seria a última.
- Estás aí – perguntou o habitante.
- Sim, mas estou com pressa – ouviu-se do outro lado.
- Lembras-te do que te pedi ontem… Acedeste ao meu pedido?
- Não me lembro do que me disseste ontem. Os relógios não deixavam – respondeu rapidamente.
- Disseste-me que sim… E agora, ouves-me – perguntou o habitante.
- Não tenho tempo para te ouvir hoje. Tenho os sacos, o gato e a televisão. Mas podes esperar, não?
- E amanhã, podes ouvir-me?, voltou a perguntar o habitante.
- Amanhã também não, porque tenho os segundos tomados pelos papéis e pelas camisolas, mas acho que podes esperar… Tenta daqui a dois dias, se não tiver o nada a ocupar-me o tempo.
- Depois de amanhã, posso lançar-te uma corda? Só demora duas fracções de segundo a agarrar – insistiu o habitante.
Do outro lado, já só se ouviam os relógios. Durante dias a fio, continuou a aguardar…
Sofia C.



Freundschaft, Egon Schiele

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§. 7 A Noção de Gasto, (III), Georges Bataille


Bataille

A Noção De Gasto, (III)
4. O gasto funcional das classes ricas
A noção do potlatch propriamente dito deve permanecer reservada aos gastos de tipo agonístico que se fazem por desafio, que comportam contrapartidas e, mais precisamente ainda, aquelas formas de gasto que as sociedades arcaicas não distinguem do intercâmbio.É importante saber que o intercâmbio, na sua origem, foi imediatamente subordinado a um fim humano, apesar de ser evidente que o seu desenvolvimento ligado ao progresso dos modos de produção só começou no estádio em que esta subordinação deixou de ser imediata. O próprio princípio da função de produção exige que os produtos sejam subtraídos à perda, pelo menos provisoriamente.Na economia mercantil, os processos de intercâmbio têm um sentido aquisitivo. As fortunas não se põem já numa mesa de jogo e tornam-se relativamente estáveis. Somente na medida em que a estabilidade fica assegurada, e quando nem sequer umas perdas consideráveis podem colocá-la em perigo, começam a submeter-se ao regime de gasto improdutivo. Os componentes elementares do potlatch encontram-se, nestas novas condições, sob formas que já não são tão directamente agonísticas[1]. O gasto continua a ser destinado a adquirir ou manter o estatuto, mas em princípio não tem por objecto, já, fazê-lo perder para outro.Quaisquer que sejam estas atenuações, o estatuto social está ligado à posse de uma fortuna, mas ainda com a condição de que a fortuna seja parcialmente sacrificada aos gastos sociais improdutivos tais como as festas, os espectáculos e os jogos. Notemos que, nas sociedades selvagens, em que a exploração do homem pelo homem é ainda débil, os produtos da actividade humana não afluem somente para os ricos em razão dos serviços de protecção ou direcção sociais que, ao que parece, prestam mas, também, em razão dos gastos espectaculares da colectividade a que devem fazer face. Nas sociedades chamadas civilizadas, a obrigação funcional da riqueza só desapareceu numa época relativamente recente. A decadência do paganismo implicou a dos jogos e dos cultos a que os romanos ricos deviam obrigatoriamente fazer face. Por isso é que se pôde dizer que o cristianismo individualizou a propriedade, dando ao seu possuidor uma plena disposição dos seus produtos e abolindo a sua função social. Ao abolir esta função, pelo menos enquanto obrigatória, o cristianismo substituiu os gastos pagãos exigidos pelo costume pela esmola livre, quer sob a forma de doações extremamente importantes às igrejas e, mais tarde, aos mosteiros. As igrejas e os mosteiros assumirão precisamente na Idade Media a maior parte da função espectacular.Hoje as formas sociais grandes e livres do gasto improdutivo desapareceram. No entanto, não devemos concluir por isso que o próprio princípio do gasto improdutivo tenha deixado de ser o objectivo da actividade económica.


