quinta-feira, maio 27, 2004

Ano Um / Número 3

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Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Canção da Saudade, por Almada Negreiros
§ 4. Recensão
§ 5. Playmate absoluta do momento III – Lucrécia Bórgia
§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 7. Myslowitz-Braunschweig-Marselha (História de um fumador de haxixe), (I) Walter Benjamin
§ 8. De Catástrofe em Catástrofe, (3) final da entrevista exclusiva a Thomas Bernhard, sem kind permission da Quimera.
§ 9. De Saída: Número 4 em preparação...

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§ 1. Sumaríssimo

Cá temos o mui ansiado e desejado, pelo menos a avaliar pela quantidade de alienígenas que já nos visitam (sabe-se-lá-porquê), Número 3 d’ O Saca-mulas Oriental, dando naturalmente continuidade ao projecto em que nos enterrámos. Agradecemos as leituras e os coices recebidos, pois merecemos isso e muito mais.

Desta volta, abrimos com o já aguardado Dito e Feito, por P.D. e seguimos logo com um poema do velho Almada, Canção da Saudade.

Na recensão ficámo-nos por: um extracto do Fausto de Goethe e dois com a poesia de O Tempo Aprazado de Ingeborg Bachmann e vamos direitinhos à nossa sempre misteriosa e, sobretudo no caso em apreço, bela playmate que é nada mais nada menos do que uma das nossas musas, Lucrécia (a Bórgia, sim) e passamos para a continuação do delírio contístico-ornitológico de A. H. As melhoras é o que, sinceramente, lhe desejamos.

Ainda antes de apresentarmos a terceira e última parte da entrevista exclusiva ao nosso Bernhard, iniciamos a publicação (em apenas duas partes, sosseguem) de um conto do genial ensaísta-fumador, Walter Benjamin.

E não é pouco.

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§ 2. Dito e Feito, por P.D.

Sub specie aeternitatis

A clarividência constante do olhar nu sobre o mundo. Sem distracções, devaneios ou superstições. Contemplação em imanência com o céu a desabar na cabeça, do astro ao verme frio da terra sem mais nomes que a chamem, sabendo-a surda e muda, rindo como um cão. Por aí, à espera e a ver, esperando.
Diz-me a metonímia certa de ti e não te sabes. Só nomes em vez. Deixa-os cair, e mais aparece, novo e nu a toda à volta. A pedra é árvore e a terra é água e eu e a pedra. Tanto faz. Factos por factos.
Já, sempre, como agora... perdido na aparição de cada coisa, visito-me em casa do mundo.
Fora do tempo e fora do espaço, o mundo à luz da eternidade.

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§ 3. Canção da Saudade, por Almada Negreiros

Canção da Saudade

Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gémea que nasceu sem vida, e amo-a a fantasiá-la viva na minha idade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Diz onde vives, diz onde moras, diz se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longíssimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz de fim-do-dia por entre as gentes apressadas.
Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas,
Eu amo os cemitérios – as lajes são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugidia as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.

José de Almada Negreiros, Orfeu, vol. I – 1915

A torre não é de cristal

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§ 4. Recensão

um

MEFISTÓFELES:

Já que outra vez, Senhor, a nós desceste,
Para saber o que há por cá de novo,
E como sempre com bons olhos me viste,
Assim me vês agora entre o Teu povo.
Perdão, que altos discursos não sei ter,
E pela assembleia vou ser escarnecido;
Meu tom patético far-te-ia rir,
Se o riso não tivesses já esquecido.
De sóis e mundos nada sei nem direi;
Que os homens se atormentam, disso sei.
O pequeno deus do mundo não mudou,
Desde o dia primeiro mui singular ficou.
Viveria melhor, se não fosse enganado
Pelo lampejo da luz com que o haveis dotado;
Razão lhe chama, e serve-lhe afinal
Para ser mais bicho que qualquer animal.
Parece-me, perdoe-me Vossa Graça,
Uma dessas cigarras que esvoaça,
Pernilonga, armada em saltitão,
Entoando na erva sempre a mesma canção.
Se ao menos se ficasse pelo prado!
Mas quer meter o nariz em todo o lado!


J. W. Goethe, Fausto, vv. 72-292, trad. de João Barrrento

P.D.

dois

Desta vez, não escrevo eu nada, poema ela, Bachmann, Ingeborg, sem a tradução do incontornável João Barrento:

Psalm

2

Wie eitel alles ist.
Wälze eine Stadt heran,
erhebe dich aus dem Staub dieser Stadt,
übernimm ein Amt
und verstelle dich,
um der Blossstellung zu entgehen.

Löse die Versprechen ein
vor einem blindem Spiegel in der Luft,
vor einer verschlossenen Tür im Wind.

Unbegangen sind die Wege auf der Steilwand des Himmels.

O Tempo Aprazado, Ingeborg Bachmann, edição bilingue, Assírio & Alvim, Gato Maltês 28, Lisboa, 1992.

Comprem!

A.H.

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§ 5. Playmate absoluta do momento III – Lucrécia Bórgia

Lucrécia Bórgia

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§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.

“E, finalmente, amor, faltou-nos o talento
para sermos velhos sem nos tornarmos adultos
e quanto mais o tempo nos corteja, mais...
oh, meu amor, meu maravilhoso amor,
ainda te amo, sabes? Amo-te.”


De uma qualquer canção talvez não inteiramente desconhecida, regressavam-lhe naquele momento as primeiras palavras, os primeiros pensamentos semimudos, sons abafados como por nuvens afastadas, teimava em não abrir os olhos, uma porta a fechar devagarinho, cuidadoso depois de uma curta insónia, o tranquilizador adeus sem mais palavras, habitual. Depois outro tema musical, angélico ou infernal desta vez, mas que a devolvia sempre ao fundo sem sobressaltos. Voltou a adormecer.
Acordou cheia de sede, correu de olhos fechados as cortinas para afastar o dia ou a tarde e mergulhou avidamente, já na cozinha meio desarrumada, numa tónica carregada de cubos de gelo e do sumo de duas limas frescas na dose exacta. Após o primeiro golo, fez uma careta de satisfação e deu um estalido com a língua ou o palato. Estava vestida ainda, meio em desalinho, naturalmente, depois de outra noite no sofá onde pelos vistos acabara por adormecer, apenas os olhos lhe escapavam do outro lado do centro do espelho da sala, baixando a cabeça com os cotovelos apoiados no móvel de parede, tudo o resto parecia estar na silenciosa desordem habitual. Procurava os olhos, uma espécie de tentativas falhadas de circunferências a negro de lápis de pintar os olhos, do lado de fora daquele verde triste.
A mazela a reaparecer por debaixo da máscara, o esquecimento mais branco da noite anterior.
Uma folha de papel sobre a mesa mesmo ao lado, reparou, como se não a esperasse já, como sempre, como desde a primeira noite. Não sabe como, conseguiu fazer com que uma chávena de café acabada de fazer lhe parasse tremulamente nas mãos enquanto adiava a leitura daquelas letrinhas minúsculas com que ele habitualmente obviava mais uma despedida.
Quantas vezes uma tentativa de poema, uma observação na noite desperta acompanhando-lhe os sonos. Procurou na carteira o primeiro prozac do dia, ou manhã ainda?, e engoliu-o indiferente enquanto se dirigia para o quarto de banho. Despiu-se sem grande dificuldade e sentou-se de papel na mão, incrédula, ainda não completamente acordada da noite nem por isso muito prolongada, tanto quanto conseguia lembrar-se. De novo a sede. Pousou na pequena mesa ao lado da banheira a chávena de café e as palavras de B., abriu a torneira de água quente até escaldar a ponta dos dedos, três ou quatro gotas de moschus puro. Voltou da cozinha com o copo de tónica e gelo. Sentou-se já nua no cadeirão de verga e acendeu um cigarro antes de se atrever a ouvi-lo nas poucas palavras que lhe beijara desta vez.
Foi a última vez que o vi sorrir. Ontem. Pensou.
...

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§ 7. Myslowitz-Braunschweig-Marselha (História de um fumador de haxixe), (I) por Walter Benjamin

