quinta-feira, julho 29, 2004

Ano Um / Número 12


--------- «(.)(.)» ---------

Tábua de Matérias
 
§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. O herói de Hong Kong, Paulo José Miranda
§ 4. Playmate absoluta do momento XII – Gertrude Stein
§ 5. Max, por A.H.
§ 6. Fabrizio Lupo, Carlo Coccioli
§ 7. A Noção de Gasto, (I), Georges Bataille
§ 8. De Saída: Número 13 (como sempre às Quintas!)...

--------- «(.)(.)» ---------

 
§ 1. Sumaríssimo

É é isto! Cá estamos nós uma vez mais para cumprir este suplício até há relativamente pouco tempo impensável que é ter de dar de ler a quem tem sede e propiciar autênticas pérolas negras (pensem nas nossas indomáveis playmates...) a quem por aqui decida e atreva a arrastar-se por mais de alguns segundos - ao que parece, cada vez mais desocupados de longa duração e lieratos em busca de aventura e sexo barato, a avaliar pela avalanche de correspondência que por cá temos de receber. Adiante. Mil cento e tal visitas, não é chita! Será que estamos no "bom" caminho? Humm...

Bem, pois desta feita, para não variarmos nem muito nem pouco damos continuidade logo a abrir ao sempre esperado Dito e Feito, pela pena certeira de P.D.; fazemos logo em seguida mais uma incursão pela (agora) nobilíssima poesia-marcial lusa com O herói de Hong Kong, da lavra do nosso bardo laureado de estimação.
 
A escolha da playmate recaiu esta semana sobre Gertrude Stein - esperemos que não se tenha magoado no processo... e, finda que foi (aparentemente) A Explicação das Pássaras, retomamos o habitual conto meta-interseccionista com Max, por A.H e, em seguida, um excerto de Fabrizio Lupo, por Carlo Coccioli - que ficará, como já se esperava, por apresentar.
 
Terminamos em GRANDE com a publicação, naturalmente não autorizada, da primeira de três partes (3!) da nossa tradução de um ensaio absolutamente fundamental de Georges Bataille, a seguir nos próximos números d' O Saca, justamente intitulado A Noção de Gasto.

Então, Bons sonhos! - e cá nos haveremos de não-ver já na próxima Quinta!

--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
 
Orgânica
 
«Ele deveria fazer como o touro, e a sua felicidade deveria cheirar a terra, e não a desprezo pela terra». (F. Nietzsche)

Por que evito sempre pensar no orgânico? Eu, que nem tenho alma? Um coração, sim, mudo e maquinalmente obediente! Se me fala, não o ouço. Apenas uma consciência difusa de um enredo de órgãos, irracionalmente combinados e vivos, a mexer em mim.
Quem suporta a sensação contínua do sangue a correr? O coração sempre a bater, despedindo-se de cada dia que passa?

Um saco cheio de nervos. É o que sou. Fluxo de sinapses autónomas e irrequietas.

Corpo, por que só me falas na dor?


Sinapse

--------- «(.)(.)» ---------

 
§ 3.O herói de Hong Kong, Paulo José Miranda 

O herói de Hong Kong

O rapaz fode na cidade
até que fosse

outra vez deitar-se.
Inflecte 180 graus
pelo nevoeiro dos arranha-céus
que pela manhã

morrem nos vidros dos táxis,
como prostitutas
a regressarem a casa.
Os helicópteros

e os seus silvados
pelos telhados,
de olhos pequenos nos sujos juncos

(o mar do outro lado da ilha),
com a soberba
e a ignorância dos céus.
É cedo para o infortúnio

as visitas à mãe, no hospital,
onde se morre sem saber,
um peixe frio à espera

e escamas de trabalho.
À porta de casa,
com vista para
as vidas a irem para o serviço,

o herói acende o último cigarro
e ostenta mais a camisola
onde se lê os seus dias:

a minha picha gostava
de te pagar um copo.
Longe no tempo que nunca virá
há-de perder

amigos em casamentos
(depois os filhos debaixo dos pratos
com tudo o que se deixa de fazer)
trocará de óculos escuros,

administra drogas rápidas
e o uso dos melhores preservativos
na sua casa em Stanley

com vista para as flores
(vaginas, pénis, seios,
rabos, braços, ombros)
que crescem

com sucesso, no terraço,
debruçado sobre o mar do sul da China.
E, seja em que língua for,

sempre fiel ao seu princípio:
fazer todo o sexo,
nada menos (nada mais) que sexo. 

Paulo José Miranda, O Tabaco de Deus, Cotovia

--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 4. Playmate absoluta do momento XII – Gertrude Stein


Gertrude Stein

--------- «(.)(.)» ---------

 
§ 5. Max, por A.H.

Une rien. L’unité triomphante.

Ao terceiro ou quarto, já não sei bem, e bem que era generoso o que me pareceu na altura ser um black label simples, já parecia mesmo estar quase decidido a ligar-lhe, assim mesmo, como se fosse sem mais, o telefonema supostamente inesperado mas de pedido concedido, inconfessável, a qualquer momento, mal encenado que estivesse, como desde sempre havia feito, sobretudo o mais importante, como sempre, aquela espécie de tom tragicómico e ligeiramente enliquidado, stumm wie ein Fish!, um mísero rato suíço enfrascado, sem a mínima vontade de abandonar a aleitante nau de suas delícias, a colocar ao mesmo tempo ao longo do habitualmente breve telefonema que lhe fazia sempre que considerava estar, segundo a sua própria imaginação, terminologia filosófica pós-moderna e prazer, quase por alturas de acerto de contas, como lhe chamava, que o limite do cartão de crédito, em sã verdade, começava a dar sinais intermitentes da não perigosa, mas velozmente a tornar-se visível que nem uma glorificante chaga aberta na possibilidade dos dias, no único coração que ainda se permitia ir tendo ao sabor do próprio sangue, da ausência abjecta de poesia nos pezinhos delicados de H., que a essa hora ainda devia estar com os coleguinhas de curso. Dir-se-ia talvez mesmo, que estava invulgarmente nervoso para aquela hora do dia e talvez, sobretudo, com a mente mais tresloucada e visando outras paragens possivelmente ainda para essa mesma noite, bastante mais tarde ainda hoje. Chamar depois um táxi e rumar com destino mais que certinho pela noite, dentro de novo em busca de Helène, daquela putéfia, a galdéria magnífica e adolescente ainda ma non tropo das últimas duas noites de revisão da matéria dada na faculdade durante a tarde, que devia chegar ao local de antes da habitual ceia, como sempre, nunca antes das dez para as onze, outro dos seus diversos e nem sempre assim tão inócuos fétiches de rameirinha muitíssimo mimada também, ao que contava, em jeito de orgasmo múltiplo e variado durante o fazer simples do sexo, pelo próprio padrasto desde a mais doce das idades de que guarda feliz memória.
    Que tesão que lhe desacodia agora ao ter de pensar nisso, numa rápida mas terna mamada de bezerrinha bem fodida, embora muito possivelmente em cuja hora da verdade tivesse de voltar, com algum agrado até, diga-se, a socorrer-se de algum outro tipo de dotes para empatar o tempo, técnicas de anti-jogo, prolongados intervalos para conversar, por vezes fumar, e tornar a morder-lhe os seios pequenos, ideiais, pensava, para fazer render a queca, que é mesmo assim... Bem. Mais tarde logo se veria. O priapismo, súbito e fora de horas, é que não estava de modo algum previsto, enquanto visitante inesperado mas nem por isso mal vindo, a tornar a visitá-lo, por assim dizer, naquela espécie de plena pré-programação da caçada nocturna, antecâmara da berlaitada sem mácula, que seguramente o esperaria a seguir àquele desprezível, até para ele, acto de submissão à natureza factual das coisas e das garrafas de bom scotch, serem como elas são, caras, ou as coisas mesmas! (selbst, ouvia ainda...) klein Geld, bitteschön!, die Damen und Herren..., e lembrar-se perfeitamente de ouvi-lo como que a trautear em vastas e repetidas ocasiões aquelas palavras na intimidade obscura do seu enfezado gabinete de estudo e trabalho, de professor – melhor, de assistente convidado – da cadeira minor de introdução à dramaturgia Contemporânea, na faculdade de Saint Suplice, nos arredores pré-suburbanos de Genebra, aos melhores de entre os seus alguns pupilos que ali se reuniam após as Leituras, como chamava ofiosamente às aulas que ministrava com relativo entusiasmo, dizia, para uma espécie de repetitorium que acabava sempre por, em bom rigor, se tornar noutra coisa qualquer, não sê-lo, por isso mesmo resolvendo logo ali deslocar-se em procura de desabafo à casa de banho mesmo ali ao lado.
    Talvez fosse só tesão de mijo, ouviu-se a pensar, aproveitando para, de passagem, tornar a encher o balão com o louro néctar dos actores menos medíocres.
    Olá, então, como estás?, mais calma?, (...) que tal correu o voo?... Quantos xanax diários?, ensaiava ele, entre mais duas goladas no seu whisky preferido entre os que por ali houvesse disponíveis de momento, na maior parte das vezes apenas quando não lhe apetecia mesmo nada, antes uma genebrina, por razões intestinais, ou intencionais, claro, (...) que em Roma deve estar um tempo deslumbrante nesta altura do ano, o silêncio surdo de algumas das muitas pombas alvas do entardecer junto à Piazza Navona, mas, que é óbvio, que ainda nem tempo deves ter tido para um refresco..., quanto mais...
    Enrubescendo paulatinamente, já voltado para a frente do enorme espelho da sala de estar, as cordas vocais ao ponto incerto, justamente pouco antes de chegar a ter de arrastar a língua, entaramelar sílabas em plena maratona de alarvidades, como as suas pernas bambas de tanto ter bebido já até então, apenas para quase se conseguir fazer entender do outro lado do aparelho nas conversas cada vez mais raras e fugazes com Inge. Meine liebste und unschätzbare Schatz... Mon amour d’une rien.
    Max não estaria verdadeiramente bêbado, de acordo com as suas próprias desmesuras, mas estaria já a ficar, por assim dizer, com o espírito assaz elevado, ensopado, e cada vez menos distante de estar pronto para mais uma, outra noite, eram sempre outras as suas noites, agora já só quase diariamente, de pura dissipação indolente, de uma há muito mais de vinte anos decidida auto-dissolução o mais lenta possível daquilo que ainda restava de um certo Max F., o próprio, que ia sendo o escritor de nacionalidade suiça laureado, subsidiado e muito acertadamente renomado pela sua novíssima prosa dramatúrgica, como uma certa crítica eventualmente menos feroz o enchia de alguns miminhos em artigos de reconhecimento encorajadores, no sentido de continuar felizmente na mentira, nas revistas comuns e mais ou menos pós-sexistas da especialidade e nos vulgares e diversos pasquins diários de Genebra aquando de cada nova mise en scène de uma ninharia sua, como gostava de humildemente desabafar entre as pernas mais fiéis das suas discípulas mais aplicadas no estudo de determinadas matérias extra-curriculares, que podiam ir, e iam invariavelmente, desde a influência da filosofia stirneana no Manifesto, até ao puro e aparentemente simples suprir absoluto da natural aflição eréctil pela caridosa e valente berlaitada higiénica.
    A sua obra...
    E perdia novamente o fio à meada e aos saturnais rigores do tom. Como se a uma muleta supra-álcoolica, pensava agora tornar a recorrer ao, nele, raro mas sempre eficaz ciúme, como método dissuasor de possíveis manobras de esquiva ao dever conjugal.
    Felizmente há muito que deixara de poema(lha)r, aí pelos seus cerca de vinte e um anos, como dizia e acrescentava, antes de chegar a poder ter de brilhar nas muito depressivas, quase tanto quanto deprimentes, recepções urbano-literárias e chás-dançantes afins. Somente na amargura de cada uma das raríssimas e preciosas, pedras, amarga e dolorosamente ensanguentadas pelas suas lágrimas, arrancadas ao cinzento abismo a que gostava de poder vir um dia a chamar prosa, uma unidade finalmente triunfante – afirmava na surdina de um semi-anonimato voluntário e pretendido, quando não mesmo desejado, em resposta aos raros questionários-entrevista que aceitava preencher como quem fizesse à tarde algum cruzadismo para matar o tempo -, apesar da inutilidade de tudo, toda a escrita.