Henri Cartier-Bresson (On the banks of Marne), Grance, 1938

Semelhante evolução da riqueza, cujos sintomas têm o sentido da enfermidade e do abatimento, conduz a uma vergonha de si mesmo e, ao mesmo tempo, a uma mesquinha hipocrisia. Tudo o que era generoso, orgiástico e desmesurado desapareceu. Os actos de rivalidade, que continuam a condicionar a actividade individual, desenvolvem-se na obscuridade e assemelham-se a arrotos vergonhosos. Os representantes da burguesia mostram um comportamento pudibundo; a exibição de riquezas faz-se agora em privado, conforme convenções enojadiças e deprimentes. Por outro lado, os burgueses da classe media, os empregados e os pequenos comerciantes, que contam com uma fortuna medíocre ou ínfima, acabaram de aviltar o gasto ostentador, que sofreu uma espécie de repartição, e do qual já não resta senão uma multidão de esforços vãos ligados a rancores fastidiosos.No entanto, esses simulacros converteram-se, salvo poucas excepções, na principal razão de viver, de trabalhar e de sofrer para todos aqueles que não têm coragem para submeter a sua ferrugenta sociedade a uma destruição revolucionária. Em redor dos bancos modernos, como em redor dos kwakiutl, o mesmo desejo de deslumbrar anima aos indivíduos e envolve-os num sistema de pequenas vaidades que cegam uns contra os outros como se estivessem diante de uma luz muito forte. A alguns passos do banco, as jóias, os vestidos, os carros esperam nos escaparates o dia que servirão para aumentar o esplendor de um sinistro industrial e de sua velha esposa, mais sinistra ainda. Num grau inferior, pêndulos dourados, aparadores de sala-de-jantar, flores artificiais prestarão serviços igualmente inconfessáveis a fileiras cegas de lojistas. A emulação do ser humano ao ser humano liberta-se como entre os selvagens, com uma brutalidade equivalente. Só a generosidade e a nobreza desapareceram e com elas a contrapartida espectacular que os ricos devolviam aos miseráveis.Enquanto classe possuidora da riqueza, que recebeu com ela a obrigação do gasto funcional, a burguesia moderna caracteriza-se pela negação de princípio que opõe a esta obrigação. Distingue-se da aristocracia por só consentir gastar para si, no interior dela mesma, quer dizer, dissimulando os seus gastos, quando é possível, aos olhos das outras classes. Esta forma particular deve-se, na origem, ao desenvolvimento da sua riqueza à sombra de uma classe nobre mais poderosa que ela. A estas concepções humilhantes de gasto restringido corresponderam as concepções racionalistas que a burguesia desenvolveu a partir do século XVII e que apenas têm o sentido de uma representação do mundo estritamente económica, em sentido vulgar, no sentido burguês da palavra. A aversão ao gasto é a razão de ser e a justificação da burguesia e, ao mesmo tempo, da sua hipocrisia tremenda. Os burgueses utilizaram as prodigalidades da sociedade feudal como um abuso fundamental e, após se apropriarem do poder, julgaram-se, graças aos seus hábitos de dissimulação, em situação de praticar uma dominação aceitável pelas classes pobres. E é justo reconhecer que o povo é incapaz de odiá-los tanto quanto aos seus antigos amos, na medida em que, precisamente, é incapaz de amá-los, pois é impossível aos burgueses dissimular tanto a sordidez do seu rosto quanto a sua ignóbil rapacidade, tão horrivelmente mesquinha que a vida humana fica degradada só com a sua presença.Frente aos burgueses, a consciência popular reduz-se a manter profundamente o princípio do gasto, representando a existência burguesa como que a vergonha do homem e uma sinistra anulação.



A revolução...

5. A luta de classes
Ao opor-se tanto à esterilidade quanto ao gasto, coerentemente com a razão própria do cálculo, a sociedade burguesa não conseguiu mais que desenvolver a mesquinhez universal. A vida humana não torna a encontrar a agitação, segundo as exigências de necessidades irredutíveis, senão no esforço daqueles que desorbitam as consequências das concepções racionalistas correntes. Os modos de gasto tradicional atrofiaram, e o sumptuário tumulto vivente refugiou-se no desencadeamento surpreendente da luta de classes.Os componentes da luta de classes estão presentes na evolução do gasto desde o período arcaico. No potlatch, o rico distribui os produtos que os miseráveis lhe entregam. Procura elevar-se acima de um rival rico como ele, mas o último degrau da elevação a que aspira não tem outro objectivo senão afastá-lo ainda mais da natureza dos miseráveis. Deste modo, o gasto, ainda que tenha uma função social, começa por ser um acto agonístico de separação, de aparência anti-social. O rico consome o que o pobre perde criando para ele uma categoria de decadência e de abjecção que abre a via à escravatura. Portanto, é evidente que, da herança indefinidamente transmitida desde o sumptuário mundo antigo, o moderno recebeu o legado desta categoria, actualmente reservada aos proletários. Sem dúvida, a sociedade burguesa, que pretende governar-se segundo princípios racionais, que tende, além disso, pelo seu próprio movimento, a conseguir uma certa homogeneidade humana, não aceita sem protesto uma divisão que parece destrutiva do próprio homem, mas é incapaz de levar a resistência para além da negação teórica. Dá aos operários direitos iguais aos dos amos e anuncia esta igualdade inscrevendo ostensivamente a palavra sobre os muros. No entanto, os amos, que actuam como se fossem a expressão da própria sociedade, estão preocupados – mais gravemente que por qualquer outro problema – por deixar claro que não participam em nada da abjecção dos homens aos quais dão emprego. O fim da actividade operária é produzir para viver, mas o da actividade patronal é produzir para condenar os produtores operários a uma descomunal miséria. Pois não existe nenhuma disjunção possível entre a qualificação procurada nos modos de gasto próprios do patrão, que tende a elevar-se muito acima da baixeza humana e a própria baixeza, de que esta qualificação é função.