Esta história não é minha. Prefiro não me pronunciar quanto a ser ou não o pintor Eduard Scherlinger, que vi pela primeira e pela última vez na tarde em que a contava, um grande narrador; pois nesta época de plagiadores há sempre um ouvinte propenso a atribuir a alguém uma história de que se acaba de anunciar a fiel repetição. O facto é que a ouvi certa tarde num dos poucos lugares clássicos que Berlim ainda tem para oferecer a contadores e ouvidores de histórias: Lutter & Wegener.
Sabia bem estarmos sentados à mesa redonda da nossa pequena sociedade. A conversa, porém, há muito tinha morrido, apenas se mantendo, mortiça e abafada, em grupos de duas ou três pessoas sem que uns chamassem a atenção dos outros. No meio de uma questão que nunca cheguei a saber qual fosse, o meu amigo, o filósofo Ernst Bloch, deixou cair um comentário: dizia ele que toda a gente já esteve pelo menos uma vez na vida à beira de se tornar milionário. Houve risos. A frase foi tomada como um dos seus paradoxos. Todavia, seguiu-se algo de estranho. Quanto mais discutíamos esta afirmação, mais ela nos prendia, nos ocupava, até que, um após outro, acabámos a reflectir em que momento das nossas vidas havíamos estado mais perto de deitar a mão a esses milhões. Entre as histórias que então vieram a lume, uma das mais curiosas foi a do já desaparecido Scherlinger que tentarei contar com as suas próprias palavras.
Começou assim:
Como, por morte de meu pai, me chegou às mãos uma fortuna nada pequena, antecipei a minha viagem a França. Antes de tudo, sentia-me feliz por, ainda antes de fazer trinta anos, ir conhecer Marselha, a pátria de Monticelli, a quem a minha arte tanto devia, para não falar de tantas outras coisas de interesse na cidade. Depositei a herança num pequeno banco privado que durante anos tinha aconselhado satisfatoriamente o meu pai. O seu jovem director, pessoa com quem mantinha, senão uma grande amizade, pelo menos excelentes relações, comprometeu-se a dedicar particular atenção ao meu depósito durante a minha longa ausência, bem como a contactar-me de imediato, caso surgisse uma boa possibilidade de investimento.
- Basta deixar-nos uma procuração – concluiu.
Olhei-o sem compreender.
- Podemos também executar ordens por via telegráfica, mas temos de nos prevenir contra mal-entendidos – esclareceu. Imagina que te enviamos um telegrama e este cai nas mãos erradas. Obviamos a este caso combinando um nome secreto que tu utilizarás nas tuas ordens telegráficas em vez do verdadeiro.
Compreendi, mas fiquei por momentos perplexo. Não se muda assim de nome como quem muda de camisa. Nomes, são aos milhares. A ideia de que qualquer um serve entrava a escolha e torna ainda mais aguda a sensação – primeiro oculta, depois pouco perceptível – de ser inevitável mas difícil de seguir. Como um jogador de xadrez que se tivesse se tivesse retraído e preferisse deixar tudo como está mas, chegada a sua vez, opta por avançar uma peça, eu disse:
- Braunschweiger.
Não conhecia ninguém com esse nome, nem sequer a cidade cujos naturais designa.
Por volta do meio-dia de um asfixiante dia de Junho, depois de quase quatro semanas de repouso em Paris, desembarquei na Gare Saint-Louis, em Marselha. Os amigos tinham-me recomendado o Hotel Regina, perto do porto. Tinha muito tempo para ir lá registar-me e até ver se o candeeiro da mesa-de-cabeceira e as torneiras funcionavam. Pus-me a caminho. Tratando-se da minha primeira visita à cidade, era necessário seguir as minhas velhas normas de viagem: ao contrário da maioria dos viajantes que, mal chegam, logo se dirigem ao centro de uma cidade estrangeira, vou primeiro conhecer os arredores, os subúrbios. Em breve verifiquei a validade deste princípio. Nunca uma primeira hora me tinha sido tão compensadora como esta passada entre o molhe, as docas, os armazéns e os bairros pobres, arruinado refúgio da miséria. Os bairros de cintura da cidade são o seu lado incaracterístico, a arena onde ininterruptamente se travam batalhas decisivas entre a cidade e o campo. E em lado algum são mais encarniçadas essas lutas do que entre Marselha e a Provença rural. É a grande luta entre postes telegráficos e ágaves, entre o arame farpado e os espinhos das palmeiras, entre as espessas colunas de vapor pestilento e os frondosos e recatados bosques de plátanos, entre as longas escadas e as imponentes colinas. A comprida Rue de Lyon é como que um rastilho de pólvora que Marselha estendeu até ao campo para rebentar com ele em Saint-Lazare, Sain-Antoine, Arenc, Septèmes e deixá-lo juncado de invólucros de granada, com a espécie de marcas e nomes: Alimentation Moderne, Rue de Jamaïque, Comptoir de la Limite, Savon Abat-jour, Minoterie de la Campagne, Bar du Gaz, Bar Facultatif. A cobrir tudo, a camada de pó que aqui é feita de salitre, cal e mica. Prosseguindo por fora dos longos cais a que só os grandes transatlânticos atracam, sob os raios ardentes de um sol quase a pôr-se por entre as ruínas dos alicerces que, à esquerda, assinalam a cidade velha e as colinas e pedreiras nuas à direita, chega-se ao Pont Transbordeur que fecha o antigo porto, o quadrado que desde o tempo dos Fenícios mantém, como uma praça forte, o mar à distância.
Prossegui, solitário, o meu caminho até aos bairros mais populosos, pois senti-me arrastado pelo vaivém constante dos marinheiros em dia de folga, dos trabalhadores portuários de regresso ao lar, donas de casa a passear, rodeadas de crianças, percorrendo cafés e lojas para irem perder-se nas transversais, pois só alguns oficiais de marinha e flaneurs continuavam até à rua principal, a rua do comércio, da finança e dos turistas: La Cannabière. Em todas as lojas, de uma ponta à outra do porto, expunham-se montanhas de “souvenirs”. Forças sísmicas tinham conseguido congregar uma amálgama de vidraria, calcário e conchas e esmalte transformados em tinteiros, pulverizadores, âncoras, termómetros de mercúrio e sereiazinhas. Parecia-me que uma pressão de milhares de atmosferas comprimia e empilhava e dobrava estas representações do mundo, a mesma força com que as mãos rudes da gente do mar agarram as coxas e os seios das mulheres depois de uma longa viagem; e parecia-me a volúpia com que o interior de veludo vermelho ou azul se destaca no meio das pedrarias das caixinhas de conchas, para costura ou jóias, a mesma com que os moços festejam o dia de receber.

canabis

Imerso nestes pensamentos, fui deixando para trás La Cannabière; quase sem dar por isso, passei pelas janelas gradeadas do Cours Puget e dei comigo sob as árvores da Allée de Meilhan. E então o acaso – que sempre guia os meus primeiros passos numa cidade – levou-me à Passage de Lorette, o pequeno pátio de acesso à morgue da cidade onde alguns homens e mulheres assistem, sonolentos, ao que parece ser o mundo inteiro transformado numa tarde de Domingo. Apoderou-se de mim essa mesma tristeza que ainda hoje prezo na luz dos quadros de Monticelli. Creio que, em momentos destes, o forasteiro que por eles passa acede a algo normalmente reservado aos habitantes de uma cidade. Sendo a infância a fonte da melancolia, para se entender a tristeza que emana das cidades buliçosas e animadas é preciso ter crescido nelas.
Daria – continuou Scherlinger, sorrindo – uma bonita pincelada romântica descrever agora como consegui o haxixe numa duvidosa taberna do porto pela mão de um árabe, fogueiro a bordo de um navio ou talvez estivador no cais. Mas não posso permitir-me o artifício, pois talvez eu fosse mais esse árabe do que o forasteiro cujo caminho ia dar à taberna. Na realidade, levo sempre haxixe nas minhas viagens.
Não creio que, chegado ao meu quarto, por volta das sete, fosse o desejo subjacente de mitigar a minha tristeza o que me levou a ir ter com o haxixe. Foi muito mais a intenção de me abandonar à mão mágica com que a cidade mansamente me agarrara pela nuca. Entreguei-me ao veneno, repito, não à maneira de um principiante; mas, fosse a quase permanente saudade deprimente da minha terra, as más companhias ou os lugares pouco recomendáveis, nunca até então me sentira bem-vindo no ambiente dos iniciados, que conhecia perfeitamente dos seus testemunhos, desde Os Paraísos Artificiais de Baudelaire até O Lobo das Estepes de Hesse. Estendi-me na cama, li e fumei. Na minha frente, para além da janela, uma dessas ruas sombrias e estreitas do bairro do porto que parecem golpes de faca no corpo da cidade. Obtive então a certeza absoluta de que naquela cidade de centenas de milhar de habitantes onde ninguém me conhecia podia entregar-me ao meu devaneio sem ser incomodado. Mas o efeito tardava a surgir. Já tinham passado três quartos de hora e eu começara a desconfiar da qualidade da droga. Tê-la-ia eu guardado durante demasiado tempo? De repente, uma pancada forte na minha porta. Nada seria mais incompreensível. Mortalmente assustado, não fiz o menor esforço para ir abrir, apenas indaguei o que era, sem sequer mudar de posição.
- Um cavalheiro que deseja falar-lhe – disse o criado.
- Mande entrar – respondi.
Faltou-me presença de espírito, ou coragem, para perguntar o nome. Deixei-me ficar recostado contra a cabeceira da cama, com o coração a bater forte, olhos postos na porta entreaberta até que nela se recortou uma farda. O “cavalheiro” era um boletineiro. “Recomendamos compra 1000 Royal Dutch Sexta-feira primeira emissão. Telegrafe resposta.”
Vi as horas. Eram oito. Um telegrama urgente chegaria ao meu banco em Berlim no dia seguinte, o mais tardar. Despedi o boletineiro com uma gorjeta. Comecei a sentir-me alternadamente inquieto e descontente. Inquieto, por me vir cair em cima um negócio, uma responsabilidade, logo naquele momento; descontente, pelo tempo que demorava a sentir os efeitos. A melhor coisa a fazer pareceu-me ir imediatamente aos correios que sabia estarem abertos, para telegramas, até à meia-noite. Estava fora de dúvida aceitar a proposta que o meu homem de confiança me fazia com tanta certeza. No entanto, preocupou-me a possibilidade de, se esperasse pelo efeito do haxixe, esquecer o código convencionado. O melhor era, portanto, não perder tempo.
(...)

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§ 8. De Catástrofe em Catástrofe, (3) final da entrevista exclusiva a Thomas Bernhard, sem kind permission da Quimera.

De Catástrofe em Catástrofe (3)

- Nos seus livros, salvo raras excepções, o senhor não tem uma imagem muito favorável da mulher. É um fiel reflexo da sua experiência pessoal?

- Só posso dizer que, desde há um quarto de século, que me relaciono exclusivamente com mulheres. Não suporto os homens, nem as conversas de homens. Põem-me doido. Os homens falam sempre do mesmo: da sua profissão ou de mulheres. É impossível ouvir algo de original da boca dos homens. As reuniões de homens são-me insuportáveis. Prefiro a tagarelice das mulheres. Para mim, as únicas relações proveitosas foram com mulheres. Depois de meu avô, aprendi tudo com as mulheres. Não creio ter aprendido nada com os homens. Os homens sempre me puseram de mau humor. É curioso. Depois de meu avô, acabou-se. Nem mais um homem. Sempre procurei protecção e salvação entre as mulheres, que também se mostraram superiores a mim em muitas coisas. E, além disso, sabem deixar-me em paz. Eu posso trabalhar rodeado de mulheres. Em compensação, seria totalmente incapaz de produzir alguma coisa num meio de homens.

- Após a morte da companheira da sua vida, existe alguém de quem o senhor não pode prescindir?

- Não, poderia rodear-me de centenas de pessoas, dançar em mil bodas, mas não imagino nada pior. Há pouco sonhei que o ser que perdi, regressava. Disse-lhe: «o tempo que não estiveste aqui foi o mais horrível». Como se tivesse sido só um intervalo e os mortos agora continuassem a viver comigo. Foi algo tão forte, irrepetível. Já não é possível. Agora situo-me no ponto de vista do espectador, num ângulo muito fechado a partir do qual observo o mundo. Ponto.

- Acredita na possibilidade de outra forma de existência depois da morte?