- ‘sccusi, per piacere, la señorina del seccundo “étage”, ãh... (...) sinistra, certo gracie tanta! yo...

--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 6. Fabrizio Lupo, Carlo Coccioli
 
(Assis, 1 de Setembro:) Descubro que a morte não existe a partir do que me disse um dia um cego de nascença, homem dos seus trinta anos, frágil, com um rosto descarnado mas rico daquela tranquilidade que habitualmente os cegos não possuem, perturbados que se sentem pela ausência de um centro sensível. Conheci-o há dois anos numa noite de Verão; as pessoas tinham abandonado as casas, tinham fugido daquela cidadezita antiga, árida, fanática, fantástica, sacudida pelo terramoto; os abalos eram muito frequentes, bastante fortes, mas aquelas construções arcaicas, humildes, intrépidas, resistiam ainda, o que não impedira os habitantes de fugir. Tinham acampado fora dos muros da cidade em tendas da Cruz Vermelha e em toda a espécie de abrigos. Mas o cego errava pelas ruelas desertas, que a ausência de pessoas ampliava numa dimensão gigantesca. Caminhava direito, seguro, naquelas ruelas transbordantes de ecos. Sentia, quem sabe, que a cidade era toda sua. Era noite. Ouvi os seus passos cadenciados, aproximei-me e pedi-lhe uma informação. Caminhou a meu lado, guiou-me, e ficámos amigos.
Perguntei-lhe um dia o que é que sentem os cegos. Ao perguntá-lo, coloquei ambas as mãos nos olhos e pus-me a andar pelo quarto, mas o único resultado que tive foi esbarrar na esquina de uma cómoda. O cego riu baixinho. «É grotesco o que estás a fazer – observou, com a sua voz profunda – porque, se tapas os olhos, a única coisa que acontece é que deixas de ver.» Foi exactamente isto que disse e eu, furioso, exclamei: «Bem sei, tanto mais que fiquei com uma nódoa negra num joelho! Mas o que é que queres dizer com isso de que a única coisa que acontece é que deixo de ver?» «Exprimi-me mal – disse o cego. – E exprimi-me mal porque me exprimo com a linguagem que vocês, os que vêem, inventaram. O que quero dizer é que, se tapares os olhos, deixas de ver, mas os teus olhos continuam a funcionar, isto é, vês a obscuridade. Vês em negativo. Não-vês, mas a ideia de não-ver implica a ideia de ver.»
«Não se pode dizer que estejas a ser muito claro – disse, azedo. – Onde é que queres chegar?» «Quero fazer-te entender que um cego como eu, um cego de nascença, é completamente alheio à ideia de ver, quer em sentido positivo, quer em sentido negativo, de onde se deduz ser falso que eu seja cego, como vocês pretendem. Afirmar que eu sou cego é, alias, uma parvoíce.» «Com que então não és cego?» «Não, meu caro, não sou cego. O conceito de vista ou não-vista é-me totalmente estranho, não me diz respeito. Quando muito, vocês e que são não-cegos.» Desatei a rir e pensei em Parménides, que afirmava: «Não podemos conceber verdadeiramente a ideia de não-ser, pela simples razão de que somos»; e o cego que, milagre dos milagres, afinal não era cego, continuou imperturbável, com o seu rosto descarnado. De modo que lhe perguntei depois: «Mas tu, concretamente, o que é que podes provar com esses teus olhos apagados (se me permites o adjectivo pouco adequado)?»
Respondeu-me com cordialidade: «Os meus olhos não são olhos e não podem, por isso, ser nem olhos apagados nem olhos acesos. Com os meus mal denominados olhos, eu, no que à vista ou não-vista se refere, experimento o mesmo que tu – como explicar-te? – experimentas com o teu cotovelo direito ou com o teu joelho esquerdo. No que se refere à vista ou não-vista, não experimento absolutamente nada.»
Naquele momento, aquela afirmação deixou-me perfeitamente aterrado e não o escondi àquele-que-já-não-era-cego, que, de novo, desatou a rir. «O teu terror, desculpa que to diga, é outra parvoíce, mas, com franqueza, não sou capaz de explicar-te porquê. Imagina que, ao pensares num pássaro, ficas aterrorizado pelo simples facto de ser um pássaro. Não achas que seria uma parvoíce?» De acordo, e agora aqui, em Assis, lembro-me subitamente de aplicar tal «descoberta» à ideia da morte e chego a conclusão que a morte é uma criação dos vivos, já que, no momento em que uma pessoa viva deixa de o estar, a morte deixa automaticamente de existir; por outras palavras: a morte não existe, ou antes, a morte é um acto de vida, a morte é vida. [...]