encyclopaedia acephalica

Opor a esta concepção do gasto social agonístico a representação dos numerosos esforços burgueses tendentes a melhorar a sorte dos operários não é mais que a expressão da infâmia das modernas classes superiores, que não têm a coragem de reconhecer as suas destruições. Os gastos realizados pelos capitalistas para socorrer os proletários e dar-lhes a oportunidade de se elevarem na escala humana não testemunham mais que a impotência – por extenuação – para levar até ao fim um processo sumptuário. Uma vez que tem lugar a perda do pobre, o prazer do rico encontra-se pouco a pouco esvaziado do seu conteúdo e neutralizado, colocando-o perante uma espécie de indiferença apática. Nestas condições, a fim de manter, apesar de elementos (sadismo, piedade) que tendem a perturbá-lo, um estado neutro que a própria apatia torna relativamente agradável, pode ser útil compensar uma parte do gasto que engendra a abjecção com um gasto novo tendente a atenuar os resultados da primeira. O sentido político dos patronos, junto a certos desenvolvimentos parciais de prosperidade, permitiu dar às vezes uma amplitude notável a este processo de compensação. Assim é como, nos países anglo-saxónicos, em particular nos Estados Unidos da América, o processo primário só se produz a expensas de uma parte relativamente débil da população e como, numa certa medida, a própria classe operária foi levada a participar nele (sobretudo quando isso era facilitado pela existência prévia de uma classe como a dos negros, tida por abjecta de comum acordo). Mas estas escapatórias, cuja importância está, por outro lado, estritamente limitada, não modificam em nada a divisão fundamental das classes de homens em nobres e ignóbeis. O jogo cruel da vida social não varia através dos diversos países civilizados em que o esplendor insultuoso dos ricos perde e degrada a natureza humana da classe inferior.É preciso acrescentar que a atenuação da brutalidade dos amos que, por outro lado, não se baseia tanto sobre a destruição como sobre as tendências psicológicas para a destruição – corresponde à atrofia geral dos antigos processos sumptuários que caracteriza a época moderna.A luta de classes transforma-se, pelo contrário, na forma mais grandiosa de gasto social, na medida que é retomada e desenvolvida, desta vez por conta dos operários, com uma amplitude que ameaça a própria existência dos amos.(…)
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Trad. de A.H.
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§ 8. De Saída: Número 15 (como sempre às Quintas!)...



Plataforma

a aguardada surpresa: em vez da esquecida recensão, era só para recomendar com entusiasmo a compra (empréstimo, roubo, violação?) e leitura de Plataforma, No meio do mundo, por Michel Houellenbecq – que também por cá já passou há uns números atrás -, em vez de um qualquer «Equador?» ou «Pólilon?» e aberrações semelhantes… Uma boa leitura de férias e está tudo dito!


+ PUB não paga...e se conseguirem, façam a vós mesmos o favor de assistir a Madonna, a alfacinha...


Madonna (brevemente em Lisboa)

quinta-feira, agosto 05, 2004

Ano Um / Número 13

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Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo.
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. A Ballade of Suicide, por G.K. Chesterton.
§ 4. Playmate absoluta do momento XIII – a ilustríssima e doce décima-terceira Dama, futuramente designada PAM X…: Laura Xi, uma simples desconhecida, em vez de Laura.
§ 5. Laura, por A.H.
§ 6. Auto-entrevista à Assembleia Editorial d’ O Saca-Mulas Oriental, concedida pelos próprios bosses, via Messenger 6.2, por ocasião da elaboração deste Número algo azíago e mágico, 13, na vez do habitual Contos, que os tempos estão para abusar e desabusar deste nosso chumbo da casa, à falta de melhor (ouro, prata, jóias, negrísimas pérolas, mulatíssimas arejadas e fresquinhas de cheiro pelas brisas do Índico…) ideia em tempo considerado útil de publicação, id est, cerca da ½ noite, mais badalada menos coisa.
§ 7. A Noção de Gasto, (II), Georges Bataille.
§ 8. De Saída: Número 14 (como sempre às Quintas!)...