- Não. Graças a Deus não. A vida é maravilhosa, mas o mais maravilhoso é pensar que tem um fim. Este é o melhor consolo que guardo na manga. Mas tenho muita vontade de viver. Sempre tive, salvo nos momentos em que acariciei a ideia do suicídio. Aconteceu-me aos dezanove anos, outra vez aos vinte e seis com muita força e outra ainda aos quarenta. Agora, no entanto, tenho vontade de viver. Quando se viu alguém que está a morrer, agarrar-se com todas as suas forças à vida, compreende-se isto.
O mais extraordinário que me aconteceu na vida foi ter na mão daquele ser a minha mão, sentir o seu pulso, notar que latejava mais devagar, notar outro latejo mais lento ainda, e acabou-se. É tão inacreditável. Quando ainda tens a sua mão entre as tuas, entra o enfermeiro com a etiqueta numerada para o cadáver. A enfermeira volta a deitá-la, dizendo: «Volte um pouco mais tarde». A seguir, voltamos a enfrentar a vida. Levantamo-nos sem fazer ruído, recolhemos as coisas; entretanto já o enfermeiro volta e põe a etiqueta numerada no dedo grande do pé do cadáver. Acabas de esvaziar a gavetinha da mesa de cabeceira e a enfermeira diz: «Também tem de levar o iogurte». Lá fora crocitam os corvos. Como numa obra de teatro.
Então surge a má consciência. Os mortos deixam-nos com um imenso sentimento de culpa.
Sinto-me incapaz de regressar aos sítios onde estive com ela, onde escrevi os meus livros. Escrevi todos os meus livros em lugares diferentes: em Viena, em Bruxelas, em qualquer lugar da Jugoslávia, na Polónia. Em sentido estrito, também nunca tive uma mesa de escrever. Se me acontecia escrever, era-me indiferente onde o fazia. Até escrevi submerso no máximo ruído. Nada me incomodava. Nem o ruído de uma grua, nem os gritos da multidão, nem a chiadeira de um eléctrico, nem uma lavandaria ou um matadouro debaixo do meu apartamento. Sempre gostei de trabalhar em países onde não entendo o idioma. É um estímulo incrível.
Sentia-me perfeitamente em minha casa no meio da estranheza mais absoluta. Para mim, o ideal era alojarmo-nos num hotel; e enquanto a minha amiga passeava durante horas, eu podia trabalhar. Muitas vezes, só nos víamos durante as refeições. Ver-me disposto a trabalhar enchia-a de felicidade. Ficávamos com frequência cinco meses, ou mais, num país. Eram os momentos culminantes. Muitas vezes, quando se escreve, tem-se uma sensação maravilhosamente bela. Se, além disso, a conseguimos partilhar com alguém que sabe apreciá-la e que sabe deixar-nos em paz, é perfeito. Nunca tive melhor crítico que ela. Não tinha nada que ver com as tontarias da crítica oficial que não aprofunda. Esta mulher conseguia fazer sempre uma crítica forte, positiva, que me era útil. Ela conhecia-me a fundo. Com todos os meus erros. Sinto-lhe a falta.
Continuo a gostar de estar na nossa casa de Viena. Ali encontro-me protegido, provavelmente porque vivemos ali muitos anos juntos. É o único ninho que resta de toda a nossa vida em comum. O cemitério também não está longe.
É uma grande vantagem ter vivido isto uma vez na vida. As coisas depois já não nos afectam. Deixamos de interessar-nos pelo êxito ou pelo fracasso, pelo teatro ou pelos encenadores, pelos redactores ou pelos críticos. Na realidade, já nada nos importa. A única coisa importante é ter ainda dinheiro no banco para poder continuar a viver. De resto, a minha ambição já não era o que tinha sido, mas com a sua morte também terminou. Nada nos comove. Continuamos a desfrutar com os filósofos antigos, com alguns aforismos. É parecido com refugiarmo-nos na música: durante algumas horas podemos chegar a ter um excelente humor. Ainda tenho alguns planos: antes tinha quatro ou cinco, agora só me restam dois ou três. Mas não são imprescindíveis. Nem eu, nem o mundo os estamos a reclamar. Se tiver vontade ainda farei algo, se não tiver, ou me faltarem as forças, acabou-se. Que mais importa o que eu escreva; afinal de contas são sempre catástrofes. Isto é o deprimente do destino do escritor: nunca conseguimos passar para a folha o que pensámos ou imaginámos; a maior parte perde-se durante a passagem. Aquilo que conseguimos plasmar não é mais do que um pálido e ridículo reflexo do que tínhamos imaginado. Isto é o que mais deprime um autor como eu. No fundo, não podemos comunicar. Ainda ninguém o conseguiu. Em alemão muito menos; é uma língua entorpecida e tosca, no fundo horrível. É uma língua espantosa que mata tudo o que é ligeiro e maravilhoso. A única coisa que se pode fazer, é sublimá-la com o ritmo, conferindo-lhe musicalidade. Aquilo que escrevo nunca corresponde ao que imaginei. Os livros deprimem menos, porque imaginamos que o leitor coloca mais fantasia e, na melhor das hipóteses, consegue que o texto ganhe vida. Pelo contrário, no palco, no teatro, a única coisa que se ergue é o pano. Só ficam os actores que, durante meses e meses, sofreram até à noite da estreia. Eles deveriam representar as personagens que imaginámos. Mas não conseguem. Estas personagens que na minha mente tudo podiam, de repente são compostas de carne, ossos e água. São toscas. Eu tinha concebido a obra como algo de grandioso, de poético; mas os actores não passam de intérpretes profissionais, uns tradutores. Uma tradução pouco tem que ver com o original. Pela mesma ordem de ideias, a representação de uma obra no palco, pouco tem que ver com o que passou pela cabeça do autor. Os cenários que, dizem, ser uma representação do mundo, para mim, não passaram disso, cenários; uns cenários que me destruíram tudo. O teatro maltrata tudo. É sempre uma catástrofe.

- No entanto, continua a escrever, tanto livros como obras dramáticas. De catástrofe em catástrofe?

- Sim.

(1987, tradução de A.H.)

a cave de bernhard

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§ 9. De Saída: Número 4 em preparação...

quinta-feira, maio 20, 2004

Ano Um / Número 2

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Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Ao lavar os dentes, por Ruy Belo
§ 4. Recensão
§ 5. Playmate absoluta do momento II – Lou Andreas-Salomé
§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 7. Conto - Lewis Carroll ou a Alice de Delleuze.
§ 8. De Catástrofe em Catástrofe, (2) entrevista exclusiva a Thomas Bernhard, sem kind permission da Quimera.
§ 9. De Saída: Número 3 em preparação...

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§ 1. Sumaríssimo

Neste segundo número d’ O Saca-Mulas Oriental continuamos principalmente a oferecer a nós próprios motivos de divertimento e aos leitores, que os há, o isco para alguma cumplicidade criminosa que aguardamos sem grande expectativa. Não pretendemos pôr ninguém a parir, nem ratos, nem montanhas, mas isso já os mais avisados entenderam a partir do número 1 e das suas condições prévias (sim, era isso que significava o Voraussetzungen).

Seguimos tranquilamente pelas propostas de Dito e Feito, de P.D. e dá-nos muito gozo reler aqui um dos melhores poemas de Ruy Belo. Aquilo a que resolvemos chamar recensão (apesar de muitas vezes se tratar antes de pluralidade) traz-nos Wittgenstein e algumas palavras sobre os Cadernos de 1914-16.
A nossa incontornável Playmate do momento, Lou Andreas-Salomé, secção que também continua a alegrar-nos as vistas. Regressamos em seguida à saga de outras pássaras que continuarão, até quando?, inexplicáveis. Na secção Conto, optámos excepcionalmente por apresentar uma visão deleuzeana da eterna Alice de Carroll de alguns de nós, antes de chegarmos à segunda de três partes da entrevista a Thomas Bernhard, De Catástrofe em Catástrofe, que sem o mínimo escrúpulo traduzimos da Quimera e, por fim, à Saída onde levantaremos gradualmente o véu do que será o Número 3.

Se de entre as aproximadamente 130 "visitas" (1ª semana) ao Saca, tivermos roubado um leitor, já valeu toda a pena!

&, como se não bastasse, conseguimos obter um Coice! Fantástico!

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§ 2. Dito e Feito, por P.D.

«La seule chose qui nous console de nos misères est le divertissement, et cependant c’est la plus grande de nos misères»

Pascal, Pensées, 217

Porquê?

Por que fazemos tantas perguntas a que não sabemos responder?
Por uma razão fundamental e mais três acessórias: em primeiro lugar porque somos miseravelmente ignorantes acerca do que é essencial na vida; em seguida, porque esta ignorância gera a curiosidade, o falatório e o divertimento.

A passagem do «quê» para o «porquê», a procura de um sentido que dê ou não regra a um modo de vida constitui o ponto de viragem de uma inconsciente curiosidade pelas coisas para uma negra desilusão consciente da marcante ausência de resposta. Esta é a nossa miséria.

A curiosidade é um resquício animal e, embora nem sempre se morra como o gato, vive-se sempre na ignorância felina que produz o medo, a constante sensação do perigo de viver num mundo estranho e adverso. Resquício animal que se transmuta em humano, quando já não se pergunta «o quê», mas o «porquê». Neste caso, paradoxalmente, a curiosidade mata, pois gera o desapontamento provocado pela derradeira resposta sem réplica da morte. A sua casa é a ciência!

O falatório decorre de um grande mal-entendido, em que falsas soluções e respostas incipientes ditam discursos, entidades, regras, modos de vida e mentiras descaradas. Aqui mora a religião.

O divertimento é um hábito de vida que consiste em brincar com perguntas e jogar com respostas. A principal finalidade do divertimento é esquecer o desconsolo da nossa miséria e o carácter lúdico da sua própria actividade, que, com o tempo, acaba por assumir características de autenticidade, como métodos, modelos e princípios apodícticos. Este é o jardim da filosofia.

O problema não é a ausência de respostas; é o excesso de perguntas. Mas será que, assim, teremos de acabar com as perguntas?
Não! Trata-se é de não esperar qualquer resposta!

P.D.