In, Carlo Coccioli, Fabrizio Lupo, Cotovia

--------- «(.)(.)» ---------

 
§. 7 A Noção de Gasto, (I) Georges Bataille
 
 



Georges Bataille

Georges Bataille, A Noção De Gasto
[1]

1. Insuficiência do princípio clássico de utilidade
Quando o sentido de um debate depende do valor fundamental da palavra útil, quer dizer, sempre que é abordada uma questão essencial relacionada com a vida das sociedades humanas, sejam quais forem as pessoas intervenientes e as opiniões representadas, é possível afirmar que se falseia necessariamente o debate e se ilude a questão fundamental. Com efeito, não existe nenhum meio correcto, considerando o conjunto mais ou menos divergente das concepções actuais, que permita definir o que é útil aos homens. Esta lacuna fica suficientemente provada pelo facto de ser constantemente necessário recorrer, do modo mais injustificável, a princípios que se tentam situar para além do útil e do prazer. Alude-se, hipocritamente, à honra e ao dever, combinando-os com o interesse pecuniário e, sem falar de Deus, o Espírito é usado para mascarar a confusão intelectual dos que recusam aceitar um sistema coerente.

No entanto, a prática usual evita estas dificuldades elementares e a consciência comum parece que, numa primeira aproximação, não pode opor senão reservas verbais ao princípio clássico da utilidade, quer dizer, da pretensa utilidade material. Teoricamente, esta tem por objecto o prazer – mas somente sob uma forma moderada, já que o prazer violento é percebido como patológico – e fica limitada à aquisição (praticamente à produção) e à conservação de bens, por um lado, e à reprodução e conservação de vidas humanas, por outro: (preciso é acrescentar, certamente, a luta contra a dor, cuja importância basta em si mesma para manifestar o carácter negativo do princípio do prazer teoricamente introduzido na base). Na série de representações quantitativas ligadas a esta concepção da existência, plana e insustentável, só o problema da reprodução se presta seriamente à controvérsia pelo facto de um aumento exagerado do número de seres vivos poder diminuir a parte individual. Mas, globalmente, qualquer avaliação geral sobre a actividade social implica o princípio de que todo o esforço particular deve ser redutível, para ser válido, às necessidades fundamentais da produção e da conservação. O prazer, quando se trata de arte, de vício tolerado ou de jogo, fica reduzido, em definitivo, nas interpretações intelectuais correntes, a uma concessão, quer dizer, a um descanso cujo papel seria subsidiário. A parte mais importante da vida é considerada como sendo constituída pela condição – às vezes até penosa – da actividade social produtiva.

É verdade que a experiência pessoal, tratando-se de um jovem, capaz de esbanjar e destruir sem sentido, opõe-se, em todo o caso, a esta concepção miserável. Mas até mesmo quando este se prodigaliza e se destrói sem consideração alguma, até o mais lúcido ignora o porquê ou julga-se doente. É incapaz de justificar utilitariamente a sua conduta e não se apercebe que uma sociedade humana possa estar interessada, como ele mesmo, em perdas consideráveis, em catástrofes que provoquem, de acordo com necessidades concretas, abatimentos profundos, ataques de angústia e, em último extremo, um certo estado orgiástico.

A contradição entre as concepções sociais correntes e as necessidades reais da sociedade assemelha-se, de um modo esmagador, à estreiteza de mente com que o pai tenta obstar a satisfação das necessidades do filho que tem a seu cargo. Esta estreiteza é tal que é impossível ao filho expressar a sua vontade. A quase malvada protecção de seu pai cobre o alojamento, a roupa, a alimentação, até algumas diversões anódinas. Mas o filho não tem sequer o direito de falar do que o preocupa. É obrigado a fazer crer que não se defronta com nada de abominável. Neste sentido é triste dizer que a humanidade consciente continua a ser menor de idade; admite o direito de adquirir, de conservar ou de consumir racionalmente, mas exclui, em princípio, o gasto improdutivo.

É certo que esta exclusão é superficial e não modifica a actividade prática, do mesmo modo que as proibições não limitam o filho, que se entrega a diversões inconfessáveis assim que deixa de estar em presença do pai. A humanidade pode fazer as suas concepções tão estúpidas e míopes quanto as paternas. Mas, na prática, comporta-se de tal forma que satisfaz necessidades que são uma barbaridade atroz e até não parece capaz de subsistir senão à beira do excessivo.

Por outro lado, por pouco que um homem seja capaz de aceitar plenamente as considerações oficiais, ou que possam chegar a sê-lo, por pouco que tenda a submeter-se à atracção de quem dedica a sua vida à destruição da autoridade estabelecida, é difícil crer que a imagem de um mundo aprazível e coerente com a razão possa chegar a ser para ele mais que uma cómoda ilusão.

As dificuldades que se podem encontrar no desenvolvimento de uma concepção que não siga o modelo desprezível das relações do pai com o filho não são, portanto, insuperáveis. Pode acrescentar-se à necessidade histórica de imagens vagas e enganosas para uso da maioria, que não actua sem um mínimo de erro (do qual se serve como se fosse uma droga) e que, além disso, em qualquer circunstância, recusa reconhecer-se no labirinto a que conduzem as inconsequências humanas. Para os sectores incultos ou pouco cultivados da sociedade, uma simplificação extrema constitui a única possibilidade de evitar uma diminuição da força agressiva. Mas seria vergonhoso aceitar como limite ao conhecimento as condições em que se formam tais concepções simplificadas. E se uma concepção menos arbitrária está condenada a permanecer, de facto, como que esotérica e se, como tal, tropeça, nas circunstâncias actuais, com uma recusa insana, é preciso dizer que esta recusa é precisamente a desonra de uma geração na qual os rebeldes têm medo do clamor das suas próprias palavras. Não devemos, portanto, prestar-lhe atenção.


Touro

2. O princípio de perda
A actividade humana não é inteiramente redutível a processos de produção e conservação, e o consumo pode ser dividido em duas partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo uso de um mínimo necessário aos indivíduos de uma sociedade dada à conservação da vida e para a continuação da actividade produtiva. Trata-se, pois, simplesmente, da condição fundamental desta última. A segunda parte é representada pelos chamados gastos improdutivos: o luxo, os duelos, as guerras, a construção de monumentos sumptuosos, os jogos, os espectáculos, as artes, a actividade sexual perversa (quer dizer, desviada da actividade genital), que representam actividades que, pelo menos em condições primitivas, têm o seu fim em si mesmas. Por isso, é necessário reservar o nome de gasto para estas formas improdutivas, com exclusão de todos os modos de consumo que servem como meio de produção. Apesar de ser sempre possível opor umas às outras, as diversas formas enumeradas constituem um conjunto caracterizado pelo facto de, em qualquer caso, a ênfase se situar na perda, a qual deve ser a maior possível para adquirir o seu verdadeiro sentido.

Este princípio de perda, quer dizer, de gasto incondicional, por contrário que seja ao princípio económico da contabilidade (o gasto regularmente compensado pela aquisição), só racional no sentido estrito da palavra, pode manifestar-se com a ajuda de um pequeno número de exemplos extraídos da experiência corrente.

1) Não basta que as jóias sejam belas e deslumbrantes, o que permitiria que fossem substituídas por outras falsas. O sacrifício de uma fortuna, em vez da qual se preferiu um colar de diamantes, é o que constitui o carácter fascinante do referido objecto. Este facto deve ser relacionado com o valor simbólico das jóias, que é geral em psicanálise. Quando um diamante tem num sonho uma significação relacionada com os excrementos, não se trata somente de uma associação por contraste já que, no subconsciente, as jóias, como os excrementos, são matérias malditas que flúem de uma ferida, partes de nós mesmos destinadas a um sacrifício ostensivo (servem, de facto, para fazer ofertas faustosas carregadas de desejo sexual). O carácter funcional das jóias exige o seu imenso valor material e explica o pouco caso feito às mais belas imitações, que são quase inutilizáveis.

2) Os cultos exigem uma destruição cruenta de homens e de animais de sacrifício. O sacrifício não é outra coisa, no sentido etimológico da palavra, senão a produção de coisas sagradas. É fácil apercebermo-nos de que as coisas sagradas têm a sua origem numa perda. Em particular, o êxito do cristianismo pode ser explicado pelo valor do tema da crucificação do filho de Deus, que provoca a angústia humana por equivaler à perda e à ruína sem limites.