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§ 1. Sumaríssimo

E eis-nos chegados que somos a uma primeira semana de Agosto - como esta, aparentemente tão deveras insignificantezinha como quase todas as restantes, diga-se -, em que temos pelo menos a lamentar (?) a somente hoje anunciada, apesar de ocorrida, ao que parece, no incício desta mesma semana, última passagem de Henri Cartier-Bresson, com os seus respeitabilíssimos e bem curtidos 95 anos de vida (e quase outros tantos de simplesmente fotógrafo, pantomineiro do Ir sempre vendo alguma coisa e o doce vício de captar, imagem de marca da insubstituível – repararam a “homenagem” no final de Dito & Feito, hum? - Magnum, entre outras, esse artesão do irrepetível hic et nunc, para os mais distraídos destas coisas da Imagem fixada),



Henri Cartier-Bresson (1908 – 2004)

iniciamos como sempre, de resto, com as palavras do nosso, salvo seja, caro Dr. P.D. e do seu (quase a meio caminho de entre-aqui-e-a-Cornualha, propriamente dita, depois de uma frugaz passagem prévia pela Baker Street) Dito & Feito, que continua a ser uma referência fundamental deste bloguIm – e páro de novo por aqui, que já me treslongo pelas inconfidências grotescas de quem, aparentemente, não tem mais o que dizer; seguimos com um inesperado (?) poema dess’outro não menos ilustre anglófono e literator de sua graça G.K. Chesterton, intitulado A Ballade of Suicide, um tema sempre tão conveniente, a propósito e aprazível de mais um agostozinho estival desta nossa amada vidinha habitualmente tristonha e sem consolo possível.

Passamos - sem a mínima Queluz-Belas de superstição, vergonha, ou até de outro resíduo de crendice popular (felizmente, de novo a passar de voga entre nós sob o disfarce de New Age mais ou menos rural) -, agora a apresentar um cliché da nossa Décima-terceira Dama, a muito aplaudida e sempre bem recebida playmate (não, ainda não é hoje que colocamos “mulherio” a sério, haja paciência, minhas senhoras e meus senhores…): a soberba Laura Xi, em vez da verdadeira e muitíssimo menos carnalmente apetecível Laura.

Logo em seguida, retomamos a escrita ultraretorcida, mais do que algumas das cabras que cá eu sei, de A.H., que desta vez, creio eu que… nem vos conto. O melhor é acabarem por ler mesmo a prosápia do animal, se for caso disso, ou, em simpática e económica alternativa, simplesmente passar o olhar adiante para a reprodução original da Auto-entrevista à incansável dupla de Ases da Assembleia Editorial d’ O Saca-Mulas Oriental, concedida […], etc. etc. – uma só surpresa!

Por último e, last but not least…, a Segunda Parte (de um total de apenas III, descansai) de A Noção de Gasto, pela pena inconfundível de Georges Bataille, no melhor do seu ensaismo da boa cepa gaulesa.

E resta-nos, finalmente, mais uma até-breve despedida que a prosa já vai mais que longa! Irra!

Na próxima semana talvez surjam mais novidades… (com)prometoras (possíveis colaborações de outras/os autoras/es) e/ou estrita e simplesmente cumpridoras do original espírito (as Voraussetzungen, como lhe chamámos, lembram-se?) desta coisa-exquis que acaba por vir a ser O Saca, como sempre acabou por tornar-se já conhecido, naturalmente, nos meios mais claroescurecidos cá do Lusitano Burgo, sobretudo Lisboa e arredores (tais como a cosmopolita Cidade de Santos, Brasil, Aldeia de Paio Pires, ao Casal do Marco/Seixal, Trancoso e Beiras em Geral, Parque Expo e até mesmo das ex-Províncias Ultramarinas: na tão martirizada cidade de Bissau, da não menos esquecida República da Guiné-Bissau, etc.).

Saravá! E façam a vocês mesmos o favor de não fazerem favores a ninguém. Ou então, Sim. Boa semana!


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§ 2. Dito e Feito, por P.D.


A lágrima e o arroto


entendeu que da morte
a vida se nutria.
no matadouro vai gemendo o boi,
no inverno, à porta, uiva o cão.

a doença de um grande,
a morte dos pequenos.
um grande mal-estar,
um pequeno dissabor.

da riqueza à rua
da pobreza ao esgoto.

a lágrima e o arroto.


[Elliot Erwitt, USA, Pennsylvania, 1950.]

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§ 3. A Ballade of Suicide, por G. K. Chesterton



A Ballade of Suicide

The gallows in my garden, people say,

Is new and neat and adequately tall;
I tie the noose on in a knowing way
As one that knots his necktie for a ball;
But just as all the neighbours--on the wall—
Are drawing a long breath to shout "Hurray!"
The strangest whim has seized me. . . . After all
I think I will not hang myself to-day.

To-morrow is the time I get my pay--

My uncle's sword is hanging in the hall--
I see a little cloud all pink and grey--
Perhaps the rector's mother will not call-- I fancy that I heard
from Mr. Gall
That mushrooms could be cooked another way--
I never read the works of Juvenal--
I think I will not hang myself to-day.

The world will have another washing-day;
The decadents decay; the pedants pall;
And H.G. Wells has found that children play,
And Bernard Shaw discovered that they squall,
Rationalists are growing rational--
And through thick woods one finds a stream astray
So secret that the very sky seems small--
I think I will not hang myself to-day.
ENVOI
Prince, I can hear the trumpet of Germinal,
The tumbrils toiling up the terrible way;
Even to-day your royal head may fall,
I think I will not hang myself to-day.