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§ 3. Ao lavar os dentes, por Ruy Belo


Ruy Belo Posted by Hello

Ao lavar os dentes

Ao meio da tarde não sei porquê quando mais cadeiras se arrastam nos ladrilhos
e há mais pessoas no pequeno café isolado na vizinhança do mar
e eu a bem dizer já não sei que fazer das minhas duas mãos
e dou graças a deus por serem não mais que duas porque senão
é que não saberia mesmo o que fazer das mãos que tivesse
mais ou menos a meio da tarde quando a dois passos já há um centro de sombra e
há a minha pena de que haja vento e haja muitos dias à sombra
talvez por me faltar já a segurança do sol pouco antes imóvel
pairando no alto sobre a cal calma das casas sobre as folhas mais largas dos plátanos
reuno os papéis dispersos na mesa pago os cafés diversos que fui tomando
e dirijo-me com um profundo encolher de ombros apressadamente para casa
A penumbra interior da casa o facto de a essa hora não haver ninguém em casa
a convicção de que o sol já deve ter dado a volta a uma sombra redonda
rodeará a mesa junto à janela onde costumo escrever
a incidência muito particular da luz a meio da tarde eis aí outros
tantos factores susceptíveis de explicar pelo menos em parte
ou pelo menos na medida em que uma coisa se pode explicar
que eu caminhe para casa e pense que me devo sentir então bem em casa
Gosto de entrar e de mal entrar logo começar a lavar os dentes
e de os lavar como se ao lavá-los eu lavasse mais do que os dentes
ou fizesse outra coisa que não lavá-los pensando talvez numa coisa
qualquer que não existirá não só para além do espelho que tenho na frente
como nem sequer na vida que outrora também tinha quase toda na frente
e agora se perde quase toda nas minhas costas como coisa que nunca vi
ou não é visível no espelho ou pelo menos não vejo no espelho
porque a verdade é que nem mesmo vejo o espelho e só daria bem pelo espelho
no momento em que o tirassem e fosse tarde demais para eu dar bem por ele
As coisas em que penso não existirão muitas vezes talvez a não ser
no meu pensamento ou então o meu pensamento modifica-as dá-lhes possivelmente
uma forma diferente da que têm ou terão na realidade como por exemplo
aquela mulher que há tanto tempo amei que nem mesmo sei bem se a amei
e que a noite passada enquanto eu dormia e vivia essa vida intermédia dos sonhos
emergiu de repente sem mais nem menos como uma mulher irresistível para mim
para mais manietado pelo sono da superfície aquática do sonho
e sobressaiu entre as demais coisas porventura mais ou menos sonhadas
e deixou uma esteira indelével e nítida na minha memória como um
apelo cavo e prolongado mesmo depois de eu ter acordado esteira só dispersa a meia manhã
quando já outras pessoas e outros apelos quase por completo ocupavam
o território movimentado e confuso como uma feira da minha vida
da única vida que vivo e não é mais que estas coisas que faço
ao longo do dia nos campos no café ou principalmente aqui em casa
onde agora lavo os dentes como se nunca antes tivesse lavado os dentes
Lavo os dentes e descubro imensas coisas enquanto os lavo e decerto
lavaria muitas mais vezes os dentes ao dia se antecipadamente soubesse que descobriria
tantas coisas como agora descubro e não são os dentes nem as gengivas
nem qualquer destas coisas das quais aliás falo só por falar
através de palavras que deito para trás das costas como a vida que vivi
e se perderão para mim exactamente como essa vida palavras que nem mesmo conseguirei
ver no espelho onde aliás nada vejo a não ser as gengivas e os dentes
e a boca aberta de um homem que lava contente os dentes
ou pelo menos os lava como uma forma de estar à tarde sozinho em casa
e se sente bem sozinho e gosta moderadamente de estar em casa
pelo menos porque assim não está no café onde a essa hora
há mais pessoas e há o ruído de muitas cadeiras e onde se então estivesse
o mais certo seria sentir o desejo de se levantar e ir para casa
talvez porque já não sabe o que há-de fazer das mãos
ou porque o sol deu a volta à casa e deixou na sombra e no silêncio da tarde
a mesa redonda junto à janela onde costuma escrever
como se porventura escrever fosse mais alguma coisa do que escrever
ou porque pode lavar os dentes com a convicção estritamente suficiente
para lavar os dentes num gesto curto do braço curvo
em casa à tarde sozinho com uma tarde não sabe bem porquê
um pouco mais lá fora nos campos que ali dentro de casa
com a maior parte da vida já para trás das costas
com um certo número de palavras como a vida deitadas para trás das costas
e deitar palavras para trás das costas fosse alguma coisa como semear
meter em andamento através do campo lavrado a mão na serapilheira
dependurada no ombro esquerdo tirar ritmadamente um punhado de semente
e espalhar a semente ao vento nos sulcos antes abertos pela charrua
como se deitar palavras para trás das costas que é afinal o gesto de quem escreve
fosse pelo menos lavar os dentes. Não queiram saber quem sou
ou se porventura alguém por curiosidade ou forma de passar o tempo
quiser alguma vez saber quem sou que veja como lavo os dentes
e que estou tanto nessa lavagem dos dentes como toda a pessoa que lava os dentes
sozinha em casa a uma certa hora da tarde na casa em sombra

Ruy Belo

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§ 4. Recensão

um

Obra há muito aguardada, saiu finalmente, pelas mãos das Edições 70, a tradução portuguesa dos Tagebücher-1914-1916, ou Notebooks, de Wittgenstein, com o título Cadernos 1914-1916.

A importância desta obra reside fundamentalmente no seu carácter quase proto-Tractatus, na qual já se encontram escritas muitas das proposições (sobre lógica, ética e religião) que depois seriam organizadas no Tratado Lógico-Filosófico. Algumas destas proposições dos Cadernos remetem para as correspondentes no Tractatus, o que proporciona uma interessante leitura cruzada entre as duas obras, como no exemplo da entrada de 23.5.15 («Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo», p. 74), que remete para a proposição 5.6 do Tractatus.
Além disso, a obra é enriquecida, tal como na edição da Basil Blackwell, por três apêndices: Notas sobre Lógica-1913; Notas ditadas a G.E. Moore na Noruega-1914; Excertos de Cartas de Wittgenstein a Russell - 1912-20.
Critica-se, contudo, ao contrário da edição inglesa citada, o facto de o editor português não ter optado pela inclusão da versão alemã, dada a importância do vocabulário de Wittgenstein e o interesse em compará-lo com o texto do Tractatus que, infelizmente, também não temos em versão bilingue.

Ludwig Wittgenstein, Cadernos 1914-1916, Edições 70, Lisboa, 2004.

PD

dois

Um Olhar Para Trás, Lou Andreas-Salomé, Relógio d'Àgua, 1987(?)

"A vida humana - ou, melhor, a vida em geral - é poesia. Sem nos darmos conta vivêmo-la dia a dia, pedaço a pedaço. Mas, na sua inviolável totalidade, é ela que nos vive, que nos inventa. Longe, muito longe da velha divisa: 'fazer da vida uma obra de arte' - somos nós a nossa obra de arte."

Trata-se de uma auto-biografia em que Lou Andreas-Salomé, a mesma solitária inevitável que afirma que "na infidelidade estamos sós", nos deixa algumas palavras sobre a sua vida e, por isso mesmo, também das vidas de Nietzsche, Rilke e Freud, só para nomearmos alguns dos nomes a quem esteve ligada com maior ou menor profundidade, por paixão, amizade, colaboração intelectual...
É este o tom maior do livro em que depressa percebemos mais do que uma lúcida descrição da sua existência - situada sempre para além do bem e do mal, como já deixámos antever -, e encontramos uma Lou Salomé em busca de um sentido para a sua existência e reflecte sobre uma vida que foi profundamente religiosa no sentido etimológico do termo.

Leiam.

A.H.

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§ 5. Playmate absoluta do momento II


Lou Andreas-Salomé Posted by Hello

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§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.

(...)
A morte morre de todos (dos dois) lados. O rosto que mal vira do energúmeno que lhe elogiara as pernas, uma aranha minúscula nas calças de ganga mortas de usadas e uma simples sacudidela a não resultar pela terceira vez, aqueles dentes escurecidos que não vira de tabaco e Gösser muito provavelmente e, sobretudo, da schnaps matinal. Que merda a morte. O pensamento fixado na morte, na permissão de tudo. Ainda não seria hoje, sentia-o. O pânico, apesar dos dois xanax com whisky e água-lisa de há pouco ao chegar a casa, teimava em não se lhe descolar da pele branca, gelada. Depois de uma breve ou longa troca de olhares com o telefone, resolveu ligar a B., talvez tivesse regressado de Roma. Nos inúmeros momentos como aquele, os silêncios partilhados de ambos, sobretudo ao telefone, eram a única coisa que a acalmava. Isso e depois o dividir de algumas garrafas do vinho tinto que ele nunca se esquecia de trazer de Lisboa.
Este vinho e o Pessoa do desassossego, costumava repetir a meio da segunda garrafa, são o meu Portugal. Por essas alturas perdia-se quase sempre em pausados monólogos sobre o Portinho e Sintra que lhe faltavam sempre e contava de novo como contraíra a saudade ao desembarcar pela primeira vez em Santa Apolónia vindo de Madrid, ao percorrer a pé o caminho de ir beber uma ginginha ao Rossio, por onde agora passava sempre antes de desfazer o magro saco de viagem. Ah, e depois, a ascensão até à Graça!, dizia nesses momentos, onde mesmo o pior dos homens maus pode escrever em paz até aos primeiros raios da aurora. Ele regressara.
QUEBRAR EM CASO DE EMERGÊNCIA, leu já no eléctrico onde normalmente passava tantas horas absorta em volta do Ring e que agora a conduzia à baixa para se encontrar com ele no Bräunerhof àquela hora invulgar. Ali estava ele, contra o que era seu hábito, àquela hora, a ler os jornais do costume com o mesmo ar severo e alheado de sempre. Esperava-a e a miséria do mundo causava-lhe apenas indiferença perante a espera da amiga. Como estaria ela desta vez? Sorriu ao vê-la chegar.
(...)

A.H.