3) Nos diferentes desportos, a perda produz-se, em geral, em condições complexas. Despendem-se quantidades consideráveis de dinheiro na manutenção de locais, de aparelhos e de homens. As energias prodigalizam-se, no possível, com a finalidade de provocar um sentimento de estupefacção e, em todo o caso, com uma intensidade infinitamente maior que nas empresas de produção. O perigo de morte não é evitado, uma vez que, pelo contrário, é o objecto de uma forte atracção inconsciente. Por outro lado, as competições são, às vezes, a ocasião para repartir riquezas de uma maneira ostensiva. Multidões imensas assistem a elas. As suas paixões desencadeiam-se com grande frequência sem controlo algum, a perda de ingentes quantidades de dinheiro fica comprometida em forma de apostas. É verdade que esta circulação de dinheiro beneficia um pequeno número de profissionais da aposta, mas nem por isso esta circulação pode ser menos considerada como uma carga real das paixões desencadeadas pela competição, que ocasiona a um grande número de apostadores perdas desproporcionadas aos seus meios. Estas perdas alcançam frequentemente uma importância tal que os apostadores não têm outra saída senão a prisão ou a morte. Por outro lado, formas diferentes de gasto improdutivo podem estar ligadas, consoante as circunstâncias, aos grandes espectáculos de competição que, tal como os elementos animados por um movimento próprio, se sentem atraídos por uma turbulência maior. É deste modo que nas corridas de cavalos se associam processos de classificação social de carácter sumptuário (basta mencionar a existência dos Jockey Clubs) e à produção ostensiva das luxuosas novidades da moda. Há que fazer observar, além disso, que o conjunto dos gastos que têm lugar actualmente nas corridas é insignificante comparado com as extravagâncias dos bizantinos, que unem às competições hípicas o conjunto da actividade pública.

4) Do ponto de vista do gasto, as produções artísticas podem ser divididas em duas grandes categorias, das quais a primeira é constituída pela arquitectura, a música e a dança. Esta categoria comporta gastos reais. No entanto, a escultura e a pintura, sem fazer referência à utilização de lugares concretos para cerimónias ou espectáculos, introduzem na própria arquitectura o princípio da segunda categoria, o do gasto simbólico. Pelo seu lado, a música e a dança podem estar facilmente carregadas de significações exteriores.

Na sua forma superior, a literatura e o teatro, que constituem a segunda categoria, provocam a angústia e o horror por meio de representações simbólicas da perda trágica (decadência ou morte). Na sua forma inferior provocam o riso por meio de representações cuja estrutura é análoga, mas excluem certos elementos de sedução. O termo poesia, que se aplica às formas menos degradadas, menos intelectualizadas da expressão de um estado de perda, pode ser considerado como sinónimo de gasto; significa, com efeito, da forma mais precisa, criação por meio da perda. O seu sentido é equivalente a sacrifício. É certo que o nome poesia só pode ser aplicado de forma apropriada, a uma parte muito pouco conhecida do que vem a designar vulgarmente e que, por falta de uma decantação prévia, podem introduzir-se as piores confusões. No entanto, numa primeira exposição rápida, é impossível referir-se aos limites infinitamente variáveis que existem entre determinadas formações subsidiárias e o elemento residual da poesia. É mais fácil dizer que, para os poucos seres humanos que estão enriquecidos por este elemento, o gasto poético deixa de ser simbólico nas suas consequências. Portanto, em certa medida, a função criativa compromete a própria vida daquele que a assume, uma vez que o expõe às actividades mais decepcionantes, à miséria, ao desespero, à perseguição de sombras fantasmagóricas, que só podem causar vertigem, ou à raiva. É frequente que o poeta não possa dispor das palavras mais que para sua própria perdição, que se veja obrigado a escolher entre um destino que transforma um homem num réprobo, tão drasticamente isolado da sociedade como estão os excrementos da vida aparente, e uma renúncia cujo preço é uma actividade medíocre, subordinada a necessidades vulgares e superficiais.
[1] Este estudo foi publicado no Nº 7 de “La critique sociale”, Janeiro de 1933

(cont.)
 
--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 8. De Saída: Número 13 (como sempre às Quintas!)...

quinta-feira, julho 22, 2004

Ano Um / Número 11


--------- «(.)(.)» ---------
 
Tábua de Matérias
 
§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. El farolito, Manuel de Freitas
§ 4. Playmate absoluta do momento XI – Hannah Arendt
§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 6. Humor Místico, Leonardo Coimbra
§ 7. De Saída: Número 12 (como sempre às Quintas!)...
 
--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 1. Sumaríssimo
 
Tempo de quase-férias, tempo de quase-nada e de nada mesmo, tempo de outras distracções menos perigosas, ou talvez não... Ainda assim, cá vos deixamos com algumas palavras mais.
 
O número 11, como prometido, aqui está.
 
Kalimero!
 
--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
 
A vida é mesmo para matar
 
“Amo aqueles que me amam; quem me procura encontra-me ... quem me detesta ama a morte.” (Prov. 17, 36)
 
Só encontro morte. Acabei por amá-la sem ti. Não te procurei, nem te detesto, porém. Só te desprezo, nada mais.
Desprezo as tuas máscaras e armadilhas, as tuas graças e mentiras, os teus filhos e ministros, a tua forma e ideia.
 
A salvação é a condição aproblemática, a leviandade vivida no tédio que espera sempre mais, mais além, para mais tarde. Quem detesta a morte já morreu na promessa vã da vida outra.
 
Mas a vida é problemática activa, aporia natural e constante. Quem ama a morte vive, seguro da sua própria promessa, da sua morte por vir, em boa verdade.
 
Creio em mim como um só homem, creio na morte, em toda a minha vida...
 


et in arcadia ego

--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 3. El farolito, Manuel de Freitas
 
 
El farolito
 
Bebe, bebe muita e amarelada tequila,
morre sobretudo de a beberes, fazendo
da tua reles existência um escombro,
uma vergonha cansada servida a álcool e desamor.
 
Ri-te desumanamente desta vida que se compraz
em desgraçar-te. Afinal. nenhum mérito é
maior do que a da amarelada tequila em que
sobrevives
noite após noite. Quem falou do mundo,
quem disse tanta asneira errando no vento?
 
Ri-te apenas, como se chorasses sem riso e sem
lágrimas, com lábios exaustos, desfeitos
pelo álcool esse paraíso e inferno
de quem do amor só mostrou imperícia.
 
Ri-te, como se nada mais houvesse do
que um festejo de velhas fedendo ao crepúsculo.
Fedendo à tua morte enquanto te servem tequila,
necessariamente tequila, e sorriem
do teu rosto jovem já tão devastado.
 
Ri-te com elas, tuas servas babadas
sem dentes para morder a vida. São os esponsais
da tua morte, mais cedo do que pensavas, e convém
que estejas alegre. Deixa-as grunhir exaltando
a noite de que morres. Elas, elas apenas carpindo
a tua glória vazia, sabem que não és ninguém
e celebram a tua destemperada passagem
entre os que mortos ruminam a vida.
 
Deixa que te sirvam a loura tequila, desumanamente.
Bebe-a como um sangue que te faltou, o crime
inocente que arrastas. Sabes bem que o teu
suicídio é demorado, festa que tarda no crepúsculo
doentio de já nada sentir ou desejar.
 
Ri-te, blasfema dessa morte – desta morte só tua
que em cada gesto perpetuas.
 
 
Manuel de Freitas, Todos contentes e eu também.
 
--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 4. Playmate absoluta do momento XI – Hannah Arendt
 


Hannah Arendt

--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
 
10. Nada.
 
 
- Que ricas pernas!...
 
Nada.
 
A.H.
 
--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 6. Humor Místico, Leonardo Coimbra
 
 
Humor Místico
 
Eu vi a vida gloriosa erguer-se no horizonte da minha alma oculta. Por um recolhimento contemplativo e extático tinha esquecido o homem e quase ascendia a estrela do meu destino cósmico. Nesse momento criador vi a essência, a unidade original e eterna, através da acidentalidade humanamente sensível.
Eu era envolto em sonho e em luar. O meu corpo conhece a Lua, lembrava-se e a alma era cheia de saudades,
Em mim um clamor ardente de vida, em minha carne um gesto criador, de balbuciante mistério.
Senti então o poder da carne reveladora.
Já viram essa terra seca e mirrada que um estio voraz queimou com beijos de fogo?
Aquela desolação inquieta não me lembra uma face severa que sente, e inutilmente procura falar, uma alma inundada de enternecimento?
Eis o que é uma virgem amorosa. Terra estéril e mísera e que impetuosa torrente de vida não refere e tumultua adentro do cárcere de mentiroso pudor!
Assim era então junta a mim a mais próxima irmã do destino.
Os seus flancos vibráteis, o seu ventre misterioso, os seus peitos húmidos, os seus olhos de fogo, as suas húmidas pálpebras diziam o mais eloquente pedido, erravam, na órbita fatal da matéria, para os meus braços trémulos e magnéticos!
E eis o que ouvi ao seu corpo sonoro e luminoso:
«Na eternidade copularam as estrelas e geraram-me em sonho.
Sou o Sonho. Falo luz, são astros os meus gestos. Das entranhas da terra subi em luar, na terra fiquei em sonho e sou o luar das almas.
Numa noite tempestuosa, cheia do clamor das formas rezando a imperfeição, fulgurei nos olhos dum tigre.
Oh! Que pavor e assombro havia na minha prece!
Iluminei um dia uma serpente e subi aos céus nas asas duma ave. Criei uma alma, indaguei a vida e fui ao homem. Como tem sido dolorosa e bela a minha peregrinação humana! Esqueceu-me o passado, ignoro a vida, não compreendo o Universo, e, no entanto, há em mim, insofrida e insaciável, uma imensa ânsia de luz, de verdade, de comunhão.
Criei a alma e fui sua vítima. Como as há estreitas, tenebrosas e mirradas! Aspiro, soluço, sofro e não posso revelar-me, o cárcere é opaco, não posso revelar-me. Há almas ligeiras, simples, etéreas, puras e luminosas. Aí floresço as flores eternas do Ideal.
Sou a nuvem que leva o povo de Moisés à Terra de Promissão. Sou o sorriso da criança e a suavidade de Cristo, a timidez da virgem e a humildade do mendigo, a quimera do poeta e a loucura do herói.
Incendiei as almas e ergo-as na plenitude da sua beleza, aproximando-se na nudez da sua absoluta verdade. Por mim se conhecem as almas, num olhar possuem-me no mais completo contacto.»
Assim falava a sua carne numa harmonia tangível, sensual e quente. Eu era tão exíguo que me sentia inexistente, diluído em sonho. O luar sonoro e fluído inundava a terra.
As plantas bebiam gulosamente luar e construíam flores.
 