G.K. Chesterton

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§ 4. Playmate absoluta do momento XIII – em futuro muito próximo a ser redenominada PAM XIII, anotai, e segs. - Laura Xi, a desconhecida, em vez de Laura, a verdadeira.


Laura, uma qualquer porque não encontrámos A Laura, preparando-se para pinar, i.e., executar o profano e salutar exercício do Pino.



Laura, uma qualquer porque não encontrámos A Laura, em pleno pino.


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§ 5. Laura, por A.H.


Laura.

Ainda a terminar de vestir-se meio apressada, parece que estou a vê-la como dantes, meio entediada, por assim dizer, endireitando com desprezo o rumo à saia pelo joelho cinzenta ao melhor estilo intelectual-mf, ou pós-existencialista, o que para o caso vinha a resultar na mesma tão aparente contradição, uma vez que, afinal, na cama ela era quase sempre exageradamente soberba e tudo menos isso, livra!, e ainda bem, de se lhe tirar o chapéu, para quem como eu também noutros tempos por lá passou. Mas como nela até o ar angélico de galdéria vagamente seminarista, ou mesmo, em certas noites em que saíamos, de menina-Opus, irmãzinha entradota de abadia, ou recruta do Exército de Salvação, ao assentar-lhe assim que nem uma luva naquele bem esculpido traseirinho com que os abençoados pais lhe deram condições de sobrevivência muito acima da média das suas posses, provocava-me ainda agora e sempre uma imensa e felizmente incontrolável tesão.
Colocou a boina negra a condizer, depois de cuidados estarem a imprescindível pintura vermelho escura dos lábios e o ligeiríssimo petit toque de base. Afinal de contas, já não era propriamente uma menina, embora ainda conseguisse sem a menor dificuldade fornicar como tal, ou talvez mesmo melhor sob muitos dos aspectos que agora só atrapalhariam a narrativa.
O que sucede é que era uma daquelas mulheres tão notoriamente bf’s que quase chegavam a dar raiva, sobretudo a muito e a bom parolo do costume, uma vez que, para mim, prefiro continuar a guardar a recordação ardente de uma antiga paixão.
Sabia muitíssimo bem o que pretendia da sua vida, só isso. Talvez apenas isso fosse o muito menos que suficiente que muito poucos lhe perdoavam sempre com cinismo, embora evidentemente não precisasse da estúpida pretensa compaixão de ninguém, pensava agora, enquanto ia calçando vagarosamente as finíssimas meias de seda pretas, com aquela vulgar habilidade que ao que parece só as fêmeas possuem, ou pelo menos aparentam melhor tê-la, tal como visão quadricromática, ou a capacidade e valentia para fazer muito mais que apenas uma azelhice em simultâneo. Fumando já a cigarrilha pós-coital, desta vez apenas uma que-remédio era o que havia, Café Crème, à falta de melhor e mais avisado apetrechamento pré-fodal, continuava a pensar em Inge, na necessidade de lhe dar, pelo menos, pelo telefone uma qualquer satisfação, afinal, apesar de também ao mesmo tempo não lhe sairem ainda da cabeça as imagens, palavras, sons e vozes do breve pesadelo que não chegara a acabar de ter por completo. Tinha um sono leve, quase caridosamente fingido para evitar alguns constrangimentos na hora da despedida. O deles, o de estarem verdadeiramente fodidos até ao pré-AVC e adormecerem quase de imediato que nem melros. O dela, o de preferir sair sozinha do habitual hotel de cinco estrelas da capital (não tinha idade, dizia, nem sequer gosto e paciência para menos), onde praticava a profana arte de bem cavalgar toda a sela amiga, com conhecidos esporádicos e até os chamados – por ela, claro – actos de caridade que nem a um escorpião se deviam negar, quanto mais àquele seu cão desejo de simplesmente gostar de perder a cabeça e acabar por fazer mais um broche apressado a um colega de faculdade que andava sempre muito tenso por causa do mestrado, como dizia.
(…)


Chienne...

[… quanto ao seguimento... está atrasado, naturalmente, para esta edição ainda, em revisão de provas, comme d’habitude, porque hoje ainda por cima até me está a dar para a galicite aguda… e irá sendo oportunamente publicado ao longo dos próximos números.]

A.H.

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§ 6. Auto-entrevista à Assembleia Editorial d’ O Saca-Mulas Oriental, concedida […], etc.

Advertência: Esta é uma ideia e Reprodução original, por P.D. e A.H.©:


A peça compõe-se de três (III) Actos.

[… variadíssimos outros ruídos para além das “falas”, que se ouvem, quase chegam a ouvir, putas de merdas de vozes, em adsl-surdina rouca, como a um ouvido delicado de rapariga jovem...]