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§ 7. Conto – Lewis Carroll ou a Alice de Delleuze

LEWIS CARROLL

Em Lewis Carroll tudo começa com um combate horrível. É o combate das profundezas: há coisas que explodem ou que nos fazem explodir, caixas que são demasiado pequenas para o seu conteúdo, alimentos que são tóxicos ou venenosos, passagens estreitas que se alargam, monstros que nos tragam. Um pequeno irmão serve-se do seu pequeno irmão como isco. Os corpos misturam-se, tudo se mistura numa espécie de canibalismo que reúne o alimento e o excremento. Até as palavras se comem. É o domínio da acção e da paixão dos corpos: coisas e palavras dispersam-se em todos os sentidos, ou, pelo contrário, unem-se em blocos indecomponíveis. Tudo é horrível em profundeza, tudo é sem sentido. Alice no País das Maravilhas deveria antes chamar-se As Aventuras Subterrâneas de Alice.

Alice Posted by Hello

Mas por que razão Carroll não conserva este título? É que Alice conquista progressivamente as superfícies. Ela sobe ou volta subir à superfície. Ela cria superfícies. Os movimentos de afundamento ou de enterramento dão lugar a ligeiros movimentos laterais de deslize; os animais das profundezas tornam-se figuras de cartas sem espessura. Tanto mais que Do outro lado do Espelho envolve a superfície de um vidro, institui a superfície de um jogo de xadrez. Puros acontecimentos escapam-se dos estados de coisas. Já não nos afundamos em profundidade, mas é à força de deslizar que passamos para o outro lado, fazendo como o canhoto e invertendo o lado direito. A bolsa de Fortunatus descrita por Carroll é o anel de Moebius no qual um mesmo lado direito percorre os dois lados. As matemáticas são boas porque instauram superfícies e pacificam um mundo cujas misturas em profundidade seriam terríveis: Carroll matemático, ou então Carroll fotógrafo. Mas o mundo das profundezas retumba ainda sob a superfície e ameaça estalá-la: mesmo expostos, manifestos, os monstros assediam-nos.
O terceiro grande romance de Carroll, Sílvia e Bruno, realiza ainda um progresso. Dir-se-ia que a antiga profundidade se nivelou a si mesma, tornou-se uma superfície ao lado da outra superfície. Duas superfícies coexistem então, onde se escrevem duas historias contíguas, uma maior e a outra menor; uma em maior, a outra em menor. Não uma historia dentro da outra, mas uma ao lado da outra. Sílvia e Bruno é, sem dúvida, o primeiro livro que narra duas histórias simultaneamente, não uma no interior da outra, mas duas histórias contíguas, com passagens constantes de uma para outra, através de um fragmento de frase comum às duas, ou então através de estrofes de uma canção admirável que distribuem os acontecimentos próprios a cada história na medida em que são determinados por elas: a canção do jardineiro louco. Carroll pergunta: é a canção que determina os acontecimentos, ou os acontecimentos que determinam a canção? Com Sílvia e Bruno, Carroll fez um livro-rolo, à maneira dos quadros-rolos japoneses. (No quadro-rolo, Eisenstein via o verdadeiro precursor da montagem cinematográfica, e descrevia-o assim: «A tira do rolo enrola-se formando um rectângulo! Já não é o suporte que se enrola sobre si mesmo; aquilo que está representado é que se enrola na sua superfície.») As duas histórias simultâneas de Sílvia e Bruno formam o último termo da trilogia de Carroll, obra-prima igual às outras.

Alice Posted by Hello

Não é que a superfície tenha menos sem-sentido que a profundeza. Mas não é o mesmo sem-sentido. O sem-sentido da superfície é como a «Radiância» de acontecimentos puros, entidades que não cessam de entrar e sair. Os acontecimentos puros e sem mistura brilham acima dos corpos misturados, acima das suas acções e das suas paixões desordenadas. Como um vapor da terra, libertam para a superfície um incorpóreo, um puro «exprimido» das profundezas: não a espada, mas o brilho da espada, o brilho sem espada como o sorriso sem gato. Pertence a Carroll o facto de nada ter feito passar pelo sentido, mas ter jogado tudo no sem-sentido, visto que a diversidade de sem-sentidos basta para dar conta de todo o universo, tanto dos seus terrores como das suas glórias: a profundeza, a superfície, o volume ou superfície enrolada.

in Gilles Deleuze, Crítica e Clínica, cap. III, tradução de P.D.

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§ 8. De Catástrofe em Catástrofe, (2) entrevista exclusiva a Thomas Bernhard, sem kind permission da Quimera.

De catástrofe em catástrofe (2)

- Um dos seus temas principais é a música. O que significa ela para si?

- Estudei música quando era jovem. Perseguiu-me desde a infância. Apesar de sempre ter gostado de música, ela foi para mim como uma caça e uma perseguição. Só estudava para poder estar com gente da minha idade. Provavelmente esta necessidade era consequência da minha relação com aquela pessoa muito mais velha que eu. Toquei, cantei, fiz teatro com os meus colegas do Mozarteum. Depois a música tornou-se impossível por motivos puramente físicos. Só se pode fazer música quando se está permanentemente com mais gente. Como era precisamente isto o que não queria, o problema resolveu-se por si só.

- Os seus ataques, principalmente contra o Estado e contra a Igreja, são habitualmente muito fortes. Em Extinção (Auslöschung) descreve o catolicismo como sendo «aquilo que destrói a alma da criança, o que a assusta, aquilo que nega o seu carácter». Para si, o seu país, a Áustria transformou-se n’ «um negócio sem escrúpulos onde só se negoceia com tudo e onde todos roubam todos por tudo». Escreve a partir de uma posição de ódio universal?

- Eu amo a Áustria. Isto não se pode negar. Mas a estrutura do Estado e da Igreja é tão horrível que só se pode odiá-la.
Sou da opinião que todos os países e todas as religiões que se conhecem de perto são igualmente horríveis. Com o tempo descobrimos que a estrutura é em todo o lado a mesma, tanto nas ditaduras como nas democracias; no fundo, são igualmente horríveis para o indivíduo. Pelo menos vistas de perto. Mas mais vale não me deixar levar e não proclamar este tipo de coisas, para que não me lancem os cães.

- Para si, não é importante o reconhecimento, como escritor e como ser humano, na sua própria pátria?

- O homem, desde o princípio, está sedento de amor pela natureza. Sedento do carinho, do dom que o mundo tem para oferecer. Quando nos privam disto, por muito que repitamos mil vezes que somos um ser frio, que nada vê nem nada ouve, atinge-nos com toda a dureza. Mas isto é assim, é inevitável. Quando se lançam vozes no bosque, o eco devolve-as. Quando se conhece o bosque, também se conhece o eco. No fundo, também se está enamorado pelo ódio e pelo desdém.

- Talvez seja por isso que de entrada, nos seus livros, começa por fazer tábua-rasa? Dá a impressão de um ajuste de contas algo brutal com determinadas pessoas. Recebe as consequentes reacções?

- Sim. Às vezes torna-se quase insuportável. Ontem, quando estava na cidade, uma mulher lançou-se literalmente para cima de mim. Pôs-se a gritar: «Se continuar por este caminho rebentará!» Estamos indefesos perante este tipo de coisas. Ou, por exemplo, estamos tranquilamente sentados num banco de jardim e recebemos de repente uma palmada nas costas. Ainda não tivemos tempo de reagir e mal conseguimos ouvir como alguém grita: «Muito bem, continue por este caminho.» Nós próprios provocamos estes incidentes. O que acontece é que não contávamos com isso. Mal posso continuar a viver em Ohlsdorf, o meu lugar de residência. Os atropelos por todo o lado tornam-se-me insuportáveis. Além disso, os louvores são tão sinistros, falsos, hipócritas e egoístas quanto os insultos. Acontece, que as pessoas, se não abro logo a porta, irritam-se e partem-me os vidros. Primeiro chamam, depois provocam, depois gritam, e acabam por me partir as janelas. Depois ouve-se o rugido de um motor que se afasta. Por que fui suficientemente estúpido, há vinte e dois anos, em dar a minha direcção, agora já não posso continuar a viver em Ohlsdorf. As pessoas sobem ao muro que rodeia a minha casa. Quando de manhã desço até ao portão, já há pessoas encarrapitadas. Dizem que querem falar comigo. Ou, aos fins-de-semana, as pessoas vão ver o escritor, como antes iam ao jardim para ver os macacos. Isto é mais divertido. Aproximam-se de Ohlsdorf e assediam a minha casa. Eu observo-os escondido por detrás das cortinas como um preso ou um louco. Insuportável. Há doze anos que não dou mais conferências. Já não me sinto capaz de me sentar e pôr-me a ler as minhas coisas. Também não suporto as pessoas que aplaudem. O aplauso é a recompensa do actor. Vive disso. Eu, por mim, prefiro os pagamentos da minha editora. Mas as marchas, os desfiles e as pessoas que aplaudem nos teatros ou nos concertos são-me insuportáveis. As calamidades são sempre provocadas pela massa afervorada que aplaude. Todos os horrores provêm dos aplausos.


Thomas Bernhard no Braeunerhof Posted by Hello

- Disse, em Extinção, que deveríamos deixar-nos erigir em velho bobo aos quarenta. Porquê?

- Este método é o único que permite suportar tudo. Perguntou-me pela imagem que tenho de mim. Só posso dizer o seguinte: a do bobo. Aí funciona. A imagem do bobo, do velho bobo. Um bobo jovem não tem interesse, nem sequer é reconhecido como bobo.

- Foi para si a escrita, sobretudo nos seus primeiros livros como A Respiração ou O Frio, também um meio de superar a sua doença?

- O meu avô era escritor. Até depois da sua morte não me atrevi a pôr-me a escrever. Quando tinha dezoito anos, descobriu-se na aldeia onde tinha nascido o meu avô uma placa em sua memória. Depois da cerimónia foram todos para o albergue de minha tia. Eu também estava lá, e a minha tia, dirigindo-se a uns jornalistas que cobriam o acontecimento, disse: «ali está o neto, que nunca será nada, apesar de no melhor dos casos também saber escrever». Então um disse: «Mande-mo na segunda-feira». Assim recebi a tarefa de escrever sobre um campo de refugiados. No dia seguinte a minha reportagem já figurava no diário. Não tornei a sentir-me tão entusiasmado na minha vida. É uma sensação maravilhosa: escrever algo que se imprime durante a noite, mesmo que seja mutilado e recortado. Mas enfim, aí estava. De Thomas Bernhard. Tinha suado sangue para escrevê-lo! Durante dois anos escrevi a crónica judicial, que me regressou à memória quando me pus a escrever prosa. Um tesouro inestimável. Creio que daí surgem as minhas raízes.