Leonardo Coimbra, Dispersos, III, Verbo.
 
--------- «(.)(.)» ---------
 
§ 7. De Saída: Número 12 (como sempre às Quintas!)...


quinta-feira, julho 15, 2004

Ano Um / Número 10

--------- «(.)(.)» ---------

Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. Mains, Paul Verlaine
§ 4. Playmate absoluta do momento X – Frida Kahlo
§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 6. Pequena Fenomenologia da Monstruosidade, José Gil
§ 7. De Saída: Número 11 (como sempre às Quintas!)...

--------- «(.)(.)» ---------

§ 1. Sumaríssimo

E chegamos assim ao Número 10, sem grandes nem pequenos alaridos, passando alegre mas ilustremente desconhecidos, menos satisfeitos com uma certa falta de retorno, o habitual silêncio por assim dizer, tendo em conta o número de almas (se as houvesse) que por cá têm passado enquanto visitas. Oitocentas e trinta e algumas...

A abrir continuamos a contar com a prosa de P.D e do seu indispensável Dito e Feito, para seguirmos com o atrevimento de publicar Paul Verlaine, nestes dias de miséria poética, com Les Mains.

A escolha da playmate recaiu desta vez em Frida Kahlo, vá-se cá saber porquê, e (o mesmo se aplicando ao exercício-de-estilo) continuam as animadas aventuras ornitológicas d’ A Explicação das Pássaras, por A.H.

A Pequena Fenomenologia da Monstruosidade, é algo de uma qualidade que não resistimos aqui a surripiar (sem fins lucrativos, infelizmente...) a José Gil, que dispensa quaisquer apresentações.

E, desta vez, ficamos por aqui mesmo, não avançamos mais, que os tempos estão difíceis...

Boa semana de leituras!

--------- «(.)(.)» ---------

§ 2. Dito e Feito, por P.D.

A unidade tentada

Agarrar na primeira e fugir à terceira pessoa. Nós e eles afastados de tudo, sem palavra, calados pela presença perigosamente transbordante de mim, o reflexo oblíquo e passivo do pessoal, do recto pronome desejavelmente só. Eu que apenas me sinto a mim quando vós há, não chamados, insistentes e insinuantes como o mundo de todas as partículas insensatas. Forçadamente ensimesmado em ti, repudio-te-me de mim, agora, agora e agora outra vez, tantas quanto necessário, até à próxima.

Declino o nome e só fico eu, adjectivado em branco, impermeável e quieto sobre os ruídos berrantes do plural.

Sou o caçador do oximoro selvagem e mundano, o esbanjador de troféus, o bruto que curte a pele do singular e a transforma em tapetes nos quais, um dia, talvez, possa descansar.

Serei sempre o piedoso assassino de mim.

PD

--------- «(.)(.)» ---------

§ 3. Mains, Paul Verlaine


Mains.

Mains

Ce ne sont pas des mains d'altesse,
De beau prélat quelque peu saint,
Pourtant une délicatesse
Y laisse son galbe succinct.

Ce ne sont pas des mains d'artiste,
De poète proprement dit,
Mais quelque chose comme triste
En fait comme un groupe en petit;

Car les mains ont leur caractère,
C'est tout un monde en mouvement
Où le pouce et l'auriculaire
Donnent les pôles de l'aimant.

Les météores de la tête
Comme les tempêtes du cœur,
Tout s'y répète et s'y reflète
Par un don logique et vainqueur.

Ce ne sont pas non plus les palmes
D'un rural ou d'un faubourien ;
Encor leurs grandes lignes calmes
Disent «Travail qui ne doit rien ».

Elles sont maigres, longues, grises,
Phalange large, ongle carré.
Tels en ont aux vitraux d'églises
Les saints sous le rinceau doré,

Ou tels quelques vieux militaires
Déshabitués des combats
Se rappellent leurs longues guerres
Qu'ils narrent entre haut et bas.

Ce soir elles ont, ces mains sèches,
Sous leurs rares poils hérissés,
Des airs spécialement rêches,
Comme en proie à d'âpres pensers.

Le noir souci qui les agace,
Leur quasi-songe aigre les font
Faire une sinistre grimace
A leur façon, mains qu'elles sont.

J'ai peur à les voir sur la table
Préméditer là, sous mes yeux,
Quelque chose de redoutable,
D'inflexible et de furieux.

La main droite est bien à ma droite,
L'autre à ma gauche, je suis seul.
Les linges dans la chambre étroite
Prennent des aspects de linceul,

Dehors le vent hurle sans trêve,
Le soir descend insidieux...
Ah ! si ce sont des mains de rêve,
Tant mieux, - ou tant pis, - ou tant mieux.

Paul Verlaine

--------- «(.)(.)» ---------

§ 4. Playmate absoluta do momento X – Frida Kahlo


Nascimento de Frida.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.

9. ... dentro nada.

Em casa, tarde como sempre, acordou depois da anterior noitada. Estava velha demais para essas coisas, pensou outra vez. Comeu vagamente duas ou três bolachas de água e sal para não ter de tomar os dois primeiros xanax em jejum. Acordava cada vez mais com as mãos em pleno centro do furacão. Fez um café, acendeu um cigarro e apeteceu-lhe mesmo muito começar a trabalhar mais cedo do que o habitual.

Sentou-se, esperou, não fez rigorosamente mais nada durante muito tempo. Algures o telefone tocou, ecoando pela casa quase vazia, e trouxe-a de volta a alguma realidade. Que horas seriam entretanto? Era Laura a pedir desculpa por ainda não ter regressado como prometido. Conhecera há pouco um grupo de Hambúrgueres, como dizia, e andariam mais dois ou trás dias às voltas pela Toscana, entretendo matariam as horas moribundas com algum fumo de primeiríssima água e um exagero (mesmo para ela) de sexo que também não deixava muito mais a desejar, com a novidade desta ser a primeira vez que não se importava de ser vista, disse, a toda a hora e por terceiros em conscientes esgares lânguidos, o mais em silêncio que a velha caravana não permitia. Contara-lhe tudo em pouco mais de dois minutos, se tanto, tendo ligado de uma qualquer cabina de estação de serviço à beira estrada, ou de algum velho café de aldeola. Desligou. Deixou-a a meio da primeira frase, Estou bem, não te..., sem palavras, suspensa entre alguma irritação, por não ter conseguido sequer abrir a boca, quanto mais dizer-lhe o que quer que fosse acerca dos seus planos para os próximos quatro ou cinco dias, e uma imensa vontade de rir como há muito não fazia já.

Subitamente uma boa disposição acompanhada de muita fome e sede resolveu levá-la a jantar sozinha. Olá noite, pensou. E lá saiu. A ideia era voltar a casa para tornar a rever todo aquele trabalho que não tinha a mínima ideia de ter produzido durante a tarde...
 
Regressou a casa tarde e a más horas, mas bem e em boa hora acompanhada, depois de terem ambos fechado o terceiro bar. Cai a manhã dentro e fora quando a alegra ainda mais a certeza de estar novamente só. Que chuva magnífica depois de uma noite memorável de sexo descomplicado. Pelos vistos, ainda não estariam assim tão bêbados. Virou-se para o outro lado na cama e não quis pensar mais nisso. Estava cansada, ainda, mas muitíssimo satisfeita. Pensou em Max, àquela hora provavelmente fazendo o mesmo, patético como sempre. Entregou-se àquele cinzento apaziguante e nessa manhã sonhou com sapos, muitos sapos, nada nojentos nem aterradores apesar de descomunais. Pelo contrário, pareciam todos sem excepção dotados de um particular olhar doentiamente azul de felicidade. Que sono...