I. Primo. Contagem decadente, a roçar outra vez o “indecorosa”.

Dr. P.D. says:
olé!
Dr. P.D. says:
ióoo
Dr. P.D. says:
upa, upa
Dr. P.D. says:
catadupa
finalista AD NAUSEAM A.H. says:
zebriUUUUUuuuuuuUUUUuuuUUUuuuuuu!!!
Dr. P.D. says:
iuuuu
Dr. P.D. says:
Então?
finalista ad nauseam A.H. says:
isso pergunto je?
Dr. P.D. says:
aqui o je está um pouco tonto
finalista ad nauseam A.H. says:
o prelo 'tá rodando, cara...
finalista ad nauseam A.H. says:
um porco tonto?
Dr. P.D. says:
alienadamente porco
Dr. P.D. says:
não tenho playmate nem Conto?...
finalista ad nauseam A.H. says:
fixe...
finalista ad nauseam A.H. says:
playmate ando eu à procura (searching) da Laura (Bataille?)
finalista ad nauseam A.H. says:
ajudas?
Dr. P.D. says:
ok
finalista ad nauseam A.H. says:
quanto ao conto...
finalista ad nauseam A.H. says:
nem quinhentos míseros pausitos!...
Dr. P.D. says:
e ensaiozito?
finalista ad nauseam A.H. says:
‘tá na calha..., como aliás, tudo o mais...
finalista ad nauseam A.H. says:
tudo prontíssimo a sair
finalista ad nauseam A.H. says:
até a desbunda minha
finalista ad nauseam A.H. says:
quase infantil, quase em final de revisão...
finalista ad nauseam A.H. says:
um sumaríssimo genial
finalista ad nauseam A.H. says:
etc.
finalista ad nauseam A.H. says:
enfim... the Works.
Dr. P.D. says:
fx
finalista ad nauseam A.H. says:
trabalha-se, portanto...
Dr. P.D. says:
eu tenho andado alienado
Dr. P.D. says:
sem fazer nada de jeito
Dr. P.D. says:
e os cabrões da faculdade dos bichos levaram-me 40 euros para vacinar o xunga
finalista ad nauseam A.H. says:
eh eh
Dr. P.D. says:
rite-te
finalista ad nauseam A.H. says:
poupaste
finalista ad nauseam A.H. says:
pou
finalista ad nauseam A.H. says:
pi
Dr. P.D. says:
puff
finalista ad nauseam A.H. says:
píveas a esta hora, só se for O (próprio) Saca...
Dr. P.D. says:
outra: troquei 100 euros por libras, e os cabrões só me deram 65
finalista ad nauseam A.H. says:
publicamos uma auto-entrevista
finalista ad nauseam A.H. says:
extemporânea, narcisista q.b.
Dr. P.D. says:
boa
finalista ad nauseam A.H. says:
para o eventual esclarecimento das/os nossas/os solitárias/os visitas-leitoras/es...
finalista ad nauseam A.H. says:
aproveitando a embalagem do Ante-meia-noite
finalista ad nauseam A.H. says:
ainda nos calha alguma Cinderela
finalista ad nauseam A.H. says:
hallo????
Dr. P.D. says:
sim?
finalista ad nauseam A.H. says:
então?
Dr. P.D. says:
estava aqui a ver se via a Laura

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finalista ad nauseam A.H. says:
faz de conta que eras um dos editores d' O Saca...
finalista ad nauseam A.H. says:
além de acabares necessariamente por ter, mais tarde ou mais cedo, dar um valoroso tiro na própria pinha, o que é que terias, postumamente, a dizer?
Dr. P.D. says:
ui?
finalista ad nauseam A.H. says:
ai?
Dr. P.D. says:
dói?
finalista ad nauseam A.H. says:
«... atirem-me água benta...»
Dr. P.D. says:
espera aí...
finalista ad nauseam A.H. says:
vais buscar o penico à mesinha-de-cabeceira, ao psyché?
finalista ad nauseam A.H. says:
caganda maluko!!!

Dr. P.D. sends:


Laura??

Open (Alt+P)
finalista ad nauseam A.H. says:
ervanária?