- Que sente agora, quando críticos como Reich-Ranicki ou Benjamín Henrichs escrevem sobre si com admiração? Também se sente entusiasmado?

- Não voltei a entusiasmar-me com as críticas. Ao principio, sim, porque acreditava nelas; mas quando se passa trinta anos a observar esta disparidade de apreciações, estas devoluções de favores com interesses, acabamos por descobrir esses mecanismos. Mandam os criados e dizem-lhes: «Agora quero que me faças uma crítica negativa». É assim que funciona.

- Não o incomodam as críticas ferozes?

- Sim, hoje em dia ainda continuo a cair em todos os enganos. Os jornais sempre me fascinaram, desde a minha juventude até hoje. Mal posso suportar um dia sem jornais. Ao fim de algum tempo acabamos por conhecer as pessoas nas redacções. No melhor dos casos nunca os vi na vida, mas sei quais são os segredos de um teatro, os bastidores de uma redacção, conheço os editores, os leitores, os negócios. O espírito perde-se sempre pelo caminho, o sabor também se fica pelo caminho, e a poesia. Por cima passam os exércitos de redactores e críticos. Passam por cima dos cadáveres de todos os que fazem algo criativo. Voltamos a deparar com algo fascinante: fere-me, mas já não me incomoda no meu trabalho.

- Numa conferência afirmou: «Nada temos que dizer, excepto que somos miseráveis». Escreve para fazer constar as suas derrotas?

- Não. Tudo o que faço, faço-o só para mim. Toda gente faz tudo só para si, tanto o funâmbulo, como o padeiro, ou o revisor de comboio, ou o acrobata aéreo. Com a ressalva de que nas acrobacias aéreas, durante o espectáculo, o público olha para o céu, e, enquanto o aeroplano está a voar as pessoas já esperam que se estatele. Com os escritores acontece a mesma coisa, com uma diferença importante: enquanto o aviador só se estatela uma vez, em cujo caso costuma matar-se ou ficar muito mal tratado, o escritor também costuma sair morto ou mal tratado, mas ressuscita sempre. Sempre e torna a dar o espectáculo. E quando mais velho se faz, mais alto volta, até que um dia o perdem de vista. Então as pessoas perguntam: Que estranho! Como é que não voltou a estatelar-se?
Eu tenho gozo em escrever, o que não é nada novo. Escrever é o único laço que ainda me ata. Claro que a corda está algo desfiada. Mas enfim, é assim. Ninguém é eterno. Mas enquanto a minha vida durar, viverei a escrever. A escrita é a minha existência. Há meses, ou anos, em que não consigo escrever. É horrível. Mas em algum momento sempre volta, e então algo se forja. Este ritmo é aterrorizador e extraordinário ao mesmo tempo: é algo que os outros provavelmente não conhecem.
(...)

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§ 9. De Saída: Número 3 em preparação...

quinta-feira, maio 13, 2004

Ano Um / Número 1

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Tábua de Matérias

§ 1. Voraussetzungen.
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Oração*, Ludwig Wittgenstein
§ 4. Recensão
§ 5. Playmate absoluta do momento I
§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 7. Conto - Charles Bukowski
§ 8. De Catástrofe em Catástrofe, (1) entrevista exclusiva a Thomas Bernhard, sem kind permission da Quimera.
§ 9. De Saída: Número 2 em preparação...

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§ 1. Voraussetzungen.

Este blogzine pretende-se, afirma-se, qual Vale dos Reis em pleno deserto, multiglota, anti-liberal (melhor, para que se entenda, desprezando em absoluto o liberalismo), no sentido, entre outros, de ignorar o mais possível a cada um dos seus proprietários todas as formas (sobretudo humanas) contemporâneas e passadas de sagrado, e o que a seguir se escreverá.

A propriedade do Saca, como há-de ser cumprido, reflecte o mais infielmente que aprouver uma série de reflexões cuja principal utilidade será a própria de cada um. Nada de fanchona reflexão, antes misogínia pós-iluminada, a saber, um solipsismo com sexo dentro e fora de bordas, de gonzos e limitações.

Abolição sem trégua do privilégio. Nada do que é prévio é assimilado espectralmente como Lei. Respeit@-se tão somente a generosidade do crime conquistada pelo próprio, só isso.

Reticências em caso - e o mundo é tudo o que é o caso, a minha propriedade, de veemente necessidade, algum decoro nada burguês, apenas uma questão de sensibilidade e sensatez. O silêncio de décadas, o fumo e o vinho celebrado na água fresca da noite.

Egoísmo até à reticência, até ao non-dire en disant... Tal como, por excepcional exemplo, uma conhecida Bela de dia, ocultando sempre os mais íntimos desejos, fiat Verbum!

O possível freme entre cada sacudidela em bico alheio, sempre conquistado, durante o tempo que nos há-de caber.

Trata-se de escrita, idiotas!

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§ 2. Dito e Feito, por P.D.

A ver

Amar. Odiar. Desprezar. Em breve contentamento sempre infeliz, esquecida a leve desilusão de querer mais e não haver poder. Fora da experiência, fora da vida, no tempo, sim, no tempo, sempre. A ver coisas e entes a passar, tudo igual: os amados, odiados e desprezados pela mecânica. Mente e vida. Agir a querer, sem companhia do querido. Sem fazer crer que não é só. Isto a mover-se, irrequieto, sem parar, a passar – e nem lhe tocar, sequer.
Ordenar ao mundo que não. Sim, que isto pare e me o deixe mudar, à mão, só por minha vontade. Por que ages assim? Eu mudo contigo. Tu muda comigo e eu já te ouço. A falar, obedecendo, amar-te-ei ruidosamente em meu poder.
Mas não vi que sim. Surdo, o indiferente nem ódio nem amor. Nada a fazer. Viver sendo, a ver as coisas a passar. A ver o que há. Igual, a mim mas sem mim. Só Tu. Eu. Sem vós.

Se tu outro me obedecesses... estilhaçado em mil, inúmero, para todos, e tudo, ajustado a mil e mais. Feliz o tolo crente. Em arbustos que ardem, aparecendo mãos. Mas larga! Digo eu. Fica aqui e vive-te dentro de onde só cabes. É isso que sabes.
Mais não.

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§ 3. Oração*, Ludwig Wittgenstein

Oração*

Was weiss ich über Gott und den Zweck des Lebens?
Ich weiss, dass diese Welt ist.
Dass ich in ihr stehe wie ein Auge in seinem Gesichtsfeld.
Dass etwas an ihr problematisch ist, was wir ihren Sinn nennen.
Dass dieser Sinn nicht ihn ihr liegt, sondern ausser ihr. [Vgl. 6.41]
Dass das Leben die Welt ist. [Vgl. 5.621]
Dass mein Wille die Welt durchdringt.
Dass mein Wille gut oder böse ist.
Dass also Gut und Böse mit dem Sinn der Welt irgendwie zusammenhängt.
Den Sinn des Lebens, d.i. den Sinn der Welt, können wir Gott nennen.
Und das Gleichnis von Gott als einem Vater daran knüpfen.
Das Gebet ist der Gedanke an den Sinn des Lebens.
Ich kann die Geschehnisse der Welt nicht nach meinem Willen lenken, sondern bin vollkommen machtlos.
Nur so kann ich mich unhabhängig von der Welt machen – und sie also doch in gewissem Sinne beherrschen – indem ich auf einen Einfluss auf die Geschehnisse verzichte.


* Ludwig Wittgenstein a 11.06.1916 não usou título. Os nºs remetem, obviamente, para o Tratactus.

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§ 4. Recensão

um

"Le remploiement vierge du livre, encore, prête à un sacrifice dont saigna la tranche rouge des anciens tomes; l’introduction d’une arme, ou coupe-papier, pour établir la prise de possession."

Stéphane Mallarmé

I. Os livros e as prostitutas podem levar-se para a cama.
II. Os livros e as prostitutas entrecruzam o tempo. Dominam a noite tal como o dia e o dia tal como a noite.
III. Ao ver os livros e as prostitutas ninguém nota que os minutos lhe são preciosos. Mas quando lidamos com eles mais de perto, então notamos a pressa que têm. Fazem contas também enquanto nos afundamos neles.
IV. Desde sempre os livros e as prostitutas têm entre si um amor infeliz.
V. Os livros e as prostitutas - ambos têm toda a espécie de homens que vivem deles e os atormentam. Os livros têm os críticos.
VI. Livros e prostitutas em casas públicas - para estudantes.
VII. Os livros e as prostitutas - raramente aqueles que os possuiu lhes vê o fim. Costumam desaparecer antes de perecerem.
VIII. Os livros e as prostitutas contam com o mesmo agrado e mentira como se tornaram no que são. Na verdade, frequentemente, nem eles próprios o notam. Durante anos tudo é feito «por amor» e, certo dia, anda na rua como corpus hem carnal, aquilo que «enquanto estudo» pairava sempre por cima dela.
IX. Os livros e as prostitutas gostam de voltar as costas quando se expõem.
X. Os livros e as prostitutas têm muitas crias.
XI. Os livros e as prostitutas - «velha beata - jovem puta». Quantos livros por onde actualmente a juventude tem de aprender não foram difamados!
XII. Os livros e as prostitutas têm as suas zangas diante das pessoas.
XIII. Os livros e as prostitutas – as notas de rodapé são neles o que nelas são as notas na meia.

Walter Benjamin, Rua de Sentido Único

P.D.

dois

Afirma Michel Meyer, na sua nota preliminar de Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, que "Existem cada vez mais homens. Também estão cada vez mais divididos e entram muitas vezes em guerra para resolverem os seus problemas. Mas também podem falar sobre o assunto para negociarem e discutirem acerca daquilo que os opõe. É nesse momento que têm maior necessidade da retórica. Ela dá-lhes a ilusão de abolir as distâncias e por vezes, misteriosamente, é bem sucedida. Todo o interesse da retórica reside nesse mistério."

A retórica invadiu a nossa sociedade de comunicação. Os media e a publicidade, a política e a filosofia, o direito e a literatura, a conversa quotidiana e as ideologias, são doravante outros tantos domínios que ela governa, que dela dependem e a ela recorrem permanentemente. Os homens utilizam-na espontaneamente para agradar, seduzir e dominar, mas também para convencer e raciocinar. Ela consagra, assim, a distância que separa os seres, uma distância que eles se esforçam por negociar a partir dos problemas que os opõem ou os unem.