A.H.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 6. Pequena fenomenologia da monstruosidade, José Gil

Pequena fenomenologia da monstruosidade

Existe uma tendência muito difundida nos autores que trataram da etimologia da palavra "monstro" em associá-la com monstrare e a traduzir este verbo por "mostrar", até mesmo "por indicar com o olhar". Etimologicamente, contudo, monstrare significa muito menos "mostrar" um objecto do que "ensinar um determinado comportamento, prescrever a via a seguir". Mas a atracção entre monstrare e "mostrar" é de tal modo irresistível que bem parece não se prender apenas à homofonia das palavras. Ate mesmo um Scipion du Pleix, que não se engana quanto ao sentido, faz referência ao olhar: "os monstros foram assim chamados por antífrase e sentido contrário à palavra porque se mostram e vêem raramente ou, segundo outros, monstra quasi minestra a monendo, como quem diria admonestemens, pois, diz Festus Pornpeius, eles admoestam-nos e previnem da ira dos deuses".
Comparemos com a origem que Liceti dá do termo no seu Tratado dos monstros: "os monstros não se chamam pois assim por serem sinais que pressagiam de algum modo coisas vindouras: mas é por serem como são que a sua novidade e extravagância nos fazem considerá-los com admiração, surpresa e espanto e cada um os mostra reciprocamente. Trata-se de um comportamento comum entre os homens que, quando alguém viu algo de maravilhosamente extravagante, o mostra aos vizinhos ou àqueles que encontra. E mesmo quando não encontram ninguém a quem contar a sua surpresa e espanto por ter visto esse monstro, não descansa até encontrar alguém a quem o mostrar. De tal maneira o homem gosta de mostrar a outro o que ele próprio viu de raro e surpreendente!"
Entre du Pleix e Liceti que defendem opiniões opostas, há um ponto comum: o facto de serem raramente vistos, segundo o primeiro, dá aos monstros a capacidade de se tornarem sinais extraordinários; e a propriedade de dar muito a ver constitui, para o segundo, um laço de comunicação social particular. Em ambos os casos, uma relação com o olhar.
Uma fenomenologia da monstruosidade revelaria sem dúvida que o fascínio provocado pela visão de um monstro refere-se, em primeiro lugar, à superabundância de realidade que ele oferece ao olhar. Esbocemos alguns passos nessa direcção.
Um monstro é sempre um excesso de presença. Que a anomalia seja um corpo redundante ou a que faltem órgãos, é necessariamente marcado por um excesso. O monstro combina os elementos de que é formado de tal maneira que a sua imagem contém sempre mais substância que uma imagem vulgar. Como entidade, não manifesta privações ou faltas; nunca um desses corpos sem cabeça das raças do Oriente é apreendido como menos que um homem, menos que um corpo, quer dizer, como um homem ou um corpo diminuídos. Quando os autores, de Isidoro de Sevilha a Liceti, tentaram classificar os monstros, a mutilação, a ausência de um membro ou de um órgão desempenhavam um papel de critério positivo, ao mesmo título que as "partes supérfluas". É reconhecer implicitamente a pertinência e autonomia de criaturas que, apesar de aparentemente privadas de algo, justificavam a criação de uma categoria à parte, admitindo assim a sua paradoxal compleição: a falta de órgãos transformava-se num traço presente.
É verdade que estas classificações eram frequentemente tributárias das concepções aristotélicas – o que confirmaria ainda mais a ideia que o excesso se sobrepõe e submerge a falta na formação do monstro.


Monstro 1.

Para Aristóteles, se a matéria não é totalmente exposta, durante a gestação, à acção da forma, o monstro nasce, realizando o caso de um excesso de matéria não moldada. Outras classificações, como as de Johann Schenk e de Aldrovandi, já não se referem à deformação por mutilação, caracterizando os monstros pela configuração corporal que apresentam – configuração essa que se basta a si própria.
Se considerarmos agora um monstro que resulte da conjunção de duas ou várias espécies – como o Minotauro, a Sereia, o Sátiro – constata-se o mesmo excesso. Ao Minotauro não falta nem uma parte de homem nem de touro; não é nem um corpo-humano-sem-cabeça-que-possui-uma-cabeça-de-touro, nem uma cabeça-de-touro-sem-corpo-suportada-por-um-corpo-de-homem. E quando a falta existe (de um órgão), o monstro tem a particularidade de, ao contrário do corpo "normal", a anular totalmente: o Ciclope não é um ser ao qual falta um olho, mas um gigante que possui um olho na testa.
Por um estranho efeito, a combinação das duas partes heterogéneas produz sempre um excesso de substância que não tem a ver com as dimensões da representação. Do mesmo modo, o homem sem cabeça só se mostra privado para melhor exibir a sua superabundância de ser, distinguindo-se nitidamente do doente afectado por privação de saúde.
Este fenómeno singular próprio dos monstros, concede-lhes uma autêntica vocação para a representação. Melhor ainda: tudo se passa como se o monstro não apenas fosse senhor de uma aptidão privilegiada, mas também se desse como uma espécie de modelo de representação pura (aqui, o termo não designa a "representação" do século XVII, mas o acto de apresentação de uma realidade). Por que razão a imagem monstruosa nos comunica um excesso de ser? Porque manifesta maior realidade do objecto, mais pormenores, mais conteúdo que uma imagem vulgar. Mas tal não basta para produzir mais ser, pois o que o monstro dá a ver, para lá da materialidade das coisas vistas, é o que subentende delas. O transbordamento que o monstro veicula ultrapassa o conteúdo representado, está para lá da sua origem e da sua causa. O que existe de irrecusável no monstro é esse excedente absoluto de substância, para além dos modos: há uma prova ontológica da existência do monstro que, do excesso de realidade dada na sua representação conclui a certeza da sua existência – e isto tem certamente algo a ver com o estatuto quase real (e quase simbólico) dos monstros biológicos.
Apesar da sua etimologia, o monstro mostra. Mostra mais que tudo o que é visto, pois mostra o irreal verdadeiro.
O monstro é, ao mesmo tempo, absolutamente transparente e totalmente opaco. Ao encará-lo, o olhar fica paralisado, absorto num fascínio sem fim, inapto ao conhecimento, pois este nada revela, nenhuma informação codificável, nenhum alfabeto conhecido. E, no entanto, ao exibir a sua deformidade, a sua anormalidade – que normalmente se esconde – o monstro oferece ao olhar mais do que qualquer outra coisa jamais vista. O monstro chega mesmo a viver dessa aberração que exibe por todo o lado a fim de que a vejam. O seu corpo difere do corpo normal na medida em que ele revela o oculto, algo de disforme, de visceral, de "interior", uma espécie de obscenidade orgânica. O monstro exibe-a, desdobra-a, virando a pele do avesso, e desfralda-a sem se preocupar com o olhar do outro; ou para o fascinar, o que significa a mesma coisa.


Monstro 2.