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finalista ad nauseam A.H. says:
quem é a rapariga?
Dr. P.D. says:
vê lá se é uma Laura boa
finalista ad nauseam A.H. says:
servia, ou sérvia?
Dr. P.D. says:
podemos chamar-lhe laura
finalista ad nauseam A.H. says:
mas acho que não, Laurindinha...
finalista ad nauseam A.H. says:
a outra tipa era super-hiper deprê...
Dr. P.D. says:
mas esta está com a moca, vê-se logo
finalista ad nauseam A.H. says:
só estava bem a pinar...
finalista ad nauseam A.H. says:
a fazer o pino, se é que me entendes...
...
*
II. Secundo. After another crashout. A bonomia instala-se…

Dr. P.D. says:
já cá estás?
finalista ad nauseam A.H. says:
mete a merda do título
finalista ad nauseam A.H. says:
estou com prob’s
Dr. P.D. says:
título do k?
finalista ad nauseam A.H. says:
please!!!
finalista ad nauseam A.H. says:
do Post
finalista ad nauseam A.H. says:
n tenho a net em conditions
finalista ad nauseam A.H. says:
depois insiro o material
finalista ad nauseam A.H. says:
propriamente dito
Dr. P.D. says:
ok. já viste o mail do clix?
finalista ad nauseam A.H. says:
ainda n cheguei lá
finalista ad nauseam A.H. says:
'tá-se mal...
Dr. P.D. says:
o poste já lá está
finalista ad nauseam A.H. says:
ókis
finalista ad nauseam A.H. says:
over
finalista ad nauseam A.H. says:
queres contar mais alguma coisa?
Dr. P.D. says:
keres aparecer amanhã? fumamos uma lá para as 3.30
finalista ad nauseam A.H. says:
é bem possível
finalista ad nauseam A.H. says:
para discutir a asneirada presente
Dr. P.D. says:
ok. apita e bom trabalho
finalista ad nauseam A.H. says:
idem
finalista ad nauseam A.H. says:
abraço!
Dr. P.D. says:
n t esqueças do clix, tá lá a playmate e mais
finalista ad nauseam A.H. says:
já vi
Dr. P.D. says:
over
finalista ad nauseam A.H. says:
‘tá jólix, mas n sei...
finalista ad nauseam A.H. says:
out


*
III. Tertio: (o) FIM.

[Corta! (ouve-se em uníssono off)...]


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§. 7 A Noção de Gasto, (II), Georges Bataille

A Noção De Gasto, (II)


Gasto...


3. Produção, intercâmbio e gasto improdutivo
Uma vez demonstrada a existência do gasto como função social, é necessário ter em conta as relações desta função com as de produção e aquisição, que lhes são opostas. Estas relações apresentam-se imediatamente como as de um fim com a utilidade. E, se bem que seja verdade que a produção e a aquisição, mudando de forma ao desenvolverem-se, introduzem uma variável cujo conhecimento é fundamental para a compreensão dos processos históricos, ambas não são, no entanto, mais que meios subordinados ao gasto. Apesar de ser espantosa, a miséria humana não foi nunca uma realidade digna de atenção nas sociedades porque a preocupação pela conservação, que dá à produção a aparência de um fim, se impõe sobre o gasto improdutivo. Para manter esta preeminência, como o poder é exercido pelas classes que gastam, a miséria foi excluída de toda a actividade social. E os miseráveis não têm outro meio de entrar no círculo do poder senão a destruição revolucionária das classes que o ocupam, quer dizer, através de um gasto social sangrento e absolutamente ilimitado.

O carácter secundário da produção e da aquisição relativamente ao gasto aparece da forma mais clara nas instituições económicas primitivas porque o intercâmbio é ainda tratado como uma perda sumptuária dos objectos cedidos. O intercâmbio apresenta-se assim, no fundo, como um processo de gasto sobre o qual se desenvolveu um processo de aquisição. A economia clássica acreditou que o intercâmbio primitivo se efectuava sob a forma de troca, pois não tinha, com efeito, nenhuma razão para supor que um meio de aquisição como o intercâmbio tivesse podido ter como origem, não a necessidade de adquirir, mas a necessidade contrária de destruição e de perda. A concepção tradicional das origens da economia só foi arruinada em data recente, mesmo muito recente, razão pela qual um grande número de economistas continua a considerar arbitrariamente a troca como a antepassada do comércio.

Oposta à noção artificial de troca, a forma arcaica do intercâmbio foi identificada por Mauss com o nome de potlatch[1] tomado de empréstimo aos índios do noroeste americano, que praticam o tipo mais conhecido. Instituições análogas ao potlatch índio ou vestígios delas foram encontradas com muita frequência.

O potlatch dos tlingit, dos haïda, dos tsimshian, dos kwakiutl da costa noroeste foi estudado com exactidão desde finais do século XIX (mas não foi comparado, então, com as formas arcaicas de intercâmbio de outros países). Os povos americanos menos avançados praticam o potlatch por ocasião de mudanças na situação das pessoas – iniciações, matrimónios, funerais e até, sob uma forma menos desenvolvida, nunca pode ser dissociado de uma festa, quer por que o potlatch ocasiona a festa, quer por ter lugar por sua ocasião. O potlatch exclui todo o regateio e, em geral, é constituído por uma dádiva considerável de riquezas, que se oferecem ostensivamente com o objectivo de humilhar, desafiar e obrigar um rival. O carácter de intercâmbio da dádiva resulta do facto de o donatário, para evitar a humilhação e aceitar o desafio, dever cumprir com a obrigação contraída por ele ao aceitá-lo, respondendo mais tarde com uma dádiva mais importante; quer dizer, que deve devolver com usura.