Em Questões de Retórica, Michel Meyer, que se impôs como um dos nossos grandes teóricos nesta disciplina, propõe simultaneamente uma introdução clara às suas múltiplas categorias - o estilo literário, as figuras, o papel da subjectividade, a argumentação, a sedução, a emoção, etc. -, e uma reflexão aprofundada sobre a linguagem e os seus méritos.

Uma viagem pelas imagens, palavras e frases.

A.H.

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§ 5. Playmate absoluta do momento I
Nossa Senhora
Madonna Posted by Hello

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§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.

Ohne Warum

Die Ros' ist ohn' Warum, sie blühet weil sie blühet,
Sie acht't nicht ihrer selbst, fragt nicht, ob man sie siehet.


Angelus Silesius, Cherubinischer Wandersmann, I, 289.


Doíam-lhe aquelas pernas, felizmente apenas duas, e não eram ainda as varizes futuras a doer-lhe, nem tão pouco a alma ou as pe®nas do costume, as suas. Sentou-se num banco de jardim porque, por mero acaso, o cruzava sem pensar em nada, não se sentou ainda num divã. Acabou por pousar os sacos das compras, sem deixar por um segundo de pensar que era exactamente isso, a mínima ideia; que devia ser mais ou menos isso que faziam quase todas as mulheres àquela hora de regresso a casa. E a seguir, que fazer da noite? Uma intelectual não se limita a pousar um par de sacos de plástico cheios de sobrevivência aprazada, ao atravessar inusitadamente do jardim, algumas cervejas, muito tabaco…, pensa, ao enrolar um cigarro para variar. E era apenas o habitual silêncio de uma moral qualquer que lhe doía agora naquelas pernas cansadas, as suas? Como é, de certa maneira, ligeiramente reconfortante ter a certeza absoluta que os fumadores morrem antes da sua hora. Se ao menos pudessemos escrever, como quase todos os poetas as dores alheias, ou simplesmente mesmo horror à dor, acerca das dela por exemplo. Agora sabe bem este cigarro.
E passa nesse momento alguém numa cargo que lhas elogia com um assobio insistente. Que ricas pernas, menina! Como se alguma vez tivesse sido ela uma menina, ou se limitasse a ter umas fabulosas pernas daquelas! Lembrou-se subitamente da passagem dos Tagebücher em que outra espécie mais rara de atrevido afirma, confortavelmente entrincheirado entre soldados, camaradas, que se o suicídio é permitido, tudo é permitido. Andaria ele na altura a ler o Arthur? Há quem pense que sim, mas isso que importa? Imagina-o antes com um desejo irreprimível de suor, de esperma, de batalha que tarda naquela tarde (ou seria noite?). O cheiro dos cavalos em descanso e sobretudo dos outros homens igualmente absortos. Tratava-se de estar em plena I Guerra, como vem nos livros. Hoje em dia seria, no mínimo, desagradável se cheirassem as carnes de alguém e os cavalos já não se comem na Europa.
Ai, as minhas pernas... Sigo.
(...)

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§ 7. Conto, Charles Bukowski

MAUVAIS TRIP*

AVEZ-VOUS remarqué que le LSD et la télé en couleurs sont arrivés sur le marché à la même époque? Toutes ces inventions nous matraquent, et que faisons-nous? On interdit le LSD et on fait de la télé merdeuse. La télé, c'est évident, est sabotée par tous ceux qui en font aujourd'hui. Ça ne se discute même pas. J'ai lu récemment qu'au cours d'une descente un inspecteur aurait reçu une bonbonne d'acide qu'un soi-disant fabricant de drogue hallucinogène lui aurait balancée à la figure. Encore un exemple de gâchis! Il y a de bonnes raisons d'interdire le LSD, le DMT, le STP, on peut bousiller définitivement sa tête avec, mais pas plus qu'au ramassage des betteraves ou en bossant à la chaîne chez General Motors, en faisant la plonge ou en enseignant l'anglais dans une fac. Si on interdisait tout ce qui nous rend dingues, toute la société y passerait: le mariage, la guerre, le métro, les abattoirs, les clapiers, les tables d'opération, etc. Tout peut virtuellement nous faire craquer parce que la société repose sur des piliers pourris. D'ici à ce qu'on lui botte le cul et qu'on reparte à zéro, il y a encore du beau temps pour les asiles! Et la réduction du budget des asiles par notre cher gouverneur signifie, à mes yeux, que la société se débarrasse de ceux qu'elle a rendus fous, spécialement en période d'inflation et de déficit de la balance commerciale. On ferait mieux de dépenser notre fric à construire des routes ou bien à arroser les nègres pour les retenir de brûler nos villes. J'ai une idée: pourquoi ne pas massacrer les fous? Pensez à toutes les économies. Ça mange, un fou, il lui faut un trou pour dormir, et puis ces ordures m'ecœurent avec leur manie de pleurnicher, d'étaler leur merde sur les murs. Tout ce dont on a besoin, c'est d'une petite équipe de médecins pour décider qui est fou et d'une paire d'infirmières (ou d'infirmiers) pour baiser avec les psyquiatres.

Bukowski Posted by Hello

Reparlons du LSD. S'il est vrai que moins tu en fourgues plus c'est risqué, on peut dire aussi que plus tu en prends plus c'est risqué. Toute activité créatrice complexe, comme la peinture, la poésie, le braquage de banques, la prise du pouvoir, te mène au point où le miracle et le danger se ressemblent comme des frères siamois. Ça ne marche pas toujours comme sur des roulettes, mais quand ça marche, la vie vaut vraiment le coup. C'est chouette de coucher avec la femme d'autrui mais tu sais qu'un jour tu te feras prendre les fesses à l'air. Ça donne du piquant à l'action. Avec les péchés que fabrique le ciel nous nous construisons un enfer, dont nous avons un réel besoin. Deviens fortiche dans ton truc et tu auras des ennemis. On tire la langue aux champions; la foule brûle de les voir ramper, ça la ramène dans sa merde. On n'assassine pas tellement les pauvres types; un gagneur risque d'être descendu avec un fusil acheté par correspondance (comme le veut la légende), ou avec sa propre carabine dans un bled appelé Ketchum. Ou comme Adolphe et sa pute : la chute de Berlin à la dernière page du roman.
Le LSD peut te démolir aussi parce que ça n'est pas vraiment fait pour les ringards. D'accord, un mauvais trip épuise comme une mauvaise pute. La baignoire pleine de gin et le whisky de contrebande ont déjà eu leur heure de gloire. La loi sécrète une maladie : le marché noir du poison. Mais, au fond, la plupart des mauvais trips viennent de ce que l'individu est empoisonné d'avance par la société. Quand un homme s'angoisse pour son loyer, les traites de sa voiture, le réveille-matin, l'éducation du gosse, un dîner à dix dollars avec sa petite amie, l'opinion du voisin, le prestige du drapeau ou les malheurs de Brenda Starr, une pilule de LSD a toutes les chances de le rendre fou parce qu'il est déjà fou en un sens, écrabouillé par les interdits sociaux et rendu inapte à toute réflexion personnelle. L'acide ne vaut que pour les hommes qu'on n'a pas encore engagés, qu'on n'a pas encore enculés avec la grande Peur qui fait marcher tout le système. Malheureusement, la plupart des gens se croient plus libres qu'ils ne sont, et la génération hippie se trompe quand elle décide de ne pas faire confiance aux plus de trente ans. Trente ans, ça ne veut rien dire. La plupart des gens se font coincer et mouler, en bloc, dès l'âge de sept ou huit ans. Beaucoup de jeunes ont l'AIR libre, mais ce n'est qu'une chimie des cellules, de l'énergie, pas un fait de l'esprit. J'ai rencontré des hommes libres dans les endroits les plus bizarres et de TOUS les âges, des portiers de nuit, des voleurs de voitures, des laveurs de voitures, et quelques femmes libres aussi, surtout des infirmières ou des entraîneuses. Un être libre, c'est rare, mais tu le repères tout de suite, d'abord parce que tu te sens bien, très bien, quand tu es avec lui.
Un trip au LSD te fait voir des choses qui échappent aux règlements. Ça te fait piger des trucs qui ne sont pas dans les manuels et dont tu ne peux pas te plaindre à ton conseiller municipal. L'herbe ne fait que rendre la société actuelle plus supportable; le LSD est déjà en soi une autre société.
Si tu respectes la loi, rien ne t'empêche d'étiqueter le LSD comme «drogue hallucinogène», ce qui est un moyen facile de s'en tirer et de ne pas poser de questions. Mais l'hallucination, d'après le dictionnaire, dépend de l'endroit d'où tu agis. Tout ce qui t'arrive au moment où ça t'arrive au moment où ça t'arrive devient la réalité, que ce soit un film ou un rêve, baiser ou tuer, être tué ou manger un ice-cream. Les mensonges viennent après; ce qui doit arriver arrive. L'hallucination, ce n'est qu'un mot dans le dictionnaire. Pour un homme qui meurt, la mort est toute la réalité; pour les autres, ce n'est que de la malchance ou un mauvais moment à passer.
Forest Lawn s'occupe de tout. Quand on admettra qu'il faut de TOUT pour faire le monde, alors on aura une chance. Tout ce qu'un homme voit existe. Ca ne vient pas d'une force étrangère et c'était là avant sa naissance. Ne lui reproche pas de le découvrir aujourd'hui, et ne lui reproche pas de devenir fou parce qu'on ne lui a pas appris que l'aventure est sans fin et que nous sommes tous des petits paquets de merde et rien d'autre. Le mauvais trip ne vient pas du LSD, mais de ta mère, du Président, de la petite fille d'en face, des vendeurs d'ice-creams aux mains sales, d'un cours d'algèbre ou d'espagnol obligatoire, ça vient d'une odeur de chiottes en 1926, d'un type avec un long nez quand tu croyais que les longs nez étaient laids, ça vient d'un laxatif, de la brigade Abraham Lincoln, des sucettes ou de Bugs Bunny, ça vient de la tête de Roosevelt, d'un verre de vinaigre, de passer dix ans dans une usine et te faire virer parce que tu as cinq minutes de retard, ça vient de la vieille outre qui t'a appris l'histoire de ton pays en sixième, de ton chien qui s'est perdu sans que personne ne t'aide à le retrouver, ça vient d'une liste longue de trente pages et haute de cinq kilomètres.
Un mauvais trip? Ce pays tout entier, cette planète est dans un mauvais trip, l'ami. Mais on t'arrêtera si tu avales une pilule.