O que é um olhar fascinado? Aquele que subitamente se sente atraído pela coisa vista (a qual pode ser outro olhar) e perde a liberdade. Afunda-se no que vê porque o que se dá assim a ver reenvia a outra coisa que não se deixa captar. No fundo do percepcionado, para lá do percepcionado, mas no seu interior, jaz o segredo que o olhar procura. O monstro fascina porque se rodeia de apelos que emanam da sua própria transparência. Não despegar mais o olhar da sua imagem para penetrar cada vez melhor no sentido da mensagem; aderir e tornar-se surdo ao resto, permanecer assim perdido e esquecido – eis o fascínio a que a percepção do monstro nos convida.
Mas, na realidade, o olhar nada vê; fica suspenso nessa revelação-ocultação que é a imagem do corpo monstruoso. O monstro mostra o interior do corpo – ou antes, é o resultado do revirar da pele do corpo normal, da transformação deste em corpo de órgãos aparentes que proliferam desordenadamente. Corpo decomposto em órgãos e órgãos à flor do olhar – o horror que tal espectáculo provoca prova que os órgãos não são para ser vistos, mas apenas pensados. A transparência do corpo é isto: o interior visceral à flor da pele.
O que fascina é que esse interior "se corporize" e que não seja realmente um corpo – pois não tem alma. Ao mostrar o avesso da pele, é a sua alma abortada que o monstro exibe: o seu corpo é o reverso de um corpo com alma, é um corpo que atacou a alma absorvendo-a numa parte corporal. Ao revelar o que deve permanecer oculto, o corpo monstruoso subverte a ordem mais sagrada das relações entre a alma e o corpo: a alma revelada deixa de ser uma alma, torna-se, no sentido próprio, o reverso do corpo, um outro corpo, mas amorfo e horrível, um não-corpo. Que monstruosidade carrega o monstro teratológico com ele? A de uma alma feita carne, vísceras e órgãos.
O corpo do monstro comunica talvez uma coisa terrível nesta subversão do normal que provoca: uma catástrofe futura, uma desgraça que anuncia a vontade divina. Não sabemos. Da desgraça vindoura apenas recolhemos o medo. O monstro vem para avisar e encher os homens de angústia. Assim, entre a transparência que se revela totalmente ao olhar e a opacidade da mensagem divina, o monstro só oferece a adequação entre dois incompreensíveis, um o sentido e o outro sinal, um sabido e outro visto, ameaçando afogar o olhar nos seus sortilégios vazios.
Liceti traduziu tudo isto ao dizer que o homem que descobre um monstro só tem descanso após tê-lo mostrado a outra pessoa. Acrescente-se: para não ficar preso no fascínio nascente.
Que Liceti, neste texto em que se refuta a concepção do monstro como Sinal (augúrio), o reduza também a uma curiosidade para a multidão, atesta já o fim da crença nos monstros como prodígios anunciadores da vontade de Deus e o seu tratamento pré-científico como objecto dessacralizado.
O texto torna-se mais interessante quando Liceti descreve a percepção do monstro como tendo a ver com uma certa comunicação social: “cada um o mostra reciprocamente”.
À falta de ser um sinal do céu, mostram-no na surpresa que suscita a sua novidade e extravagância. Porque tal agitação no meio da multidão? Para não ficar fascinado no horror da sua própria imagem enlouquecida, monstruosa – sou eu, isso, esse corpo com duas cabeças, é isso o meu ser, a minha identidade, a minha alma? Toda a gente procura pôr cobro à atracção da identificação, tranquilizando-se no apelo à cumplicidade do vizinho. Atracção angustiante: nesse monstro humano que eu vejo há simultaneamente um outro homem e eu mesmo, todos os seres humanos que correm o risco de ser apanhados na suspeita de monstruosidade. Esse monstro precisa de ser afastado, posto à distância e voltar a ser introduzido no discurso de todos os dias: far-se-á dele uma curiosidade (de feira) e ele tornar-se-á paradoxalmente num factor libertador da angústia. Reordenará do exterior as relações entre os homens sem os fazer sofrer um constrangimento comum; sem os obrigar a acorrentar-se a um modelo rígido e permitindo-lhes reconhecer-se como humanos, iguais, singulares e diferentes uns dos outros. Os homens precisam de monstros para se tornarem humanos.

José Gil, in Monstros, Quetzal, 1994.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 7. De Saída: Número 11 (como sempre às Quintas!)...

quinta-feira, julho 08, 2004

Ano Um / Número 9

--------- «(.)(.)» ---------

Tábua de Matérias

§ 1. Sumaríssimo
§ 2. Dito e Feito, por P.D.
§ 3. What is a saint?, Leonard Cohen
§ 4. Playmate absoluta do momento IX – Elisabeth Foster-Nietzsche
§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.
§ 6. Problemas narrativos, Boccaccio
§ 7. Irresponsabilidade e inocência, Friedrich Nietzsche
§ 8. De Saída: Número 10 (como sempre às Quintas!)...

--------- «(.)(.)» ---------

§ 1. Sumaríssimo

De regresso. Pois... Só isso. Alguns acontecimentos recentes deixaram-nos momentaneamente sem palavras. Não pedimos desculpa por isso. As circunstâncias são tudo, nós não somos nada.

Fiquem! Ou então não...

--------- «(.)(.)» ---------

§ 2. Dito e Feito, por P.D.

Perplexidade

Perplexo no mundo d’aquém tudo. Indeciso? Resolutamente, não! Esperar pela surpresa salvífica, em tédio a cair no chão escorregadio todo gelado e sem arestas da vida positiva. Descalços ao frio os sapatos de pedra, elevo-me em contemplação teórica, praticamente nu e cheio de mim, menos que verme e mais do que inadmissível anjo.

E vi, como uma árvore que sonha com Deus, que a terra pesa e segue-me, e eu sigo-a também, desconfiado da razão e sem saber fim senão a fonte que irá secar, já e ainda não.

Sempre o mesmo, repito. Sempre o mesmo para o mesmo de sempre. Nisso toda a fé, a única que cabe em casa do sentido. E a rir, a rir mil risos por ser assim, como pode ser, e ainda bem, admirado por haver coisas, em geral, as coisas que me cabem e eu ficar ao lado delas, à altura.

De cima para baixo, eu sou o númeno prático e tu, experiência, fica por aí, mas não me toques ainda.


Santos Carvalho, Encarnação

--------- «(.)(.)» ---------

§ 3. What is a saint?, Leonard Cohen

What is a saint? A saint is someone who has achieved a remote human possibility. It is impossible to say what that possibility is. I think it has something to do with the energy of love. Contact with this energy results in the exercise of a kind of balance in the chaos of existence. A saint does not dissolve the chaos; if he did the world would have changed long ago. I do not think that a saint dissolves the chaos even for imself, for there is something arrogant and warlike in the notion of a man setting the universe in order. It is a kind of balance that is his glory. He rides the drifts like an escaped ski. His course is the caress of the hill. His track is a drawing of the snow in a moment of its particular arrangement with wind and rock. Something in him so loves the world that he gives himself to the laws of gravity and chance. Far from flying with the angels, he traces with the fidelity of a seismograph needle the state of the solid bloody landscape. His house is dangerous and finite, but he is at home in the world. He can love the shape of human beings, the fine and twisted shapes of the heart. It is good to have among us such men, such balancing monsters of love.

L. Cohen, Beautiful Losers (1966)

--------- «(.)(.)» ---------

§ 4. Playmate absoluta do momento IX – Elisabeth Foster-Nietzsche


Elisabeth Foster-Nietzsche

--------- «(.)(.)» ---------

§ 5. A Explicação das Pássaras, por A.H.

8. a caminho da Loba, mais arrumações.


Aquela carta é que não lhe saía da cabeça, mas deixava andar, como pensava e por vezes dizia. A música de aeroporto e a terceira cerveja da manhã eram a companhia para um saltinho à Loba, como se referia às suas nem sempre curtas estadias em Roma. Depois de uma vaga olhadela pelos jornais e por uns quantos cigarros o estômago reclamava agora os cuidados de mais um calmante leve, só para embalar. Como a embalava também sempre a leitura de Blanchot. Releu, já mais calma, uma passagem sublinhada:
O autor que escreve precisamente para um público, na verdade, não escreve: é esse público que escreve e, por esta razão, esse público já não pode ser leitor; a leitura é apenas aparência, na realidade ela é nula. Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas, ninguém as lê. Daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e os descobrir a eles mesmos: é que os outros não querem ouvir a sua própria voz, mas a voz de outro, uma voz real, profunda, incómoda como a verdade.
Música insistente aquela. The spy who loves me, na versão de Carly Simon, claro, não podia ser uma leve impressão sua. Dirigiu-se ao portão de embarque e, pelos vistos, embarcara num sono profundo ainda antes do avião descolar. Um rosto simpático e talvez algo profissionalmente preocupado de hospedeira, pedia-lhe agora amavelmente que se levantasse e saísse. Tinham aterrado há alguns minutos.

Não se lembrava bem do breve sonho mas tinha algo a ver com a sua mania de abdicar sempre de tudo, sobretudo do que mais prezava. A nova peça de Max, claro, seria apenas mais um sucesso a juntar a todos outros que lhe fora forjando. Mais uma vez a crítica elogiaria a sensibilidade quase (sic) feminina da sua escrita, a sua preocupação de dar a pensar como quem dá à luz..., e outras aberrações supostamente hermenêuticas fariam jus ao velho estereotipo sexista. Ele rebentaria de riso e de vaidade e permaneceria em festa até à necessidade de um novo cheque.
Contas e mais contas... Felizmente o dinheiro continuaria a chegar para essas e todas as outras. A pilha de cartas na caixa do correio, seguramente mais contas pagas e outras por pagar, não deixava dúvidas, caso as houvesse, da sua ausência prolongada. Estaria, portanto, sozinha mais uma vez entre os últimos livros e outros fantasmas menos cooperantes. Sem Laura para brincar, rir e rever. Precisava apenas do tempo de arrumar os papéis numa semana e deixar tudo tratado com Laura até ao próximo retiro romano. Deixou cair o saco de viagem e dirigiu-se ao frigorífico para matar com o que houvesse a sede que tornava a acordar. Que dor de cabeça.

Tinha tudo encaixotado em dois dias e ainda não aparecera ninguém. Resolveu comemorar sozinha, deixando de fora apenas o manuscrito revisto daquele que seria por certo o seu último romance. Faltava, pelo menos, ainda uma releitura das partes mais obscuras, não porque quisesse ser mais clara, mas por uma questão essencial de coerência estilística, a única que ainda prezava por esses dias. Seria mais uma historieta, pensou.