Prieur...

Mas a dádiva não é a única forma do potlatch. É igualmente possível desafiar rivais através de destruições espectaculares de riqueza. Desta última forma é que o potlatch incorpora o sacrifício religioso, sendo as destruições teoricamente oferecidas aos antepassados míticos dos donatários. Numa época relativamente recente, podia acontecer que um chefe tlingit se apresentasse diante do seu rival para degolar na sua presença alguns dos seus escravos. Esta destruição devia ser respondida, num prazo determinado, com o degolar de um número de escravos maior. Os tchoukchi do extremo noroeste siberiano, que conheciam instituições análogas ao potlatch, degolavam pescoços de cães de um valor considerável para fustigar e humilhar outros grupos. No noroeste americano, as destruições consistem inclusivamente em incêndios de aldeias e na destruição de pequenas frotas de canoas. Os lingotes de cobre brasonados, uma espécie de moeda à qual era atribuído um valor acordado tal que representavam uma imensa fortuna, eram destroçados ou lançados ao mar. O delírio próprio da festa associa-se tanto às hecatombes patrimoniais, quanto às dádivas acumuladas com a intenção de maravilhar e sobressair.


O Arco...

A usura, que intervém regularmente nestas operações sob a forma de mais valia obrigatória nos potlatch de desforra, permitiu que diga que o empréstimo com juros devia ocupar o lugar da troca na história das origens do intercâmbio. Há que reconhecer, com efeito, que a riqueza se multiplica nas civilizações com potlatch de uma forma que nos recorda o hipercrescimento do crédito na civilização bancária. Quer dizer, seria impossível realizar ao mesmo tempo todas as riquezas possuídas pelo conjunto dos donatários com base nas obrigações contraídas pelo conjunto dos donatários. Mas esta semelhança alude a uma característica secundária do potlatch.

O potlatch é a constituição de uma propriedade positiva da perda – da qual emanam a nobreza, a honra, o estatuto na hierarquia – que dá a esta instituição o seu valor significativo. A dádiva deve ser considerada como uma perda e também como uma destruição parcial, sendo o desejo de destruir transferido, em parte, para o donatário. Nas formas inconscientes, tais como as que a psicanálise descreve, a dádiva simboliza a excreção, que está ligada à morte segundo a conexão fundamental do erotismo anal e do sadismo. O simbolismo excrementício dos cobres brasonados, que constituem na costa noroeste objectos de dádiva por excelência, é baseado numa mitologia muito rica. Na Melanésia, o doador designa como seu lixo as magníficas ofertas que deposita aos pés do chefe rival.

As consequências na ordem da aquisição não são mais que o resultado não pretendido – pelo menos na medida em que os impulsos que regem a operação continuem a ser primitivos – de um processo dirigido num sentido contrário. “O ideal, indica Mauss, seria dar um potlatch e que ele não fosse devolvido”. Este ideal é realizado por certas destruições nas quais o costume consiste em não terem contrapartidas possíveis. Por outro lado, quando os frutos do potlatch se encontram, de alguma forma, unidos à realização de um novo potlatch, o sentido arcaico da riqueza manifesta-se sem nenhum dos atenuantes que resultam da avareza desenvolvida em estádios ulteriores. A riqueza surge, assim, como uma aquisição, uma vez que o rico adquire um poder, mas a riqueza dirige-se inteiramente para a perda, no sentido em que um tal poder seja entendido como o poder de perder. Somente pela perda estão unidos à riqueza a glória e a honra.

Enquanto jogo, o potlatch é o contrário de um princípio de conservação. Põe fim à estabilidade das fortunas, tal como existiam no interior da economia totémica, onde a posse era hereditária. Uma actividade de câmbio excessivo colocou no lugar da herança uma espécie de póquer ritual, em forma delirante, como fonte da posse. Mas os jogadores nunca podem retirar-se uma vez que tenham feito fortuna. Devem permanecer expostos à provocação. A fortuna não tem, pois, em nenhum caso, de situar o que a possui ao abrigo das necessidades. Pelo contrário, fica funcionalmente, e juntamente com a fortuna o possuidor, exposto à necessidade de perda desmesurada que existe em estado endémico num grupo social.

A produção e o consumo não-sumptuário que condicionam a riqueza surgem, assim, enquanto utilidade relativa.
...

[1] Sobre o potlatch veja-se, sobretudo, Marcel MAUSS, “Ensaio sobre a dádiva, forma arcaica do intercâmbio”, em “L’Année sociologique”, 1925.

(cont.)
*
Trad. de A.H.

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§ 8. De Saída: Número 14 (como sempre às Quintas!)...