Bukowski Posted by Hello

Je reste fidèle à la bière parce que, au fond, à quarante-sept ans, ils m'ont bien harponné. Je serais pour le coup un vrai dingue si je croyais avoir échappé à tous leurs filets. Je crois que Jeffers le dit joliment bien quand il dit, en gros, attention aux pièges à con, l'ami, il y en a partout, il paraît que même Dieu y est tombé quand Il a débarqué sur la Terre.
Certes, nous sommes désormais quelques-uns à penser que ce n'était pas forcément Dieu qui débarquait, mais, qui que ce fût, il connaissait de sacrés bons coups. Nous avons seulement l'impression qu'il parlait trop. Ça arrive à tout le monde. Même à Leary. Ou à moi.
On est aujourd'hui samedi, il fait froid et le soleil va se coucher. Que faire l'après-midi? Si j'était Liza, je me peignerais les cheveux mais je ne suis pas Liza. Bon, j'ai un vieux National Geographic et les pages brillent comme des vrais paysages. Evidemment, ce sont des faux. Autour de moi dans l'immeuble, ils sont tous soûls. Une pleine termitière de pochards. Les dames passent sous ma fenêtre. Je pète, je murmure un «merde» tendre et fatigué, puis j'arrache cette page de ma machine. Elle est à toi.

Charles Bukowski, "Hank", San Francisco, 1967-1972, Erections, ejaculations, exhibitions and general tales of ordinary madness, no original. Aqui Grasset 1982, Nouveaux contes de la folie ordinaire, 135-139.

*Cortesia de Renate.

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§ 8. De Catástrofe em Catástrofe, (1) entrevista exclusiva a Thomas Bernhard, sem kind permission da Quimera.

De Catástrofe em Catástrofe (1)

- Nunca sabemos quem somos. São os outros que nos dizem quem somos, não é? E como ouvimos isto milhões de vezes durante a vida, por pouco que esta seja longa, acabamos por não saber em absoluto quem somos. Todos dizem uma coisa diferente. Até nós mesmos estamos sempre a mudar de parecer.

- Existem seres dos quais dependa, que tenham uma influência decisiva na sua vida?

- Somos sempre dependentes das pessoas. Não há ninguém que não dependa de algum ser. O homem que estivesse sempre a sós consigo mesmo acabaria por se afundar ao fim de muito pouco tempo; morreria. Acredito que para cada um de nós existem seres decisivos. Eu conheci dois na minha vida: o meu avô paterno e uma pessoa que conheci um ano antes da morte de minha mãe. Foi uma relação que durou mais de trinta e cinco anos. Tudo o que me dizia respeito provinha dessa pessoa, dela aprendi tudo. E com a sua morte também desapareceu tudo. Nesse momento encontramo-nos sós. Ao princípio gostaríamos de morrer também; depois, pomo-nos a procurar todas as pessoas que ainda temos, todas aquelas que deixámos esquecidas ao longo da vida. Nessa altura encontramo-nos muito sós. Há que aprender a viver com isso.
Quando me encontrava só, fosse onde fosse, soube sempre que essa pessoa me protegia, me mantinha e também que me dominava. Depois tudo desapareceu. Estamos no cemitério. Estão a fechar o túmulo. Tudo o que possuiu algum significado foi-se. Nessa altura acordamos todas as manhãs com um pesadelo. Não se trata forçosamente de querermos continuar a viver, mas também não queremos dar um tiro na cabeça, ou enforcar-nos. Isso parece-nos feio e desagradável. Então só restam os livros. Os livros desabam sobre nós com todos os horrores que neles se podem escrever, mas de portas para fora continuamos a viver como se nada fosse, para evitarmos que quem nos rodeia, que está sempre à espreita das nossas debilidades, nos devore. Por pouco que os deixemos aproximar, abusarão de nós e submergir-nos-ão num mar de hipocrisia. Nesse momento a hipocrisia denomina-se compaixão. É a definição mais bela da hipocrisia.

Thomas Bernhard Posted by Hello
Tal como disse antes, é difícil, depois de trinta e cinco anos de convivência com uma pessoa, encontrarmo-nos de repente sós. Isto é algo que apenas as pessoas que viveram uma experiência parecida podem entender. Tornamo-nos subitamente cem vezes mais desconfiados do que antes. Tornamo-nos mais frios do que anteriormente já nos apelidavam. Ainda mais reservados. A única coisa que nos salva é o facto de não termos de morrer à fome.
Na realidade, esta vida não é propriamente aquilo que se diz agradável. Sem contar com a própria decrepitude. Um desmoronamento total. Apenas nos metemos em casas com elevador. Ingerimos um quarto de litro de vinho para almoçar, outro quarto para jantar. Torna-se mais ou menos suportável. Mas quando ao almoço se bebe já meio litro, então, passamos muito mal a noite. A vida reduz-se a este tipo de problemas. Tomar comprimidos, não tomá-los, quando tomá-los, para quê tomá-los. Vamos enlouquecendo de mês para mês, porque as coisas se vão complicando.

- Quando teve uma alegria pela última vez?

- Alegramo-nos todos os dias por continuar a viver e por ainda não estarmos mortos. Isto constitui um capital inestimável.
Aprendi, do ser que se me foi, que nos agarramos à vida até ao fim. No fundo, todos estamos contentes por viver. A vida não pode ser tão má ao ponto de não nos aferrarmos a ela. A curiosidade é o estímulo. Desejamos saber: que mais falta ainda? É mais interessante saber o que acontecerá amanhã do que o que está a acontecer hoje. Quanto mais velhos nos tornamos, mais interessante se torna a vida. Após a destruição do corpo, a mente desenvolve-se surpreendentemente bem.
Aquilo que mais gostaria era de saber tudo. Tento sempre roubar as pessoas, sacar-lhes tudo o que têm dentro, na medida em que isto pode ser praticado às escondidas. Quando as pessoas se apercebem de que estamos a roubá-las, fecham-se. Como quando vemos um suspeito aproximar-se de casa, trancamos a porta. Apesar de também ser possível forçar a porta, quando não resta outro remédio. Toda a gente pode deixar uma janela aberta no desvão. Isso pode ser muito estimulante.

- Alguma vez desejou constituir família?

- Limitei-me simplesmente a sentir-me feliz por sobreviver. Constituir família nem me podia passar pela cabeça. Não tinha saúde e, portanto, também não tinha vontade de pensar nessas coisas. Não me restou outra alternativa senão refugiar-me na minha capacidade de raciocínio, e tentar tirar dela algum proveito, dado que o meu corpo estava esgotado. Estava vazio e assim continuou, durante anos e anos. Isso é bom, ou mau? Quem sabe? Mas é uma forma de viver. A vida pode assumir infinitas formas.
A minha mãe morreu aos quarenta e seis anos. Foi em 1950. Conheci a minha companheira um ano antes. Ao princípio foi só uma amizade e uma relação muito forte com uma pessoa muito mais velha do que eu. Em qualquer lugar do mundo onde me encontrasse, ela era o ponto central a partir do qual eu extraía tudo. Sabia sempre que essa pessoa era totalmente minha nos momentos difíceis. Só tinha de pensar nela, sem sequer procurá-la, e tudo se compunha. Inclusivamente agora, continuo a viver com essa pessoa. Quando estou preocupado pergunto: que farias tu? Assim consegui afastar-me de algumas atrocidades integrais, que não se podem excluir com a idade, uma vez que tudo está dentro de nós. Para mim, ela foi o elemento de moderação e de disciplina. E, por outro lado, também o elemento de abertura ao mundo.

- Em algum momento da sua vida se sentiu satisfeito?

- Nunca me senti satisfeito com a minha vida. Sempre me senti muito necessitado de protecção. Com a minha amiga encontrei protecção e impeliu-me sempre a trabalhar. Ela sentia-se feliz por me ver fazer algo. Por isso foi maravilhoso. Viajávamos. Eu levava-lhe as suas pesadas malas, mas aprendi muitas coisas, por pouco que se possa dizer isto ao referirmo-nos a nós mesmos, pois em todo o caso é sempre pouco, ou quase nada. Mas para mim foi tudo.
Quando eu tinha dezanove anos, na Sicília, mostrou-me onde vivia Pirandello, mas sem o pedantismo enjoativo da pessoa muito culta. Como que de passagem. Fugimos para Roma, para Split, mas o importante então era sobretudo as viagens interiores que fizemos. Vivíamos num lugar perdido no campo, com muita simplicidade. À noite, a neve caía por cima da nossa cama. Sentíamos esta predilecção pela simplicidade. As vacas pastavam junto ao quarto, tocando onde vivíamos, onde tomávamos a sopa rodeados de livros.

- Sente-se contente com a sua vida de escritor?

- Bem, desejamos sempre melhorar a escrever, senão seria de dar em doido. É um fenómeno que aparece com a idade. As composições dever-se-iam ir tornando mais rigorosas. Sempre tentei melhorar progredindo. Partir do último passo para dar o seguinte. Evidentemente, os temas são sempre os mesmos, claro está. Cada um só tem o seu próprio tema e move-se dentro dele. E aí fazemos as coisas bem. Temos sempre muitas ideias: tornarmo-nos monges, ferroviário, ou lenhador talvez. Pertencer às pessoas muito simples. O que evidentemente é um erro, porque não lhes pertencemos. Quando se é como eu, é claro que não podemos transformar-nos em monge, ou em ferroviário, claro está. Sempre fui um solitário. Apesar deste fortíssimo laço sempre estive só. Ao princípio, claro, ainda acreditava que tinha de ir aos sítios e participar. Mas pelo menos desde há um quarto de século que apenas me relaciono com outros escritores.

(...)

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§ 9. De Saída:

Tábua de Matérias

§ 1. adivinhem
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. adivinhem
§ 4. Recensão
§ 5. Playmate absoluta do momento II
§ 6. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 7. Conto -
§ 8. De Catástrofe em Catástrofe, (2) entrevista exclusiva a Thomas Bernhard, sem kind permission da Quimera.
§ 9. De Saída: Número 3 em preparação...

Número 2 saída a 20 de Maio de 2004.
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