Saiu. A noite fria, numa cidade onde não corremos o risco de ser reconhecidos, continuava a sua rotina de sempre. Revisitou os mesmos bares da zona sul, cumprimentou de passagem um vago poeta místico encalhado no Movies, entre dois black label. Falaram vagamente da superioridade notável da prosa e da necessidade de pôr termo à rameiragem pululante da chamada nova escrita. Em vez do super-homem, um super vazio que já nem se notava como tal.

- Quando voltas, miúda? Que Platão (risos) te acompanhe!, gritou-lhe ainda de um trago.
- Ciao!

De novo o frio cá fora. Andar. A Praça de Espanha continuava no sítio. Reconfortante era também e ainda mais aquele céu claro de início de manhã, as primeiras pombas, poder respirar numa quase paz. Uma pomba bêbeda, como ela, à procura da salvação, absurda. Quando só se tem o amor da despedida o reencontro não cala este vazio. Partia de novo amanhã, mas não para Genebra como lhe dissera. Precisava do espaço de Lisboa, daquela luz fria e azul-branca. Precisava de rever o Jardim da Parada antes de um novo ano de pequenas mentiras que se aproximava, as luzes de Natal na Avenida da Liberdade, o reencontro com P.
Voltou para casa e adormeceu.

--------- «(.)(.)» ---------

§ 6. Problemas narrativos, Boccaccio

Problemas narrativos


Uma alegre companhia de damas e cavaleiros, convidados de uma dama florentina num seu palacete de campo, depois da refeição dão um passeio a pé a caminho de outra amena localidade dos arredores. Para tornar mais agradável o caminho, um dos homens oferece-se para contar uma história.
«Dona Oretta, quando quiserdes, grande parte do caminho que teremos de andar, levar-vos-ei a cavalo numa das mais belas histórias do mundo».
Ao que a dama respondeu: «Senhor, eu mesma vo-lo peço muito, e ser-me-á mui agradável».
Ao ouvi-lo, o senhor cavaleiro, que talvez não se houvesse melhor com a espada à cinta do que com a língua a contar histórias, começou uma sua narrativa, a qual na verdade em si era mui bela, mas que ele, ora três, quatro e seis vezes repetindo uma mesma palavra, ora tornando atrás, ora dizendo: «Não é bem assim» e muitas vezes os nomes errando, trocando uns pelos outros, teimosamente a estragava: pessimamente, sem adaptar as qualidades das pessoas e dos acontecimentos ao tom em que contava.
Pelo que à Dona Oretta, ouvindo-o, com frequência vinham suores frios e um desfalecimento do coração, como se doente estivesse prestes a morrer; e como mais não podia aguentar, sabendo que o cavaleiro se metera num pântano de que não conseguia sair, prazenteiramente lhe disse: «Senhor, este vosso cavalo tem assaz mau trote, pelo que vos peço que vos praza deixar-me ir a pé».

Novela de Boccaccio, citada por Italo Calvino em Lezioni Americane.


Six Memos, Italo Calvino

--------- «(.)(.)» ---------

§ 7. Irresponsabilidade e inocência, Friedrich Nietzsche


Friedrich Nietzsche

Irresponsabilidade e inocência


A plena irresponsabilidade do homem pelo seu procedimento e pelo seu carácter é a gota mais amarga que o estudioso tem de engolir, se foi habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza da sua humanidade. Devido a isso, todas as suas estimativas, distinções, aversões se desvalorizam e tornaram erróneas: o seu sentimento mais profundo, que ele dedicava ao mártir, ao herói, tornou-se equivalente a um erro; já não lhe é lícito elogiar, nem censurar, pois é despropositado elogiar e censurar a Natureza e a necessidade. Tal como ele gosta de uma boa obra de arte, mas não a elogia, porque esta nada pode por si própria, tal como ele se encontra perante a planta, assim tem de estar perante as acções dos homens, perante as suas próprias. Pode admirar nelas energia, beleza, plenitude, mas não lhe é permitido encontrar aí méritos: o processo químico e a luta dos elementos, o tormento do doente, que anseia pela cura, são tão poucos méritos quanto aqueles combates e estados de emergência psicológicos, em que uma pessoa é arrastada para cá e para lá, por diversos motivos, até que, finalmente, se decide pelo mais poderoso – como se diz (mas, na verdade, até que o motivo mais poderoso decida quanto a nós). Todos esses motivos, porém, e por muito que lhes demos nomes elevados, cresceram a partir das mesmas raízes, em que nós julgamos residirem os venenos malignos; entre acções boas e más, não há diferença de espécie, mas, quando muito, de grau. Acções boas são más acções sublimadas; más acções são boas acções tornadas grosseiras e estúpidas. É apenas o anseio do indivíduo pelo gozo de si próprio (juntamente com o receio de ser privado do mesmo) que se satisfaz em todas as circunstâncias, actue o homem como puder, isto é, como tiver de actuar: quer seja em actos de vaidade, vingança, volúpia, interesse, maldade ou astúcia, quer seja em actos de sacrifício, de compaixão ou de inteligência. Os diferentes graus na capacidade de ajuizar decidem para onde alguém se deixa levar por esse anseio; está continuamente presente a cada sociedade, a cada indivíduo, uma hierarquia de bens, segundo a qual ele determina as suas acções e julga as dos outros. Mas essa escala modifica-se continuamente, muitas acções são denominadas más e são apenas estúpidas, porque o grau da inteligência, que se decidiu por elas, era muito baixo. Sim, num certo sentido, até todas as acções são estúpidas, ainda hoje, pois o grau mais elevado de inteligência humana, que pode ser alcançado hoje em dia, ainda será seguramente ultrapassado: e, então, numa retrospectiva, todo o nosso comportamento e o nosso juízo parecerão tão limitados e inconsiderados como, hoje, se nos afiguram limitados e inconsiderados o comportamento e o juízo de tribos selvagens e atrasadas. Reconhecer tudo isto pode causar profundos sofrimentos, mas, depois, há uma consolação: esses sofrimentos são dores de parto. A borboleta quer romper o seu casulo, puxa por ele, rasga-o: então, cega-a e confunde-a a luz desconhecida, o império da liberdade. É naqueles homens, que são capazes dessa tristeza – quão poucos eles serão! –, que será feita a primeira experiência para ver se uma humanidade moral se pode transformar numa humanidade sábia. O sol de um novo evangelho lança o seu primeiro raio sobre os mais altos cumes na alma desses isolados: aí, as névoas concentram-se, mais densas que nunca, e, ao lado um do outro, encontram-se o fulgor mais claro e o crepúsculo mais sombrio. Tudo é necessidade – é o que diz o novo saber: e esse saber é ele próprio necessidade. Tudo é inocência: e o saber é o caminho para chegar à compreensão dessa inocência. Se o prazer, o egoísmo, a vaidade são necessários para a produção dos fenómenos morais e da sua suprema floração, o sentimento da verdade e da rectidão do conhecimento, se o erro e o extravio da fantasia eram o único meio, através do qual a humanidade conseguiu erguer-se pouco e pouco a este grau de auto-esclarecimento e de autolibertação – quem ousaria ficar triste, ao aperceber-se da meta, a que esses caminhos conduzem? Tudo no campo da moral resulta de um processo evolutivo, é mutável, inconstante; tudo está em movimento, é verdade, mas também tudo vai com a corrente, em direcção a um objectivo. Embora o hábito hereditário dos erros de apreciação, de amor e de ódio, possa continuar a prevalecer em nós, sob a influência, porém, do saber crescente, ele tornar-se-á mais fraco: um novo hábito, o de compreender, de não amar, de não odiar, de abranger com a vista, implanta-se a pouco e pouco em nós no mesmo terreno e, dentro de milhares de anos, será talvez suficientemente poderoso para dar à humanidade força para gerar o homem sábio, inocente (consciente da sua inocência), tão regularmente como, actualmente, ela gera o homem não-sábio, injusto, consciente da sua culpa – ou seja, a necessária condição prévia, não a antítese daquele.

F. Nietzsche, Humano Demasiado Humano, 107

--------- «(.)(.)» ---------

§ 8. De Saída: Número 10 (como sempre às Quintas!)...

quinta-feira, julho 01, 2004

Ano Um / Número 8

Sumaríssimo
Por milhões de razões, o número desta semana limita-se à secção Playmate e a um pequeno poema.

§ único

Playmate absoluta do momento:

Sophia de Mello Breyner Andresen, 1919-2004

Sofia



Este é o tempo

Este é o tempo
Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam.



Sophia de Mello Breyner
in Mar Novo (1958)